31.8.08

452 - A festa da Flor

Les Deux Carrosses de Claude Gillot, 1707
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A festa da Flor

Por Paulo Heuser


Ontem foi a festa de 50 anos da Flor. Até aí, nada de mais. A maioria das pessoas completa 50 anos. Contudo, as festas de aniversário da Flor são diferentes quando ela completa idade que perfaz múltiplos de dez. Foi assim nos 30, nos 40, e agora, nos 50. Temos de esperar dez anos pela próxima. Alguns esperam, mas não conseguem chegar lá. O destino interrompe sua espera. Eu sou daqueles que conseguiram chegar lá. Portanto, festa, grande festa!

Já tentamos convencer a Flor a fazer festas qüinqüenais, trienais, bienais, sem sucesso. Temos de esperar dez anos pela próxima. É claro que ela festeja seu aniversário anualmente. Coisa de família, e um ou outro. Porém, decorrida outra década, ela convida as mesmas pessoas que estiveram na década anterior, e faz as grandes festas. Fazem-se amizades de década nas festas da Flor. São amigos que vemos apenas a cada dez anos, mas, enfim, são amigos das festas da Flor, o que os torna outro tipo de amigos. Por alguma razão desconhecida, o tempo não parece ter passado, nas festas da Flor, apesar das mais ou menos evidentes modificações físicas. Mesmo que o tempo aparente passar de forma diferente, nas festas da Flor, ele passa de outra forma do lado de fora. Fulano chega com outra mulher, e Sicrana chega com outro marido. Na próxima, poderão estar novamente juntos.

A festa da Flor teve sessão de fotos antigas, que invariavelmente geram comentários sobre a aparência de um ou outra. Nossa, ele tinha cabelos! Essas festas de década permitem papos igualmente de décadas. O Fulano falava de prensarem um disco da banda, na dos 20, gravarem um cassete, na dos 30, queimarem um CD, na dos 40. E agora? Bem, agora a coisa complicou. Sicrana sonhava com um serviço de festas que servisse strogonoff, na dos 20; um xis-strogonoff, na dos 30; uma tele-entrega de strogonoff, na dos 40, e um rodízio de pizza de strogonoff, na dos 50. Coisas do tempo.

Alguns convivas mantêm a mesma conversa, desde 1978. O truque para que a conversa não decaia é arrumar um assunto atemporal, como a beleza das equações do calor e da onda. Outro é xingar o governo, pois não há governo que não mereça ser xingado. Na festa dos 20 xingavam o governo do Geisel – em silêncio; na dos 30, o do Sarney; na dos 40, o do FHC; na dos 50, o do Lula. É só xingar o governo. Qual, não interessa muito. Sempre é um assunto atual. O Collor foi mais esperto, pois evitou os aniversários de década da Flor. FHC e Lula não foram tão espertos. Com dois governos, dificilmente escapam.

A Lei Seca não é novidade, para os convivas das festas da Flor. Nos outros aniversários dela o pessoal já ia de taxi. É que as festas da Flor são feeeestas. Portanto, todo cuidado é pouco. Desta vez, fiz como das outras, tomei um taxi. Para voltar, na madrugada, tomei outro. Taxi, bem entendido. Então comecei a temer pela minha vida. Meu taxi era dirigido pelo motorista, e guiado pelo demônio. Lá pelas tantas, ele comentou que a minha rua era aquela contramão. Respondi-lhe que, olhando pelo lado certo, não era. Após algumas roletas-russas, ele chegou ao mais alto píncaro da audácia volante, ao efetuar uma conversão à esquerda, em plena perimetral. Por isso, não me admirei nem um pouco quando ele entrou na minha rua pela contramão. Temi não chegar à festa dos 60 da Flor.

Aquele motorista está cumprindo pena no semi-aberto. Durante o dia, dorme no xilindró, durante a noite, dirige um taxi.

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28.8.08

451 - O voto na praça


Foto: Paulo Heuser
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O voto na praça

Por Paulo Heuser

Corre por aí, à boca pequena, que isto ocorreu no início de agosto. Na reunião do conselho do Partido, já tarde na noite, o pessoal que trabalhava na campanha dos candidatos a vereadores queixava-se da dificuldade em se fazer campanha, frente à escassez geral de dinheiro, tempo na TV, espaço físico para afixar propaganda, além dos candidatos sem apelo algum. O corpo a corpo estava difícil. A maioria nem olhava para os candidatos, e os que aceitavam santinhos jogavam-nos fora logo a seguir, sem ao menos lê-los.

Todos olhavam para o Bocão da Urna, maior especialista do Partido, quando se trata de convencimento de eleitores sem candidato. Ele falava da necessidade de arregimentarem mais candidatos que chamassem a atenção do eleitorado. O prazo legal para a inscrição estava se esgotando. Bocão mostrou alguns vídeos do horário político da eleição anterior. Com aquela fração de minuto, disponível para cada candidato, o que se via e ouvia era algo como:

- MeunomeéCandidoAtoevouresolverasegurançaasaúdeea
educaçãovote99999!

Os candidatos também não ajudavam muito no aspecto físico. Todos eram comuns demais, como se fizessem parte do povo. Poderiam passar por vizinhos dos eleitores. O pessoal gosta de votar nos candidatos que se sobressaem, de alguma forma. Em outros tempos, quando havia fartura, era mais fácil fixar a imagem de alguém na cabeça do eleitor. Do jeito que ficou, terão de disputar os eleitores a tapa, na boca da urna. Em algumas seções haverá mais “orientadores” do que eleitores.

Bocão deixou a sede, a pé, e aventurou-se a caminhar pelo Centro, na companhia da Eufrázia, secretária do Partido. Talvez esta fosse a razão da aparente imunidade aos assaltos que experimentaram. Para quem não estava habituado, Eufrázia aparentava ter fugido da tela do King Kong. Ela se parecia com a irmã gêmea dele. Quando cruzavam corajosamente a Praça da Alfândega, Eufrázia soltou um grito pavoroso, enquanto saltava dois metros para trás. Bocão foi além, pulando sobre os ombros da Eufrázia. A razão do susto não era um assaltante, como seria de se esperar. Era o Nestor, expoente máximo da mendicância alfandegária. Eles se depararam com aquela figura estranha, balbuciando o tradicional me-dá-me-dá. Ao lado dele descansava a mulher número 2. O Nestor realmente estava feio. Talvez não fosse feio, enquanto abonado, mas ficou. Os anos de praça deixaram sua marca. O que assustava mesmo eram os olhos esbugalhados, destacados pela fuligem que tomava conta do seu rosto. Ele tinha algo de felino, pois fugia d’água como tal. Algo refeitos do susto, Bocão e Eufrázia seguiram na direção da Rua da Praia, supostamente mais segura.

Subitamente, Bocão vislumbrou a oportunidade que deixavam para trás.

- É ele, Eufrázia!

