29.6.09

534 - Dúzia de dez

Foto: Paulo Heuser
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Dúzia de dez

Paulo Heuser


Teozinho arrasou. Após um MBA em marketing, inventou a dúzia de dez. Já houve a dúzia de treze, ou dúzia de frade, criada pela Igreja, como forma de cobrar seu quinhão. A origem da dúzia de doze, a clássica, é atribuída aos sumérios, que viveram lá por 3300 a.C. na região sul da Mesopotâmia. Eles usavam os dedos para contar. Não que eles tivessem doze dedos nas mãos. Eles foram mais espertos, na verdade, e usaram as falanges dos dedos para contar as unidades e o polegar para indicar a falange em que contavam. Isso na mão direita, onde eram capazes de contar até 12. Com a mão esquerda, eles implementaram um sistema quintal, de base cinco, e um sistema sexagesimal, de base 60. A perda de mãos, ou mesmo de dedos, levava à dislexia numérica.

O Teozinho analisou toda essa coisa, a pedido do Monopólio Central, à procura de uma forma de aumentarem o lucro com a venda de ovos. Ele logo percebeu o problema. Dúzias sumérias de doze eram conceitos para lá de antigos. O mundo havia mudado, e os novos tempos demandavam novos padrões, como a NDD - Nova Dúzia Decimal. Quem ainda contava falanges com o polegar? O Cartel reduziu a dúzia, de doze para dez, e manteve os preços, sem cobrar nada mais por isso. Logo vieram a meia dúzia de cinco e o ovo avulso sem surpresa, o contraponto do kinder ovo. As galinhas sabem fazê-los como ninguém. Em vez de brinquedos de montar, esses ovos avulsos contêm uma substância ranhenta e transparente circundando um fluido amarelo. Seria fantástico, se não fosse nojento. Segundo as instruções da embalagem, basta cozinhá-los em água fervente para que percam a aparência repugnante.

Quem sabe das coisas não dorme sobre os louros da vitória. Sucesso é coisa de momento. Teozinho trabalha em outro projeto, o do litro light. Ainda não há uma definição exata da dimensão do novo litro, mas tende a ter 750 ml. Menos calorias pelo mesmo preço.

Guardado a sete chaves anda o DSZ – Dispensador de Sabor Zero -, dispositivo implantado sob a língua do cliente, que libera essências diversas, tudo sem valor alimentício, completamente zero cal. O sujeito pensa na picanha, lá vem gosto de picanha. Petit gâteau de maracujá? Sem problemas, vem até o sabor azedo da fruta. O que o Monopólio Central ganhará com isso? Teozinho sabe, o DSZ tem interfaces 3G, wi-fi e bluetooth, em dentes brancos, para informar o consumo. A central do Monopólio coletará os pedidos e debitará da conta dos clientes, sem cobrar nada mais por isso.

É frustração do Teozinho não ter nascido antes. Ele poderia ter sido o responsável pelo lançamento do BDN – Bolo do Delfin Netto -, aquele que, depois de crescido, seria distribuído entre a população, sem cobrarem nada mais por isso.


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27.6.09

533 - O novo martelo dos hereges

Auto-da-fé (1475) de Pedro Berruguete
Fonte: Wikipedia
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O novo martelo dos hereges

Paulo Heuser

Era uma vez um lugar chamado Portus Victoriae Iuliobringensium, durante a Era Romana. Abusando de números romanos, no Século VIII, Afonso III, o Casto, fundou a Abadia dos Corpos Santos do Monastério de Somorrostro. Já no Século XII, Afonso VIII criou lá o aglomerado que deu origem à cidade de Santander, na região espanhola da Cantábria. Não longe dali, no Século XV, nasceu Tomás de Torquemada, que veio a ser conhecido como o Martelo dos Hereges, e tornou-se o inquisidor-mor dos reinos de Castela e Aragão. Finalmente, no Século XIX, alguém teve a idéia de fundar um banco, na Cantábria, com as graças da rainha Isabel II.

