28.4.11

585 - Peça peixes ao papai



Peça bifes ao papai

Paulo Heuser

Envelheço, sem sombra de dúvida. Sou um dos últimos leitores de jornais impressos. iPad não suja os dedos com tinta. Não que eu goste de sujá-los, é que eu não tenho um iPad. Não posso pagar tudo isso para constatar aliviado que, finalmente, o Pinpoo alça vôo para Guarapari, devidamente chipado. É uma pena, o Rio Grande perde uma das suas maiores personalidades. Restar-nos-á o consolo da visão da sua estátua, erguida ao lado do Laçador, como aquela do cão Balto, no Central Park de Nova York. Balto percorreu 1600 km, sob nevasca, para transportar medicamentos contra difteria e salvou as crianças de Nome, no Alaska, em 1925. E Pinpoo? Bem, Pinpoo fugiu.
Há mais do que Pinpoos no jornal. Os leitores atuais não gostam de palavras, pois elas confundem a visualização das figuras. Fica muito confuso enxergar alguma coisa com todas aquelas letras em carreirinhas para atrapalhar. Uma imagem fala por mil palavras, dizem. Tento me concentrar nas palavras restantes. “O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) costuma lavar peças grandes ou muita roupa protagonizou um novo bate-boca na Câmara nesta quarta-feira, tanto que todas elas têm nota A na classificação energética oficial do Procel ao criticar homossexuais durante uma audiência pública sobre segurança pública. Bolsonaro graças a um avançado sistema de amortecimento que minimiza as chances de barulhos indesejáveis durante o funcionamento atacou o 'kit gay' --vídeos anti-homofobia que o Ministério da Educação estuda distribuir às escolas. Por que eu devo comprar uma lavadora bonita se isso não interfere no funcionamento? O ministro da Justiça, principal convidado da audiência pública, entrou na polêmica mais de uma hora depois. Segundo ele, caso isso ocorra, o sifão poderá dispensar o produto antes do tempo adequado e manchar os tecidos.” Creio que preciso de um iPad, urgente. Ah, percebo – como diria um atendente de telemarketing -, imprimiram uma peça publicitária logo ao lado da coluna de notícias. Lendo assim, de carreirinha, os textos se confundem. No iPad deve ser diferente. Como não o tenho, vai um marca texto. Pinto de verde o que é notícia e de vermelho o que é publicidade. Transformo o jornal no mar vermelho. Vamos às pintas verdes. Essa é nova: cientistas do Fred Hutchinson Cancer Research Center descobrem que dietas ricas em Omega 3 dobram a chance de se desenvolver câncer na próstata. Já os cientistas do Hospital Christie, de Manchester, descobrem que dietas ricas em Omega 3 detêm o desenvolvimento do câncer de próstata. Por sorte, criaram um resumo da notícia para leitura pelos filhos. Assim fica mais simples: se a mamãe comer muito peixe, desenvolverá câncer na próstata. Então, basta que ela coma mais peixe para que o câncer vá embora. Por via das dúvidas, peça bifes ao papai e mantenha-o longe dos peixes.

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6.4.11

584 - Quinhentos degraus


Quinhentos degraus

Paulo Heuser

Nenhum degrau é igual a outro. Uns são mais altos, outros mais curtos. Os quinhentos degraus que levam à torre mais alta do castelo parecem infinitos, impressão reforçada pelo vento gélido da tarde de inverno. Há muito vento, que corta as partes descobertas do rosto. O fôlego se vai, e a respiração se torna cada vez mais audível. A única coisa que conforta é a vista. O degrau 337 rouba o resto do fôlego e cobra uma pausa. A amurada oferece abrigo, apoio e permite pensar no que há, afinal, por trás das guerras. Cristãos e mouros derramaram sangue sobre esses degraus, ora uns, ora outros, desde o século VIII. Fiéis enfrentam os hereges e estes os infiéis, e qualquer combinação disso, o que se repete ao longo dos milênios. O problema seria religioso, portanto. Crentes em deuses distintos, ou no mesmo, com nomes distintos, digladiam-se em nome das religiões. Faria todo o sentido, se não fosse o dinheiro, que pode assumir a forma líqüida.
O mundo ocidental tornou-se cada vez mais dependente do precioso produto cuja produção está na mão de poucos, muito poucos. A religião é apenas a desculpa para as guerras. As nações deixam de exercer o poder e tornam-se apenas fachadas para as corporações que exploram o ouro líqüido. Hoje, o sangue derramado nesses degraus seria outro. A verdadeira guerra se trava nos mercados, e as fronteiras físicas deixaram de ter importância. O cartel patrocina toda espécie de eventos, sejam eles esportivos, culturais ou bélicos. Por que Bismarck adulterou o texto do telegrama de Ems e deu origem à Guerra Franco-Prussiana? Por que Hitler invadiu a Polônia, França, Itália e a Rússia? Voltando no tempo, o que levou às Cruzadas? Por que perseguiram aquele grupo dos treze que partilhavam o pão e o vinho? O líqüido. Ele está por trás de tudo.
Refeito o fôlego, hora de enfrentar os 163 degraus restantes. As guerras de hoje não mancham mais de sangue os degraus das escadas que levam à Torre Real do castelo dos Mouros de Sintra. A luta agora se trava nas terras dos mouros. Afinal, eles afrontam o cartel do ouro líqüido, pois não bebem cerveja.

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