- Ele... quem? – disse Eufrázia, enquanto arredava os pêlos da testa.

- É ele, o Candidato! Aquele sujeito não passa despercebido nem no manicômio forense.

Na manhã seguinte, Eufrázia trouxe o pessoal do Partido à praça, à procura do Nestor. Encontraram-no atrás da escultura Teorema, de Bruno Giorgi, sua residência diurna. Ele descansava da labuta noturna. Estariam diante do mais novo candidato a vereador. Bocão já havia planejado tudo. Nestor apareceria, durante os sete segundos - espaço reservado para cada candidato -, e pediria o voto:

- Ãh, me-dá-me-dá-me-dá-...-me-dá!

Para não perderem nenhum me-dá, Nestor seguraria uma placa com seu número e a sigla do Partido. Que impacto causaria tal aparição! Ele atrairia todos os votos de protesto, de solidariedade, de antipatia e de qualquer outro sentimento não retratado na mesmice dos demais candidatos. Ao candidato a prefeito, bastaria aparecer ao lado do Nestor nos palanques. Estaria fatalmente eleito.

Não deu, desta vez. Nestor teria de reaprender a ler, tarefa para longo prazo. Mas, para 2012, quem sabe? Já há gente pisoteando os canteiros que rodeiam o Teorema. Alguns pensam em 2010, pois talvez ele não chegue vivo a 2012.

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27.8.08

450 - Ao apagar da chama

Foto: Wikipedia
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Ao apagar da chama

Por Paulo Heuser


A chama se apagou, o show terminou. Atletas e público voltaram para casa. Hora de voltarem às novelas e ao futebol. Serão quatro anos de preparo para os Jogos Olímpicos de Londres 2012, tarefa já iniciada há muito. O Rio de Janeiro está de olho em 2016. Os Jogos Olímpicos transformam cidades, basta dar uma olhada em Pequim, que mudou de cara para receber os turistas olímpicos. Aprenderam a sorrir, esconderam o churrasquinho de au-au, reduziram a poluição e deram o maior show de pirotecnia já visto. Sem esquecer o show de conquista de medalhas, onde desbancaram as ex-potências do esporte. O Johnson virou Lingson.

Londres 2012 mostrará contrastes com Pequim 2008. Os londrinos não precisarão de muita tecnologia e de grandes manobras para obterem visibilidade maior do que 30 metros, pois o fog dá folga no verão, e muito da poluição foi controlado nas décadas anteriores. Os maiores índices de poluição ocorreram em 1952, quando três mil pessoas morreram em conseqüência do smog – smoke + fog. O que me deixa curioso, é o que farão no show de abertura. Um festival de rock, talvez, pois nisso eles são muito bons. O príncipe Charles fará um discurso de boas vindas, recheado com pequenas piadas britânicas. Aquele refinado humor britânico é muito bom. Ele provoca gargalhadas de golfe, além das palmas, é claro. A nação que deu Monty Python e John Cleese ao mundo merece respeito humorístico.

Esse humor britânico viria da comida deles. É impossível não rir dela. Londres tem seis mil restaurantes, representantes da culinária de mais de 70 países. Ainda bem, para eles e para os estrangeiros. O maior prodígio britânico foi a exportação de alguns hábitos alimentares às colônias. Até hoje os países anglófonos ainda compartilham do café da manhã da culinária inglesa. O café da manhã dos norte-americanos é a cara do café da manhã dos ingleses: bacon, ovos, salsichas e pão, tudo frito, inclusive o pão. Bombas de gorduras, porém saboroso. Já dos outros pratos, é melhor não saber.

Nem sempre foi assim. As primeiras colônias dos EUA, na Terra Nova (1583) e na Virgínia (1587), foram abandonadas devido à ferocidade dos índios revoltados com a culinária dos conquistadores. Trata-se de uma especulação, é claro. Eles não teriam suportado a kidney pie – torta de rim -, nem fish and chips – peixe e batatas fritas – com muito ketchup e enrolados em jornal. Como os ingleses ainda não conheciam a batata inglesa, nessa época, presume-se errado que fish and chips seria só fish com ketchup, enrolado no jornal. Ocorre que tampouco havia ketchup, nem jornais impressos. Isso causa algum abalo na hipótese. O jornal é imprescindível, pois é ele que dá gosto à coisa.

Os britânicos são cordiais, em geral, apesar da aparência um tanto empoada. À pergunta sobre um bom lugar para se comer por lá, terão a resposta na ponta da língua: “Oh, bem, eu tentaria Paris ou Roma!”. Nesse aspecto Rio 2016 dará de dez a zero neles. Afinal, no Rio poderão comer feijoada. E feijoada. E mais feijoada. Para variar, feijoadinha de feijão branco, em preparo para a próxima feijoada. Haja gás!

Caipirinha não é mais bebida típica do Rio de Janeiro. Muitos parisienses juram que ela foi inventada lá, principalmente os argelinos. Alguns venezianos pensam o mesmo, pois caipirinha é coisa da terra do carnaval, e, afinal, quem inventou o carnaval? Os gregos também dizem que foram eles, mesmo que lá a caipirinha seria feita com ouzo - bebida feita de anis. Rio 2016 será na base da feijoada – quero vê-los pronunciar isso – com gaibirrinia. Feijoada soará como feiioaada, em alemão, pois o jota pronuncia-se como o i. A propósito, o vê se pronuncia como o efe, e o dobre-vê como vê. Simples, não é? Por que a letra a está duplicada? Porque deve estar, ora.

Numa coisa Londres levará grande vantagem sobre Pequim 2008 e Rio 2016. Lá todos falam inglês, apesar de os norte-americanos não concordarem muito com isso. Até as crianças lá falam inglês! Nota-se que investem pesado no ensino de línguas.

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23.8.08

449 - Azulejos Brancos

Mausoléu de Teodorico. Ravenna, Emilia Romagna, Italia
Foto: Paulo Heuser
Azulejos brancos

Por Paulo Heuser


Se há alguma coisa que eu invejo, em algumas pessoas, é a criatividade. Admiro especialmente aquelas que conseguem solucionar qualquer problema através do improviso. Assim é o Valmir. Ele raramente compra alguma coisa. Conserta tudo, mesmo que a aparência não fique perfeita. Ele conserta até mesmo os palitos de fósforo quebrados. Na praia, todo mundo sabe onde Valmir armou seu guarda-sol. É o único que combina partes de tecido estampado com partes de tecido floreado. Estranho, porém funcional.