Torquemada destacou-se nas lides de combate aos hereges. São-lhe atribuídos 2200 autos-de-fé, as cerimônias públicas de humilhação e penitência dos hereges. O homem trabalhava incansavelmente. Contudo, apesar de implacável, Tomás também sabia ser piedoso. Ele estrangulava os que confessavam as heresias, antes de queimá-los. Como ele trabalhou bem demais, digamos assim, acabou perdendo parte do seu poder, devido à intervenção do Papa Alexandre VI.

Números romanos à parte, até aqui, há história. A partir daqui, especulação. Uma antiga lenda cantábrica fala de uma descoberta arqueológica, feita no Real Monastério de Santo Tomás, em Ávila, local onde Torquemada passou seus últimos dias. Sob um degrau da escada que sobe ao coro, junto ao Claustro do Silêncio, foram encontrados escritos, atribuídos a Torquemada, que levariam à construção de uma fabulosa máquina de tortura de hereges. Na época da descoberta não havia tecnologia para implementá-la, o que somente veio a ocorrer no Século XXI. O Banco da Cantábria aplicou esse artefato no seu relacionamento com os potenciais clientes, hereges ou não, numa estranha, pavorosa e inovadora estratégia de marketing. O Martelo Automático dos Hereges liga aleatoriamente para números telefônicos. A novidade está aí. Quando alguém atende, nada falam. Fica apenas o silêncio. Os hereges, ou não, recebem muitas chamadas, dia e noite. As mais torturantes são as de sábado pela manhã, bem cedinho. O sujeito está lá, aquecido na cama, pretendendo varar a manhã nublada no aconchego, e o telefone toca. É o Martelo Automático dos Hereges. Nada há a fazer, senão esperar pela conclusão do auto-de-fé automático. Os antigos duravam dois anos, o que não traz muito alento.

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25.6.09

532 - O enigma da Grande Padronização



Fonte: Wikipedia
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O enigma da Grande Padronização

Paulo Heuser


De que Irina era diferente, todos desconfiavam. Ela cresceu numa terra perdida em meio àquilo que chamavam de Rio Grande do Sul, antes da Grande Padronização. No seu registro de nascimento constava a localização, latitude 27⁰59’20’’ S, longitude 54⁰50’22’’ W. Apesar de haver um hospital na localidade, Irina, sua mãe Taís, sua avó Larissa e todas suas ancestrais nasceram em casa, com o auxílio da decana das senhoras da Antiga Ordem Ortodoxa, seita proscrita pela Grande Padronização. Contavam, à boca miúda, que essas senhoras saíam de lá extremamente abaladas e juravam nada revelar sobre o que haviam presenciado. Irina também não foi à Escola Padrão. Não foi a lugar nenhum, na verdade. Passou seus 19 anos de vida restrita aos 20 hectares da propriedade, exatamente como fizeram suas ascendentes. As mulheres da família de Irina nasciam, viviam e morriam entre aquelas cercas. Mesmo seus vizinhos nada delas sabiam. Elas se limitavam às lides campeiras, cobertas por mantos marrons, com capuzes. Tampouco freqüentavam o Templo do Rito Padrão. Os ministros da igreja pareciam ignorá-las. Quando alguém tocava no assunto, eles se limitavam a levar o dedo indicador aos lábios, conclamando o silêncio.

O povo sabia ser maldoso. Chamavam-nas de bruxas. De que outra forma conseguiriam maridos, andando cobertas daquele jeito? Diziam que elas enfeitiçavam os homens que viam seus rostos. Os que lá porventura entravam, seja lá para o que fosse, casavam, como aconteceu com o pai e com o avô de Irina. Depois, eles somente saíam da propriedade sozinhos, nunca acompanhados pelas mulheres, e sempre voltavam. Assim também foi com Ivan, que entrou na propriedade para buscar um bezerro fujão e topou com a jovem Irina. Apesar de ela estar coberta pelo manto com capuz, Ivan olhou nos seus olhos e caiu de joelhos, enfeitiçado, como diziam. Ele voltou para casa apenas para devolver o bezerro. Trocou de família, definitivamente. Seu casamento, realizado na propriedade dos pais de Irina, contou somente com a presença da família da noiva.
O mistério perdurava por gerações. O que levava as mulheres daquela família a cobrirem-se daquela forma? Por que elas nunca deixavam a propriedade?