Valmir se casou com a Clara, que adora azulejos limpos. Adora, é pouco. Ela é alucinada por azulejos limpos. Azulejos brancos. Toda a casa deles tem azulejos brancos, em vários formatos, mas brancos. Essa mania fez com que ela conhecesse Valmir. Eles tentavam comprar um Vaporetto. Não daqueles que fazem as vezes de ônibus nos canais de Veneza. Eles procuravam uma daquelas máquinas de limpeza com vapor. Clara e Valmir se encontraram em três lojas, onde pediram o mesmo produto em falta. Na terceira vez, entabularam uma conversa sobre azulejos brancos. Brancos e limpos, naturalmente. Azulejo para cá, azulejo para lá, casaram-se e foram passar a lua-de-mel na Europa, na trilha de cerâmicas deixada pelos mouros. Passaram por Ravenna, na Itália, onde admiraram a cerâmica bizantina, seguiram por Málaga, na Espanha, e finalizaram a viagem duplamente temática na cidade de Sintra, em Portugal. A lamentar, somente a cor. Por que pintavam a cerâmica? Eles ficaram a imaginar salas inteiras recobertas de azulejos brancos. Planejavam comemorar as Bodas de Prata no Egito, onde veriam o berço do azzelij – azulejo, em árabe. O destino e o feijão fizeram com que essa viagem nunca ocorresse.

A mania por limpeza dos azulejos brancos da Clara fez com que instalassem a cozinha fora da casa, numa peça afastada. Cozinha gera sujeira, e esta é a inimiga número 1 da limpeza. Clara mantinha a cozinha original vazia, um lugar perfeito para se admirar a sucessão de peças cerâmicas brancas. Desde que retirasse os calçados, antes de entrar. Nada de tocar nas paredes, pois os dedos deixariam impressões digitais. O banheiro da casa nunca foi utilizado. Optaram por fazer a higiene em peça anexa, onde as paredes e o piso foram recobertos com grandes peças de cerâmica vermelha. Nada que lembrasse, nem de longe, os maravilhosamente monótonos azulejos brancos. Planejavam ter filhos, mas estes nunca entrariam na cozinha. O destino e o feijão fizeram com que os pimpolhos ficassem apenas nos planos.

Clara ainda não havia desistido do Vaporetto. Porém, não conseguia encontrá-lo em lugar algum. E Valmir não havia desistido de improvisar um aparelho de limpeza a vapor. O azar do casamento foi o fato da Clara sair, para buscar arroz, no exato momento em que Valmir teve um rompante de criatividade, ao bater os olhos na panela de pressão do feijão, atraído pelo som característico do vapor escapando.


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448 - A classe média XI - O estrangeiro


Cachaçaria Fingerhut. Foto: Paulo Heuser
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A classe média XI – O Estrangeiro

Por Paulo Heuser


A vida corria tranqüila, no Lado de Cá do Cinamomo. Nada denunciava o que estava por vir. Aquele dia seria diferente de qualquer outro, e seria contado em prosa - pois em verso seria coisa de frouxo - para as gerações seguintes.

O crescido terneiro mugia de tédio, quando Padre Antão foi se espreguiçar defronte a igreja. Dona Clotilde vinha levantando poeira, a bordo do seu poderoso Renault Dauphine, que um dia foi verde esmeralda, percorrendo intrepidamente os 87 metros que separam sua casa da Paróquia do Lado de Cá do Cinamomo.

- OVNI, OVNI, OVNI!!! – gritava o sétimo dos 12 irmãos, proprietários do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos, enquanto apontava para o céu. Padre Antão olhou na direção para onde o Sétimo apontava, sobre o telhado do salão paroquial, e viu algo que refletia o sol da manhã. Algo metálico, com certeza. O padre apressou-se em buscar o binóculo Carl Zeiss, que seu avô trouxera como lembrança das trincheiras da Alsácia. Através de uma pequena área clara, em meio aos fungos que dominavam as lentes, Padre Antão conseguiu vislumbrar algo que se assemelhava com um balão prateado. Sob ele, dependurava-se uma espécie de cabine esférica, fazendo as vezes de gôndola. A nuvem da poeira levantada pelo bólido da Dona Clotilde encobriu a cena.

- Não é um OVNI! É um balão! – declarou Padre Antão.

Quando a poeira assentou, já se via o balão em detalhes, inclusive a bandeira dos EUA que cobria a lateral da cabine esférica. Logo pareceu evidente que a trajetória o levaria ao alambique do Sétimo, que saiu em louca disparada, temendo pelo pior.

O crescido terneiro mugia, talvez de admiração, talvez de apreensão.

Padre Antão passou a tocar o sino da igreja, chamando o pessoal que estava na roça, como Linoberto. Para alívio de todos, principalmente dos 12 irmãos, a cabine do balão passou raspando sobre o telhado do alambique, indo estatelar-se no potreiro do Sétimo. O pessoal apareceu de todas as direções. Aquilo era um grande evento, sem dúvida. Muitos deles nunca haviam visto um balão. Ainda mais assim, todo prateado.

A abertura da porta da cabine ofuscou muita abertura de porta de nave de ET. “Fsssss...”. A equalização das pressões interna e externa foi audível. Todos recuaram, quando um homem vestindo traje prateado surgiu pela porta. O Sétimo não se conteve:

- Cuidado, pode ser um ET americano! O homem sorria e mostrava as palmas das mãos. Linoberto pensou que o Estrangeiro os considerava aborígenes, pois fazia o gesto intergaláctico de paz.

- Mim Steve! – disse o sorridente Estrangeiro.

- Mim Linoberto! – devolveu-lhe o próprio.

Linoberto e o Padre Antão arranhavam o inglês de colégio, suficiente para entabularem uma conversa sem pronomes pessoais regidos de preposição. O Estrangeiro explicou que tentava dar a volta ao mundo, quando uma corrente de altitude falhou, e ele acabou no chão. Ele tentou comunicação por rádio, com sua base, em Chattanooga Tennessee, mas não teve êxito, pois estava muito baixo. Linoberto tranqüilizou-o, pois o rapaz do leite iria à cidade, e lhe daria uma carona. De lá o Estrangeiro poderia chamar a equipe de socorro, para transportarem a cabine. O invólucro do balão estava perdido, pelos inúmeros rasgos. O Estrangeiro doou o balão à igreja. Padre Antão ficou muito feliz, pois Dona Clotilde poderia confeccionar diversas roupas, para darem aos pobres, no dia em que encontrassem algum do Lado de Cá do Cinamomo.

O rapaz do leite fez um mapa para que o Estrangeiro pudesse voltar ao Lado de Cá do Cinamomo, quando sua equipe chegasse. A cabine de vôo virou atração turística. Contaram mais de dez visitas, somente na primeira semana. Decorrido esse prazo, Linoberto ficou preocupado. Por que o Estrangeiro demorava tanto a voltar? Talvez sua equipe demorasse. O homem parecia ter gostado dali, pois chegara a provar da “boa”, produto do alambique que quase destruíra inadvertidamente. Será que o rapaz do leite errara o mapa?

Decorridas duas semanas, Linoberto já pensava em tentar alguma comunicação com o Governo. Pareceram adivinhar seus pensamentos, pois o Estranho apareceu no horizonte, acompanhado de uma tropa, a bordo de um grande caminhão do Exército. Dirigiram-se diretamente ao 12 Irmãos, onde o Estranho estranhamente recusou a “boa”. Ele confidenciou ao Linoberto que não podia beber em serviço, diante das testemunhas do Exército.

- Sua vinda tem algo a ver com o balão? – Linoberto juntara alhos com bugalhos.

- Sim, completamente! – o Estranho olhava estranhamente para o copo servido a sua frente. Quando viu que os soldados olhavam pela janela, procurando a origem daqueles estranhos mugidos, ele entornou o copo, de um só gole. Uma imensa sensação de queimadura tomou conta das suas mucosas superiores.

- Vieram buscar a cabine? – Linoberto estranhou a ausência do dono dela.

- Sim, será apreendida como objeto de descaminho. O americano já foi preso.

- Por quê? – Linoberto tentava adivinhar qual era o argumento besta que havia enquadrado o Estrangeiro em algum artigo de alguma nova lei besta.

- Por ordem, ele introduziu aeronave no País, sem pagamento das taxas e emolumentos de importação, e ele cometeu crime contra a segurança nacional, ao introduzir e divulgar em território nacional mapa ou qualquer documento que o retrate ou descreva sem parte dele integrante!

- Você está falando do mapa que o rapaz do leite traçou, para que o Estrangeiro pudesse voltar, e pegar sua cabine? – Linoberto ficou boquiaberto.

O crescido terneiro mugiu, talvez de indignação, talvez de obnunciação.

- Sim, aquele mapa só apresenta o Lado de Cá do Cinamomo e a Capital. Falta-lhe todo o resto do País, inclusive, ou melhor, exclusive, a Amazônia. Ou seria exclusive, inclusive? Bem seja como for, a CPI das ONGs constatou que “tais informações enganosas são capazes de gerar desgaste nas relações bilaterais dos países afetados, bem como percepções mutuamente enganosas acerca das expectativas e da forma como os atores estatais se enxergam” (sic).

- Saúde! - desejou o Sétimo.

- Como, saúde? – nem Linoberto, nem o Estranho haviam entendido.

- Bem, ele está com soluço, não viu o sic? – Eles fingiram não ouvir a resposta, e o estrangeiro continuou:

- Estamos aqui também para intimá-los a hastear a Bandeira diariamente, conforme determinação normativa de que a regra seja cumprida em todos os núcleos habitacionais da Amazônia Legal.

- Mas, aqui não é a Amazônia Legal! – protestou Linoberto.

- Não é, mais foi incluída no substitutivo do Sen. Epitáfio Chaleira, por se tratar de área inatingível do Território Nacional, como as reservas indígenas já que ninguém mais consegue chegar até aqui.

- Que coisa mais besta! – reagiu Linoberto.

- Sim, Besta Lex, sed Lex!

O crescido terneiro mugiu, talvez de abnuição, talvez de abobalhação.

Maria ordenhava a vaca Antonieta, quando Linoberto chegou.

- Que confusão, Lino!

- É, a coisa ficou preta para o lado do Estrangeiro. Pelo visto, vão expulsá-lo do outro lado do cinamomo. Melhor assim, pois ele corre o risco de pegar quatro anos de prisão por causa do raio do mapa que o rapaz do leite fez.

- Parece coisa daquele filme, passado naquela praia daquela ilha onde plantavam aquele fumo diferente. – Maria cantarolou a música Voices.

- Teremos de hastear a bandeira todos os dias, no 12 Irmãos, em obediência a nova lei besta. O Sétimo até gostou desta, pois ele aparecerá todos os dias nas cerimônias de hasteamento e arriamento, a preparar-se para a Eleição.

- E o balão? O Estranho levou?

- Não, Maria. O Sétimo juntou coisa alguma com coisa nenhuma e teve o primeiro lampejo de raciocínio lógico em toda a sua vida. Ele pegou o gancho da lei do Sen. Epitáfio Chaleira e questionou a presença de tropas, e do próprio Estranho, em reserva territorial. Se tivermos de fazer a mesma coisa que os núcleos habitacionais indígenas fazem, teremos também os mesmos direitos. O Estranho consultou o pessoal do Minterra – Ministério dos Territórios Amazônicos e eles confirmaram que ninguém pode entrar aqui, sem autorização, nem o Sting, nem o Papa.

- Eles poderão voltar para buscar o balão, depois que arrumarem autorização?

- Poderão, mas o Sétimo preparará um processo a ser protocolado junto ao Minterra, que deverá tramitar durante anos, de gabinete em gabinete. Até lá, o Sétimo terá feito bom uso dele.

- Como, Lino?

- Ele pretende fazer umas mudanças na cabine, e utilizá-la como caldeira do alambique. Poderá aumentar muito a produção da “boa”.

O crescido terneiro mugiu, talvez de obcecação, talvez de obduração.


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447 - Puxa-puxa de Ijuí


Foto: Paulo Heuser
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Puxa-puxa de Ijuí

Por Paulo Heuser


Pela calmaria que se vê nas ruas, creio que esta será a eleição mais boca de urna de todos os tempos. O caixa ficou minguado, e a legislação não está ajudando muito. A simples proibição da afixação de propaganda nos postes transformou muitos candidatos a vereador em ilustríssimos desconhecidos. Aliás, eles já eram desconhecidos da população em geral. Apenas perpetuaram essa condição. Cidades grandes são, na verdade, complexos amontoados de gente, onde cada cidadão nunca cruzará pela maioria dos seus concidadãos. Portanto, muitos ficam sem saber em quem votar, especialmente aqueles que não são bem informados. Limitam-se a assistir aos programas de TV, geralmente dos estados do centro do País. Como aqui não podem votar no Datena, na Hebe, no Huck, ou na assassina da novela das oito, dependem da boca amiga na urna incerta. Três vivas à democracia, nos passos da Dança do Créu. É claro que a culpa pela desinformação não cabe apenas a um ou outro. Nem à democracia. Aparentemente, cabe a todos nós, que sofremos as conseqüências. Especialmente eu.

Esta campanha de boca em boca torna minha lagarteagem de rua um inferno. Outro dia, o clone da Whoopi Goldberg veio pedir voto. Aproveito a hora em que os outros almoçam para relaxar na praça. Então, eles aparecem. Os anônimos aduaneiros, já que a praça é a da Alfândega. O Nestor já anda meio incomodado, pois não querem pagar pelo seu voto.

O candidato anônimo anda sozinho, ou, no máximo, com mais um ou dois comparsas que carregam papéis e um modesto estandarte, que teima em ficar enrolado. Eles são a versão ao vivo dos operadores de telemarketing. O problema é exatamente este, eles estão lá em carne e osso, cara a cara. Com eles não funciona o argumento, que uso pelo telefone, alegando que o pai e a mãe não estão em casa, que o assunto deverá ser tratado com o Dr. Barbosa, no Setor de Enciclopédias, que lá não mora ninguém, etc. Também não dá para se sair correndo. Assim, há de se cortar o mal pela raiz, sendo chato.