A notícia correu de boca em boca, como fogo na palha seca. Aconteceu novamente, uma das bruxas daria à luz, e nasceria outra bruxa. O enigma seria renovado. O ministro do Templo do Rito Padrão recebeu a visita do jovem Ivan, que lhe trouxe a boa nova. A decana da Antiga Ordem Ortodoxa foi avisada de que, em breve, seus serviços seriam requisitados, conforme mandava a tradição. Na noite tempestuosa, em que Irina entrou em trabalho de parto, aconteceu o impensável. A decana da Ordem morreu, sem alarde nem anúncio. Uma noviça foi acordá-la, para acudir Irina, e a encontrou dormindo o sono eterno. Quebrada a tradição, a noviça resolveu, ela mesma, assistir o parto da estranha e misteriosa Irina. Não acordaria a nova decana, que dormia o sono dos justos. Como noviça, porém, ela não estava preparada, pois não conhecia o grande segredo, compartilhado apenas pelo ministro do Templo e pela recém-falecida decana da Ordem. Mesmo assim, ela foi, sob uma chuva intensa que brilhava como prata, à luz dos relâmpagos. Ela estava preparada para assistir um parto, mas não estava preparada para aquilo.
As senhoras da Antiga Ordem Ortodoxa acordaram sobressaltadas, em meio à noite de temporal. Acompanhada do ribombar dos trovões, a noviça retornou completamente histérica. Sua face mostrava uma expressão de profundo pavor. Pudera, quem poderia esperar por aquilo, após tantas gerações, desde a Grande Padronização? Ela pôs-se a gritar:

- Ela tem cabelos loiros e olhos azuis!

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23.6.09

531 - A cigarra e a formiga

Jean de La Fontaine
Fonte: Wikipedia
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A cigarra e a formiga

Paulo Heuser

Jean de La Fontaine era francês. Era, pois partiu desta para a – presumidamente - melhor em 1695. Ele escreveu, entre outras coisas, a fábula da cigarra e da formiga. Essa, todo mundo conhece. Não há quem não a ouviu. É aquela historinha sobre a cigarra que vivia na gandaia enquanto a formiga se rebentava trabalhando, durante a primavera, o verão e o outono, para estocar alimentos para o inverno. A moral dessa fábula é evidente. O sujeito deve guardar algo para os dias escuros que virão.

José ouviu tal fábula à exaustão, desde o colo da mãe até a FEBEM. Ele teve uma infância comum, como qualquer outro menino. Nasceu na Vila Ronca Tripa, filho de pai viúvo e mãe ignorada, engraxou sapatos na praça, roubou calotas, foi aviãozinho e coroinha. Sua infância não foi fácil, ralou entre o bem e o mal, mas sempre acordou cedo e foi dormir tarde. Trabalho era seu nome. José sabia que só assim poderia guardar algo para os anos da velhice. Aos 18, quando deixou a FEBEM, José abriu sua própria boca-de-fumo. O rapaz era um empreendedor. Fez curso de marketing no Sebrae e inovou, lançou baseado com sabor. Maracujá e abacaxi francês. Foi um estouro.

Do ilícito à remissão, José trocou o crime pela retidão. Rima infame, porém necessária. Ele investiu em música gospel e prosperou. Abriu uma gravadora de fitas cassete, quem se lembra delas? Crente não pirateia, e ele vendeu fitas como água que desce o Jordão. Longe das festas e tentações, ele guardou 40 por cento de tudo que ganhou, pois a fábula da infância deixou sua lembrança. Ele era formiga, não era cigarra. E a cigarra? Tocava viola no planalto.