Hoje a raiz veio junto. Quem já tem muitas horas de praça acha que já viu tudo, mas sempre há mais para ser visto. A abordagem de hoje foi feita por uma mulher na casa dos setenta, eu diria. Com certeza, ela só votaria por opção, não por obrigação. Era uma mulher um tanto rústica, com a aparência muito mal cuidada de quem trilhou outros caminhos ao realizar sinapses. Ou seja, aparentava ser doida varrida, daquele tipo que pára ao seu lado, sem nada falar, e fica a olhar de forma estranha. Então vem aquele constrangimento terrível. Interrompi a conversa que tabulava com outra pessoa, esperando pelo bote. Ela segurava meio pé de hibiscus, com raízes e tudo, numa das mãos, enquanto a outra empunhava sacos sabe-se lá do quê. Na cabeça, chamava a atenção o boné com a propaganda eleitoral de um candidato a governador nas Eleições de 1994. Ela quebrou o terrível silêncio, sibilando:

- Se fores para Ijuí, te faço puxa-puxa (?)!

Antes que alguém pudesse questioná-la, ela esclareceu:

- Não é chiclete de borracha (outro ?)!

Dito isto, seguiu, sorrindo um sorriso sem dentes. Ficamos a pensar que estas eleições terão bocas desdentadas de urna, mascando puxa-puxa que não é chiclete de borracha. Será alguma mensagem cifrada? Qual será o papel do meio hibiscus?

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19.8.08

446 - Classe média X - A grande revolução

Luiz Vaz de Camões
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A classe média X – A grande reforma

Por Paulo Heuser


Linoberto desatolava o terneiro mugidor, quando viu o jipe enlameado que trazia o cada vez mais familiar Estranho – único representante do Poder Central a encontrar o caminho para o Lado de Cá do Cinamomo - último bastião da classe média. O barro voava para todos os lados, denunciando um motorista mais afeito ao asfalto do outro lado do cinamomo. Numa das raras comunicações com o governo do estado, informaram da impossibilidade das máquinas melhorarem a estrada, pelo simples fato de não conseguirem encontrá-la.

O Estranho desceu sorridente do jipe que trazia identificação do Ministério da Cultura. Ele trouxe um passageiro, homem de estatura média, cabelos castanhos, aparência comum e vestido discretamente. Aguardaram que Linoberto acabasse de desatolar o terneiro, que mugiu de alívio, e acompanharam-no ao Bar Restaurante e Borracharia 12 Irmãos, onde já lhes esperava uma garrafa da “boa”. Linoberto não se conteve, e atropelou o protocolo:

- O que foi desta vez? Seremos forçados a aprender uma dança típica do Quirguistão, só porque aprovaram uma lei para tanto?

- Calma, Linoberto. Nada disso. Antes de mais nada, deixe-me apresentá-lo ao Secretário Extraordinário Para Assuntos Lingüísticos, Sr. Manuel Vaz Cascais.

- Prazer! – Linoberto apertou a mão dele, com firmeza, enquanto pensava que, pela aparência, o sujeito nada apresentava de extraordinário.

- Przer! – o nada extraordinário lhe devolveu o cumprimento, com forte sotaque d’além Atlântico.

- Português? – Linoberto ficou curioso.

- Não, na vrdad não! Sou brsleiro.

- Mas, por que fala desse jeito?

- Bem, stou a me prprar para rprsntar o gverno na rnião dos países de poplação lsófna. Assm, já stou a trnar o staque.

- Ele não fala o Português daqui? – Linoberto olhava para o Estranho, que consultava um livro intitulado Dicionário Português-Português.

- É um pouco diferente, mas dá para se entender. – disse o Estranho – Depois de algum tempo, e de ler os 8816 versos dos Lusíadas.

- Bem, sja cmo for, stá a contcer a VII Cmeira – Cimeira - dã Cmnidade de Países de Lngua Prtguesa. Como o gverno prtguês crou um fundo de 30 mlhões de Euros, stamos prveitando pr dvlgar a rforma rtogrfica da Lngua Prtguesa.

Por incrível que pareça, Linoberto começou a entender o homem. Havia uma regra que permitia a tradução do português para o português. Era suficiente acrescentar algumas vogais em meio às primeiras consoantes. Ele passou a traduzir o que o lusófono falava, para o Sétimo, que acumulava os cargos de Prefeito do Lado de Cá do Cinamomo, garçom e borracheiro do 12 Irmãos. O Sétimo confundiu cimeira com cinamomo.

- Onde eles falam essa língua, também tem cinamomo?

Linoberto tentava descobrir qual seria a nova lei idiota que haviam votado do outro lado do cinamomo.

- Certo, mas o que nós temos a ver com isso, do Lado de Cá do Cinamomo?

- Exclente prgunta, gajo! – o Vaz Cascais ficou tão entusiasmado que o terneiro mugiu em resposta. Um mugido estranho, sem vogais. Apenas “Mmmmmmmm!”.

- O Gvrno Brsleiro assnou o Trtado dã Rforma Rtogrfica dã Lngua Prtguesa. Todos trão dã prnder a scrver dã frma pdrnizada.

O Sétimo parecia entusiasmado:

- Eles darão curso dessa língua, de graça? Aí estava uma realização a ser colocada no seu currículo, para a próxima eleição.

- Todos terão de reaprender nossa língua. Todos os livros serão reescritos, usando a nova Língua Portuguesa, que será escrita por 210 milhões de pessoas no mundo, que têm o português como língua pátria – foi a vez do Estranho se entusiasmar.
- Todos falarão a mesma língua, no Brasil, em Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

Linoberto logo percebeu que Portugal seria o grande beneficiado, pois venderia mais livros ao Brasil. Os outros apenas fariam número, pois sua população, ou é analfabeta, ou não tem recursos para comprar livros. E o Brasil pagará a conta, é claro.

- Que coisa mais besta! – Linoberto não se conteve.

- Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – afirmou o estranho.

Quando Linoberto chegou a casa, Maria esperava na porta.

- E aí, Lino, soube que o estranho esteve aqui, e trouxe um estrangeiro com ele.

- Era um estrangeiro de idéias, vendendo uma ridícula reforma ortográfica, fruto de um tratado que seremos forçados a engolir, graças à outra lei besta.

- Por que nós, Lino, se os do lado de lá do cinamomo nunca nos encontram para outras coisas.

- Porque aqui não tem a tal de Internet.

- Não entendi a relação. – Maria franziu a testa.

- É simples, Maria. Aqui o pessoal ainda sabe ler e escrever. O pessoal do lado de lá do cinamomo já não sabe ler muito bem. Os que ainda poderiam saber, não usam mais a Língua Portuguesa. Eles usam uma linguagem truncada, o Internetiquês, de onde os acentos e as vogais sumiram faz muito tempo. Outros vão ao shopping, aproveitar que é time de sales off, e aproveitam para fazer um upgrade do ROI – Return Of Investiment. Tudo dentro do budget, é claro. Por isso nos escolheram, para iniciar a conversão dos professores.

- E agora, Lino? O que acontecerá se converterem professores e o tal do tratado não der certo?

- Não vai dar problema. Falei com o Sétimo e pedi para mandarem o Décimo para aprender a nova ortografia. Aquele que dá aulas de História Antiga.

- O que caiu do cinamomo?

- Esse mesmo. Depois do tombo de cabeça, ele perdeu a memória recente. Não se lembra de nada que aconteceu no dia anterior. Os alunos dele adoram essa característica. A reforma ortográfica entrará por um ouvido, e sairá pelo outro. Ele não consegue aprender nada novo, por isso dá aulas de História Antiga.

- E então, Lino?

- Então os do outro lado do cinamomo, deverão adiar novamente a implantação dessa besteira. E nós escreveremos num dialeto português que só será conhecido do Lado de Cá do Cinamomo.


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18.8.08

445 - Quando vêm os bebês?



Foto: Wikipedia
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Quando vêm os bebês?

Por Paulo Heuser


A notícia que deu conta da ocorrência do último eclipse lunar do ano, me fez olhar para nossa parceira de translação pelo Universo. Em meio a tantas luzes, ela por vezes passa despercebida. Giramos de mãos gravitacionais dadas. Já estivemos lá, apesar de muita gente não saber disso, ou não acreditar nisso. Fala-se muito de uma grande fraude montada pela NASA, que teria feito um filme aqui na Terra, para depois passá-lo como cenas ao vivo, na Lua. Não acredito nessa história de filme, pois Charlton Heston não estava a bordo. Também não havia créditos no final. Se Hollywood houvesse produzido aquilo, não faltariam selenitas hostis - menos a filha do chefe, é claro, que manteria tórrido romance com o intrépido terráqueo. No final, fugiriam a bordo da nave capenga, enquanto toda população da Lua seria soterrada pelo desabamento. No final dos épicos, tudo desaba.

A Lua parece exercer grande influência sobre as pessoas. As grávidas esperam os bebês nas mudanças de fase da Lua, que, por sinal, estão sempre a ocorrer. Essa história rende polêmica eterna. Tanto rende, que o Dr. Fernando Lang da Silveira, professor de Física da UFRGS, realizou uma pesquisa sobre o assunto. Utilizando informações do banco de dados do vestibular, ele obteve mais de 90 mil datas de nascimento de candidatos inscritos nos concursos. Ele relacionou essas datas com as datas de mudança de fase da Lua, bem como com os três dias que antecederam ou seguiram a mudança. A estatística mostrou algo que contradiz a crença popular: não nascem mais crianças nas datas de mudanças da fase da Lua. As comadres e os compadres provavelmente alegarão que a amostra não é válida, pois foi realizada apenas sobre candidatos à elite intelectual do País, cujos pais já não seguiam a ordem natural das coisas. Forçavam os filhos a nascer em qualquer dia, sem nenhum regramento lunar.

Deus me livre de falar sobre a relação dos cabelos com a Lua! Aí sim, eu compraria uma briga feia. Qualquer idiota sabe que não se cortam os cabelos em determinadas datas, relacionadas às fases da Lua, sob pena de ficarmos irreversivelmente carecas. Bem, todos os idiotas sabem, menos um. Eu não sei. Começo a entender por que sempre consigo horário para cortar o cabelo, e por que a cabeleireira ri tanto, enquanto corta. Só não entendo por que ainda não fiquei careca. Fico a imaginar o que acontece com quem nasce, e corta o cabelo, fora das datas de mudança de fase da Lua.

A influência da Lua sobre as pessoas viria da atração gravitacional que ela exerce sobre nós. Afinal, ela é responsável pelas marés, que são resultado da aplicação da força gravitacional diferencial da Lua sobre nosso planeta. Seguindo o raciocínio, os homens têm de urinar em ângulo ligeiramente inferior, na Lua Nova e na Lua Cheia. Há o evidente risco de fazerem pipi na tampa do vaso, como conseqüência da - até então inominada - maré urinária.

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17.8.08

444 - A boca seca



Foto: Estadão
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A boca seca

Por Paulo Heuser


O B do teclado está falhando. Será uma migalha de pão? Tenho de bater a tecla, com medo de que ele saia sempre maiúsculo. Ficaria B demais. Sou obrigado a solidarizar-me com alguns atletas dos Jogos Olímpicos, e de quaisquer outros jogos, menos olímpicos, especialmente com aqueles que competem nas modalidades individuais.

Os esportes individuais levam à glória, e à desgraça, sem meios-termos. Se você venceu, a Pátria triunfou. Você será sócio de mais de uma centena de milhões de vencedores, sem falar do patrocinador. Hinos, bandeiras e vinhetas, todos o acompanharão. Se você perder, foi Você quem perdeu. Por falar nisso, quem afinal lhe permitiu representar tal multidão? Sem vencer?

Quem nunca competiu numa modalidade esportiva individual, não sabe daquela sensação estranha que surge antes da prova. Quantos não se questionam, sobre – porcaria do B – o que estão fazendo lá? O coração dispara, a boca fica anormalmente seca, os segundos se transformam em horas, e aí tudo acontece em segundos, muito poucos, às vezes. Não há arrependimento, ou não pode haver. Aquele momento de distração custa uma vida. Para o patrocinador, não há desculpa aceitável. A pressão é grande, mesmo sem patrocinador. A platéia faz as vezes de.

Imitação da vida, em Bs maiúsculos, os Jogos Olímpicos cobram mais. Mais patrocínio, mais cobrança, e mais expectativa. São milhões de olhos, e de dólares, que exigem a perfeição. Afinal, não estão usando aquele banco e aquele remédio em vão. Pagaram por isso, e podem exigir retorno. É o código de defesa do consumidor desportivo. Pagou, ganhou. O patrocinador pagou pela menina bonita, sem voz, que dublou a menina, não tão bonita – segundo o patrocinador -, com voz. O que importa é a imagem. Questionam as imagens da abertura, que seriam produzidas pelo campeão da manipulação das imagens. Questionam os tempos obtidos pelos nadadores. A piscina seria mais curta? Havia correnteza? A água seria quimicamente aditivada? Ou, o que poderia parecer impossível, os nadadores eram melhores, frutos da tecnologia e da fisiologia modernas?

Nas ruas chinesas, jornalistas se revezam em devorar insetos. Como sair de lá sem comer escorpiões? Nem patrocinador, nem telespectador, perdoariam. É o preço cobrado pelo esporte.