José foi das fitas aos CDs e DVDs. Já vendia daunlouds quando percebeu que poderia ter um inverno confortável e tranqüilo. Acumulara um bocado de dinheiro junto ao governo. INPS, INSS, ISSQN, ISS, ICMS, IR, II, IPTU, ITR, IOF, IRGA, INCRA, ITBI, ITBM, IPVA, INRI e todos demais is. Contudo, José não queria parar. Ele era uma boa formiga e queria alongar seu outono. Trabalharia até que o inverno se fizesse presente. O que apressou as coisas foi outro i, o infarto. José chegou cedo ao escritório, tomou um café e sentiu uma dor muito intensa, que se estendia do braço ao peito. Enfartou. Pôs pontes e molas. O médico recomendou descanso. Resignado, José reconheceu que o inverno chegara. Era hora de descansar. Ainda bem que ele era formiga e passara a vida guardando. E a cigarra? Bem, Jean de La Fontaine havia se enganado. Ela era um paquiderme, na verdade. Gastou tudo que José amealhou, em farras no planalto, terminando por pisar nele.


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22.6.09

530 - Das gorjetas

Foto: Paulo Heuser
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Das gorjetas
Paulo Heuser

Vejo que a gorjeta tornar-se-á obrigatória, por lei. Se já não era de direito, era de fato. Ninguém sai do restaurante sem deixar algum. Os dez por cento farão parte do salário dos garçons. É justo, pensando bem. Se o dono do restaurante recolhe, tem de pagar ao empregado. Porém, fica um gostinho de jetom, emolumento recebido pelos parlamentares, por terem deixado de trabalhar. Eles ficam discutindo sua santidade recíproca e se esquecem de votar os projetos em pauta. Resultado: trabalham nas férias e ganham jetons. A gorjeta do garçom não deixa de ser remuneração pelo que já foi pago. Certo, estou sendo injusto com muitos garçons que merecem o adicional. Muitos prestam um ótimo serviço. O que dizer daqueles que conseguem trazer à mesa um cafezinho, sem molhar o pires? Heróis, heróis.

Há garçons e garçons, o que parece evidente e desnecessariamente óbvio. Contudo, uma classificação se faz evidente. O garçom de churrascaria de rodízio é um comunicador. Ele grita com os clientes, faz piada com a forma física deles, insinua que o vovô está gagá e que a menina encabulada flerta com o rufião da mesa ao lado. Chama de maricas os que recusam a aguardente de cobra curtida e pinga gordura e sangue sobre todos. Ele sempre acerta os fregueses. O papel de embrulho, que faz às vezes de tolha de mesa, sai incólume, mas a roupa dos fregueses vai direto para a lavanderia. Os espetos repletos de costelas e entrecotes viram floretes de uma luta entre garçom e cliente. Quando o cliente não agüenta mais, o garçom larga uma lasca de 530g de carne gorda no prato do pobre coitado e o desafia a liquidar o assunto. É o eterno conflito entre o capital (boi) e o trabalho (cliente).

Difíceis são os garçons estrábicos. Nunca se sabe para quem olham, quando tiram o pedido. Monótonos são os garçons de rodízio de mocotó. Completamente diferentes dos garçons de churrascaria de rodízio são os garçom de rodízio de galeto. O princípio é muito semelhante, mas a atitude é completamente diferente. Os últimos exercem uma profissão que tem mais a ver com a linha de produção e a cronoanálise, estudada por Frederik Taylor e Frank Gilbreth. Esses sujeitos estudaram, há quase dois séculos, como os clientes e garçons de uma galeteria produtiva devem se comportar. É uma ciência exata. Você e os frangos entram por uma ponta e você sai, empanturrado, pela outra. O garçom não pode transmitir emoções, pois estas podem retardar a linha de montagem, causando prejuízos. Piadas, então, nem sonhar!