Feliz daquele rapaz, o Cielo, que certamente fez por merecer. Rebentou-se durante anos, e triunfou. Foi ao Olimpo, em modalidade individual. Seu choro de glória derramou a tensão que acomete aqueles que ousam desafiar os favoritos, e o próprio Olimpo. Ele foi o mais rápido numa prova que passa num pestanejar. Nem a platéia conseguiu respirar. A mídia fez um show, fazendo ouvir a música que ele teria ouvido durante aqueles vinte e poucos segundos rumo à glória. Quem nada, sabe que a água não permite que se ouça nada, durante uma competição, senão o próprio bater do coração.

Aos outros, os escorpiões, além da boca seca.


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16.8.08

443 - O robô

Fonte: Wikipedia
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O robô

Por Paulo Heuser


O tempo me transformou num cético. Não foi exatamente o tempo, foi o que vi durante a trajetória dele. O ceticismo tira dos adultos aquela empolgação demonstrada pelas crianças. Para elas, tudo é verdade, até prova em contrário. Com o tempo, a experiência nos permite a sensação de que algo não cheira bem, ao lermos o jornal. Só não ficamos tão espertos como o Diabo, porque nunca seremos tão velhos. Porém, apenas a fração infinitesimal da idade do Diabo me fez coçar a cabeça com uma notícia liberada pela Folha, na seção de ciências: Cientistas criaram robô com neurônios de ratos.

Meu lado infantil, por vezes o dominador, logo imaginou um robô dentuço e sorridente, com enormes orelhas de Mickey Mouse. Contudo, há o meu outro lado, o chato, o crítico, o cético. Meu lado infantil acredita que o homem foi a Lua. Até o meu lado cético acredita nisso. Porém, essa notícia do rato robô foi um pouco demais. Criaram o Frankenstein dos roedores! O texto informa que os cientistas da Universidade de Reading, no Reino Unido, criaram “Um robô que funciona com um verdadeiro cérebro vivo composto por neurônios de rato, capaz de ‘aprender’ comportamentos, como evitar uma parede...”.

Não entendo nada de neurônios, tanto que nem consigo fazer os meus funcionarem corretamente. Tampouco entendo de ratos. Mas, de robôs entendo alguma coisa. Não graças ao Dr. Frankenstein, graças ao Prof. Dr. Francke, meu mestre de Eletrônica Básica (FIS01008). Os méritos cabem também a Barbara, colega que insistia na idéia de construirmos um robô, nas aulas práticas de laboratório. Pois o Francke conseguiu um kit de robô, dotado de um CLP - controlador lógico programável, e uma coleção de dispositivos que permitiriam a montagem de um robô autônomo, que faria exatamente aquilo que o robô dos gênios britânicos faz. Todo segredo estava na programação do CLP. Para evitar paredes, não é necessária muita inteligência. Basta um sistema que emite ondas, como as de radar, em várias direções, e mede o tempo de retorno das mesmas, escolhendo sempre o caminho que indica que a parede esta mais distante. Tudo controlado por um pequeno programa de computador escrito em linguagem Basic, injetado no CLP.

Para tornar o desafio maior, o Francke não disponibilizou o chassi, que tivemos de construir, a partir de sucata e de carrinhos de brinquedo chineses, que, em última análise, se classificam como tal. O entusiasmo da Barbara era contagiante, especialmente na montagem das partes mecânicas. Ela soldou os tubos que formavam o chassi, com um maçarico. Tivemos alguns problemas para soltar o conjunto da serra, do martelo e da morsa de bancada, que ela soldou junto, mas o resultado ficou muito bom. E ela apressou-se em telefonar para a mãe, comunicando que usara um maçarico! Entusiasmo contagiante, sem dúvida.

O semestre terminou antes da montagem da placa eletrônica do robô, que restou inerte, a espera de outra Barbara, em outro semestre, para concluí-lo. Não sei se ele chegou a andar pelo chão do laboratório de eletrônica do Prédio H, desviando de paredes e buzinando. Só tenho certeza de uma coisa: se eu tivesse que apostar todas as minhas fichas, não seria no robô rato do Dr. Kevin Warwick, da Universidade de Reading. Apostaria tudo no robô da Barbara. Àquele, não falta só o entusiasmo. Há algo errado com os neurônios.

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14.8.08

442 - Whoopi Goldberg e os metamateriais



Fonte: Wikipedia
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Whoopi Goldberg e os metamateriais

Por Paulo Heuser


Por vezes, fatos isolados nada significam. Contudo, quando relacionados, podem significar muito, muito mesmo. Ontem me caiu diante os olhos um resumo de trabalhos publicados nas edições de 13 de agosto, da revista Nature, e de 15 de agosto, da revista Science. Ambos tratam de algo que mexe com a imaginação. Os autores do primeiro trabalho são Shuang Zhang e Thomas Zentgraf, da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Os autores do segundo trabalho são Zhaowei Liu e Yongmin Liu, da mesma universidade. Os trabalhos tratam dos metamateriais, que apresentam propriedades extraordinárias para curvar feixes de luz. Antes que alguém pense em desenvolver lanternas que iluminem objetos depois da esquina, esses materiais têm aplicação certa na microscopia ótica, pois permitirão o desenvolvimento de aparelhos que permitirão “ver” objetos menores do que o comprimento de onda da luz visível, como vírus e cadeias de DNA.

Se essa aplicação não excita muito quem não vive da microscopia, há outra, um pouco mais distante no tempo, que certamente mudará muita coisa neste nosso mundo visível. As propriedades singulares dos metamateriais permitirão, eventualmente, o desenvolvimento da camuflagem completa, ou invisibilidade. Orientada através de dispositivos utilizando cobertura de metamateriais, a luz fluirá ao redor dos corpos, como a água flui ao redor de uma pedra num rio. A visão do observador será a do que está atrás do objeto. Da teoria à prática há um longo caminho, com certeza. Porém, Nature e Science não costumam publicar apenas sonhos. Se os trabalhos estão lá, é porque há sustentação científica suficiente. Será uma questão de tempo. Quem viver, verá.

Eu não relacionei logo a camuflagem perfeita com a Whoopi Goldberg. Depois, ligando as coisas, lembrei-me do papel dela como Guinan, no seriado Jornada Nas Estrelas - A Nova Geração. Os Klingons tinham uma nave com capacidade de camuflagem, através da invisibilidade. A realidade vai, lentamente, ao encontro da ficção. E a Whoopi Goldberg veio ao meu encontro. Se não era ela, era um clone perfeito. Pegou-me no contrapé. Eu estava naquele estado semicataléptico pós-almoço, parado na praça, quando ela chegou, cheia de adesivos e botões de campanha eleitoral. Pensei imediatamente que o Obama e o McCain estivessem estendendo seu território eleitoral, o que me levou a dizer:

- Mim não votarr lá!