Muitos vêm se queixar dos garçons franceses, que, por sinal, não devemos chamar de garçons. Monsieur é mais conveniente, principalmente quando o garçom é homem. Os garçons franceses só fazem questão de duas coisas: estarem a cavalo da situação e não servirem norte-americanos. Para satisfazer a primeira condição, faça-se de pobre coitado que não fala inglês, especialmente se você não falar inglês. Parecerá sincero. Diga logo, como puder, que você é brasileiro, antes que o confundam com um argelino recém-imigrado. Tudo muda, a cara carrancuda enche-se com um sorriso e eles falam:

- Ronaldaux, mulataux, caipirinaux e sambaux.

Pronto, você já foi aceito como avis rara, em terra de gente culta demais. Só não peça coca-cola, um dos maiores pecados que alguém pode cometer na França. Pode escarrar da Torre Eiffel, fazer pipi no Sena, comer sanduba no túmulo de Robespierre, porém, coca-cola, nunca! Se você não conseguir fazer nada disso, diga que veio de Emembaba. Eles acham exótico. Novamente, só não peça coca-cola. A propósito, se você for japonês, esqueça. Mesmo sem coca-cola, não será servido. Japoneses fotografam o garçom, sem autorização.

Se os garçons alemães não são simpáticos, tampouco são complicados. Oferecem-lhe a opção regional de comida típica: Sauerkraut, Wurst und gebratene Kartoffeln. É claro que o cardápio varia, de região para região. Se aquele é um prático típico da Baviera, Wurst, gebratene Kartoffeln und Sauerkraut é um prático típico da Baixa Francônia. Para quem gosta, ótimo. Só não peça chope, pois ninguém lá sabe o que é.

É na Itália que os garçons sabem exercer sua profissão com elegância e maestria. Não nos restaurantes ao ar livre da Praça de São Marcos, evidentemente. Um bom garçom italiano é mais do que o dono do restaurante. É a autoridade máxima, exercida com extrema elegância e firmeza, ao mesmo tempo. Será fácil agradá-lo, desde que não se peça o que está no cardápio. Deixe o pedido por conta dele, afinal, é ele que entende de comida. E prepare umas boas três horas para o almoço. Os garçons italianos ficam felizes quando descobrem que você é brasileiro. Dirão, via de regra, que a dançarina da boate do hotel também é. É difícil deixar de dar gorjeta aos garçons, a não ser que eles sejam espanhóis. Pedindo do cardápio, ou fora dele, você será xingado. Afinal, estará perturbando o local e sujando a louça, sem falar na cozinha.

Só temo que os nossos garçons imitem nossos parlamentares e criem uma nova comissão de serviços, de dez por cento, digamos, que poderão chamar de, como direi, gorjeta.

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18.6.09

529 - Mens insana in corpore insano


O patriarca de uma FOBC
Senador da República José Sarney
Foto: Wikipedia
Mens insana in corpore insano

Paulo Heuser


O Mata-Bancário soprava na Caldas Júnior. Vinha lá do rio, pulava sobre o muro da Mauá e deixava seu rastro de gelo. Não vinha sozinho, trazia a chuva gelada. A moça que vende jornais na esquina da Siqueira Campos vestia traje de astronauta. Quem sobe a Serra atrás do frio deveria experimentar a sensação térmica daquela esquina. É de graça, porém, bem pior. E fica aqui, coisa nossa, porto-alegrense. Em vez de tomar chocolate quente, pode tentar o ensopado de vísceras do Jacó, com ovo picado, salsinha e pimenta medonha. Aquece a alma e algo mais. Deveriam trazer turistas do nordeste para conhecê-la, pois esquina como aquela, não há, pelo menos neste país. Pode haver lá em Vyngaïakhinsk, na Sibéria Ocidental. Contudo, lá não há dobradinha do Jacó, só sopa de repolho.

Pois, em meio a esse cenário de desolação térmica havia uma caixa de papelão, deixada ao lado da entrada do prédio. Por entre as tampas semicerradas via-se um improvável par de olhos, pertencentes ao menino maltrapilho que se escondia no interior da caixa. Choque! Ninguém espera por aquilo. Situação terrível. Mas, os calejados alfandegários de carreira sabem das coisas. Mendigo nenhum, em sã ou insana consciência, vai morar dentro de uma caixa de papelão, em plena Caldas Júnior, num dia de Mata-Bancário. É suicido, são ou insano, e reforça o apelo à piedade. Quem não está habituado a esses artifícios mercadológicos, digamos assim, dá em dobro. E, talvez, se põe a pensar no que levou aquele menino a chegar àquela situação. A resposta está escancarada, só não a vê quem não quer. Faltou-lhe uma família bem composta. As famílias bem compostas não deixam seus membros à mercê das intempéries.

Uma estrutura familiar bem composta logo coloca suas crianças num dos inúmeros programas sociais mantidos pela sociedade incivilizada, como o PPN – Programa do Pequeno Nepotista -, o PMP – Programa do Menor Parente - ou o PNC – Pequeno Nepotista Cruzado. À medida que crescem, outros programas sociais os esperam. Há de se destacar o programa MPE – Meu Primeiro Estado. Todos esses programas fazem parte de um pacote chamado FOBC – Família Oligárquica Bem Composta -, uma das raras unanimidades nacionais, mantido e operado pelos mais variados matizes ideológicos, que, apesar de mantidos por ela, navegam à margem da sociedade civil.

O pobre menino navega na sua bizarra nau de papelão, nos gélidos ventos da Caldas Júnior. Um par de olhos esbugalhados à procura de um porto que não encontrará, pois nasceu aqui, não nasceu lá.

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11.6.09

528 - Sempre às sextas. Às vezes, às quartas.


Foto: Wikipedia
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Sempre às sextas. Às vezes, às quartas

Paulo Heuser

Não era sexta-feira. Era quarta. Porém, a véspera de feriado tinha cara de sexta. Wanderleyson vinha assoviando pelo corredor. Estágio novo e tíquete no bolso, que mais poderia querer da vida? Tênis de marca, boné e sanduicheira elétrica na mão. Ele ia à copa para o primeiro café da manhã.

Se há coisa que Wanderleyson não abre mão, no primeiro café da manhã, essa coisa é um bom hambúrguer. Duas fatias de pão, bife de carne moída, ovo, bacon frito, queijo processado, maionese, ketchup, ervilhas e milho fazem seu desjejum ideal. Melhor do que isso só se for recheado com batata-palha e chips sabor churrasco. Ele entrou na copa e esperou por uma tomada livre. Chegar tarde deu nisso. Todas as tomadas foram ocupadas. Pôs um som no aipode e dançou sozinho, abraçado na sanduicheira.

O cheiro de gordura e queijo queimado impregnava o ambiente. Suas roupas cheiravam a rodízio de fondue. Um a um, os estagiários conectavam suas sanduicheiras, numa espécie de ritual. Kirieleyson exibia seu novo modelo, com MP3 e câmera de 8 megapixels. Chegou a vez do Wanderleyson. Repetiu a cena diária, colocou o hambúrguer na sanduicheira e apoiou-se sobre ela até que a tampa fechou, prensando o hambúrguer. Então, esperou até que o queijo começasse a borbulhar.

Os cinco sentidos de Wanderleyson reduziram-se a dois, audição e olfato. Adorou o fedor maravilhoso de loja de fast food reinante na copa sem janelas, ao som do pagodão no aipode. Assim que a fumaça levantou, pelas bordas da sanduicheira, ele passou a vez ao próximo e sentou-se para comer aquela maravilha acompanhada de uma garrafa PET de refrigerante. Dois litros de água, xarope e gás. Às nove, seria hora do segundo café da manhã, com bolachas recheadas e sem café. O som do aipode impediu que ele ouvisse a conversa ao seu redor. Ele chegou a reparar na agitação do João, o estagiário crente. Por que alguém havia lhe dado tal nome, em vez de algo mais sonoro, como Joylson ou Johnyson? Johnson, até. Os outros estagiários viviam zoando com ele e o apelidaram de Padreco, porque usava um crucifixo, não bebia refrigerante e, o pior, não tinha sanduicheira elétrica nem aipode. Usava os cabelos no melhor estilo tiozão. Ele andava nervoso, de um lado para o outro, segurando uma garrafa térmica e uma cuia de chimarrão. Cutucou o ombro de Wanderleyson, que metia os dentes naquela pilha de camadas de coisas deliciosamente gordurosas. O aipode bombava o pagode preferido do comensal, e ele não dava a mínima para o Padreco. Contudo, o crente parecia possuído, pois o cutucou com mais força no ombro. Wanderleyson tirou o fone da orelha direita a tempo de ouvir o Padreco gritar:

- Esconderam a bomba!

Wanderleyson saltou da cadeira e pôs-se a correr, arrastando sua preciosa sanduicheira elétrica. Venceu os 18 andares em tempo recorde. Quando chegou à rua entendeu, finalmente, por que fazia tanto barulho enquanto descia as escadas. O fio da sua sanduicheira enroscou-se nos de outras oito, algumas ainda com seu conteúdo fumegante. Ele teve de sorrir quando identificou, em meio aos destroços, a razão do exibicionismo do Kirieleyson. Wanderleyson ficou algo ofegante, já que desceu os 18 andares, pela escada, gritando:

- Bomba, bomba!

Sua debandada não passou despercebida, e ele arrastou, além das sanduicheiras, meio prédio atrás de si. A palavra bomba foi repetida, aos berros, em todos os andares por onde passou. Finalmente na rua, estranhou a brisa fria. Sentou-se no meio-fio e pôs-se a pensar. Era um sujeito de sorte. Em apenas um dia, ele salvou sua sanduicheira elétrica, alguns pedaços das outras oito, seu aipode e a vida de centenas de pessoas. Não encontraram bomba no prédio, a não ser a de chimarrão, do Padreco, que Kirieleyson havia escondido no congelador da geladeira do ketchup. Porém, com um assunto desses não se brinca. Na dúvida, foram embora, mesmo sendo 8h37 de uma quarta-feira véspera de feriado.

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9.6.09

527 - Delírios da realidade

Teorema de Bruno Giorgi
Foto: Wikipedia
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Delírios da realidade

Paulo Heuser


Outra lá da Praça da Alfândega. Numero Um, primeira mulher do Nestor, teve de sair de baixo do Teorema, obra de arte de Bruno Giorgi. Culpa de quem levou a escultura, desde a João Manuel até a Capitão Montanha. O Teorema ficou sem marquise. Assim, quando chove, ela tem de morar nas escadas do banco. Ela passa o dia falando com alguém supostamente imaginário através de um telefone certamente imaginário, enquanto Nestor exerce sua atividade de mendigo titular da praça. Hoje ela gritava com o aparelho, talvez para compensar alguma queda de qualidade do sinal devida à chuva.

- Eu te falei, mulher! Desci a Pinto Bandeira e rasguei a bacia. O cara disse que a mãe dele joga um bolão lá no poste da Bento Martins. As duas freiras calcularam o prejuízo e alguém terá que pagar. Vou mandar a conta para a faxineira da creche. O bule perdeu o nariz quando os homens subiram pela parede da piscina...

Não dava nem pausa para respirar. Ela conseguia falar expirando e inspirando. O pessoal que anda por lá já está acostumado com os bate-papos da Número Um. Já nem ouvem mais. Porém, para os principiantes, causa espanto. Principalmente pela ótima dicção. Indiferente aos passantes, ela mandava ver:

- A base de sustentação do feijão preto é a mola mestra da hipocondria armênia de grandes altitudes. Os hunos do Mercado Público vendem roçadeiras fabulísticas levadas a cabresto...

Dos passantes, um se deteve por mais tempo. Lembrava o Sr. Pickwick, de Charles Dickens. Ele ficou a ouvir a verborréia da figura rota que se encolhia de frio.

- A hipótese do homem solteiro abriga os dolmens especulativos da hiperventilação tubária. Melhor assim, pois as patas traseiras não sofrerão descargas atmosféricas acessórias. Ipso facto, ficamos acocorados...

O Sr. Pickwick parecia maravilhado, pois tomava notas num pequeno caderno marrom. Número Um, por sua vez, encolhia-se cada vez mais. A chuva dera lugar ao frio, e seu velho abrigo adidas não vencia mais olimpíadas. Ele demorou-se demais, ao lado dela, chamando-lhe a atenção.

- Eu te falei, mulher! Botaram um cara a me espionar. Grampearam meu telefone. Vou ter de falar em código. O que é que você está olhando? Também vai me chamar de louca?

Pickwick falou, pela primeira vez.

- Olhando ao redor, concluo que você é a única certa. Nós é que estamos loucos.

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8.6.09

526 - Nosofobia

Imagem: Wikipedia
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Nosofobia

Paulo Heuser

O Zé adoeceu. Parou no hospital. Do mal que o acometeu, nada fala. Segundo uma enfermeira falastrona, foi fruto de uma estranha sucessão de eventos que se iniciaram com a ingestão de uma dose excessiva de purgativos seguida de direção. Já pensam na campanha “Se for dirigir, não purgue!”. Felizmente, nada de mais grave aconteceu. Coincidentemente, no mês passado, o Zé foi sorteado no plano de saúde. Ganhou um upgrade de classe no hospital. E chegou o momento de usufruí-lo.

Zé entrou de primeira classe, no estacionamento vip. Pago, naturalmente. Cadeira de rodas elétrica e estufadinha em couro. Paga, naturalmente. Aquilo sim era hospital, os outros eram apenas míseros nosocômios. O plano Advantage Royal Prize of Disease garantia acomodações à prova de gemidos. Cenas típicas dos nosocômios comuns, como choro pelos corredores, ali não havia.

O que falar do quarto, então? Uma suíte Master Pharaonic não perde nada para as instalações dos melhores hotéis seis estrelas. Lá não há ruído externo, apenas uma suave música de piano bar. A parafernália de equipamentos hospitalares está disfarçada por trás de acabamentos em madeiras finas. Há uma enorme TV que pega quase todos os canais imagináveis. Pagos. Há um gratuito, na verdade, que transmite cenas de emergências médicas.

Apesar do preço elevado dos serviços extras, que eram quase todos, Zé ficou à vontade. Sentiu-se infinitamente melhor, quase se esquecendo de que estava doente. Convalescia no paraíso, cercado de anjos, lindas enfermeiras no mais impecável uniforme branco. Se isso era adoecer, que fosse.

Não havia como experimentar todas as facilidades à disposição em tão pouco tempo de internação. Como teria apenas uma noite no paraíso, iria experimentar da renomada gastronomia do lugar. O restaurante do hospital era limitado aos exclusivíssimos portadores de passes especiais, fornecidos apenas pelos planos de saúde superiores e pelos cartões de crédito topo de linha. Onde mais se poderia jantar agora e ir ao circo no ano que vem? Coisa finíssima, com chef provençal, importado diretamente das Costas do Ródano. Conseguir reserva não seria fácil, mas a conciergerie, portaria metida a besta, seria eficiente. Agendar-lhe-iam para as 21 horas.

O restaurante está lotado. A sugestão do chef é pés e tripas de cabrito em molho provençal. Não há fila, pois só atendem mediante reserva. Zé chega à porta e espera que o homem de fraque a abra. Nada. Fica ali, de pé, sem saber o que fazer. Há alguma senha? Chega um casal, em trajes de noite, que lhe lança um olhar de cima a baixo e pede licença. O homem do fraque lhes abre a porta, sorridente. Zé fica. Por fim, bate levemente à porta, gesto aparentemente ridículo, pois a porta é de vidro. O homem de fraque a abre parcialmente.

- Pois não?

- Boa noite, tenho uma reserva para as 21 horas.

- Lamento, senhor, mas nós exigimos traje mais formal do que o seu.

Zé veste um reluzente pijama listrado em cinza e cinza. Nos pés, suas pantufas preferidas.

- Qual é o problema? Não se pode vir vestido assim?

- Não. O senhor deverá vestir traje formal, condizente com o local. Vestido desse modo parecerá doente!

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