Então ela explicou-me que era candidata a vereadora, aqui, e pediu meu voto. A Whoopi eu ainda conhecia, mesmo que só através das telas, mas quem seria esse clone perfeito? Nunca a vira mais gorda, a não ser nas telas. Pedir voto desse jeito é coisa de candidata a miss do grêmio do colégio. Algo como:

- Vota em mim, tio?

Foi então que juntei Klingons, Whoopi, Zhang e Zhaowei. Além das aplicações científicas e bélicas da camuflagem, teremos a camuflagem eleitoral. Vestiremos o manto da invisibilidade cívica, como aquele da Mulher Maravilha, que nos permitirá lagartear na praça, após o almoço, sem sofrermos o assédio de Whoopies e Klingons.



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441 - A classe média IX - A revolta dos Bichos


Foto: Paulo Heuser
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A classe média IX – A revolta dos bichos


Por Paulo Heuser



O Estranho – único funcionário público do País a encontrar o caminho para o município do Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média – já se tornou figura familiar no Bar, Restaurante e Churrascaria 12 Irmãos. Ele tem mexido os pauzinhos na Capital, tentando fixar residência no Lado de Cá, pois não suporta mais a viagem que se vê obrigado a empreender, uma vez por mês, para assegurar o cumprimento da Lei institucionalizada do outro lado do cinamomo. Não fosse a dificuldade em se encontrar o lugar, outros poderiam vir. Porém, algum dom inato deu ao Estranho a mesma capacidade, para encontrar o caminho, que as aves migratórias apresentam. Por outro lado, não há dom que faça alguém suportar a estrada, se é que se pode chamar aquilo de estrada. É uma estreita e sinuosa sucessão de pedras e buracos enormes, ora subindo verticalmente, ora descendo. Cada motorista do carro oficial – este trocado a cada viagem – recebe uma semana de folga, ao retornar. Alguns pedem licença saúde, quando ameaçados de retorno ao Lado de Cá do Cinamomo.

A chegada do Estranho foi ruidosa. Chegou a bordo de um veículo utilitário da Patram – Patrulha Ambiental, com direito a giroflex e sirene. Ele veio acompanhado de dois agentes ambientais uniformizados, vestindo uniforme de combate e tocas ninjas. Pararam defronte ao 12 Irmãos e um deles rolou pela grama, enquanto empunhava um fuzil de assalto, apontado para o bar. O outro gritava: - go, go, go! No momento em que o segundo agente pedalava a porta do 12 Irmãos, esta abriu-se, pois o sétimo dos 12 viera ver o que estava acontecendo. O agente estatelou-se entre os assustados freqüentadores que curtiam a hora feliz, à tardinha – 16h00 Hora Zulu, como diriam os agentes. O crescido terneiro mugiu, talvez de susto, talvez de emoção.O Sétimo foi algemado, antes que pudesse contar até um. Linoberto veio ligeiro, da roça, alertado pela inusitada sirene, coisa nunca ouvida do Lado de Cá do Cinamomo.

O Estranho entrou visivelmente constrangido no 12 Irmãos. Antes que alguém pudesse perguntar sobre a razão da prisão, o Estranho se antecipou:

- Os 12 irmãos serão presos por infringirem o Decreto 24.645 e a Lei 9.605. Recebemos uma denúncia do Serviço de Vigilância Por Satélite, do Minam – Ministério do Ambiente – e da ONG que fiscaliza a apresentação de animais em espetáculos.
Onze dos 12 irmãos já estavam algemados, quando Linoberto chegou. O Décimo Segundo havia ido à latrina, fugindo com ela nas costas. Procurou refúgio na igreja, junto ao Padre Antão.

- O que eles fizeram, para serem presos? – perguntou Linoberto.

- Eles mantiveram animais em ambiente anti-higiênico e os usaram num espetáculo, sem autorização do Minam!

- Quais animais?

- Três porcos, que, por sinal, serão transferidos para um zoológico, tão logo a Unidade Móvel de Resgate da Fauna consiga chegar até aqui.

- Mas, os porcos estão no chiqueiro! – argumentou Linoberto.

- É um lugar muito sujo, completamente anti-higiênico. Sinto muito, não posso fazer nada, pois lei é lei!

- Sei, Besta Lex, sed Lex! – A lei é besta, mas é a lei!- E quanto a esse suposto espetáculo? – Linoberto não se lembrava de algum circo ter algum dia chegado ao Lado de Cá do Cinamomo.

- Foi no domingo passado, às 15h31, Hora Zulu, defronte à igreja. Havia mais de 40 pessoas presentes. Tenho aqui comigo esta foto comprobatória.

- Mas, isso foi o concurso anual do Porco Gordo!

- A lei é clara, quanto à permissão para a participação de animais em espetáculos!

- Sei, Besta Lex, sed Lex! – A lei é besta, mas é a lei!

O crescido terneiro mugiu, talvez de indignação, talvez de estupefação.

Maria ficou aliviada, quando viu Linoberto subindo pelo potreiro, em direção a casa. Ela estava morta de curiosidade, pois o assunto já havia corrido de boca em latrina. Havia pouco, o Décimo Segundo passara defronte a porteira, carregando a latrina.

- Os 12 estão presos?- Não, tiveram de soltá-los.

- Por quê?

- Bem, em primeiro lugar, os fregueses do 12 Irmãos ameaçaram jogar os agentes no chiqueiro, pois não restaria ninguém para tocar o bar. Depois, o Padre Antão descobriu que haviam criado uma lei que dá foro especial para todos os detentores de cargos públicos, como os 12 irmãos, já que o Sétimo é prefeito e os demais são vereadores. O juiz que poderia mandar prendê-los resolveu liberá-los, pois o Presídio da Capital está interditado devido a uma grande revolta dos presos. Por último, o telefone por satélite do Estranho tocou.

- Era da Capital?

- Era, Maria. Era o Ministro da Segurança, em pessoa. Ele mandou a equipe tocar direto para o Presídio da Capital, aquele onde estourou a rebelião dos presos.

- Mas, a equipe do Estranho não é da Patrulha Ambiental? – Maria ficou intrigada.

- É verdade, mas os presos exigem receber o mesmo tratamento dado aos animais!

O crescido terneiro mugiu, talvez de admiração, talvez de resignação.





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12.8.08

440 - O artista e o povo

Teorema, de Bruno Giorgi. Foto: Paulo Heuser
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O artista e o povo
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Por Paulo Heuser
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“Todo artista tem de ir onde o povo está” - canta o grande Milton Nascimento. Por vezes, não são os artistas, que vão, é a obra deles que vai ao encontro do povo. O escultor Bruno Giorgi (1905-1993), nascido no interior paulista, filho de imigrantes italianos, emigrou para a Itália, em 1911. Acompanhou a família, que para lá retornou. Em Roma, militou no partido comunista, o que lhe rendeu uma extradição, de volta para o Brasil, após amargar quatro anos no xilindró romano. Nos anos 30, foi estudar em Paris, nas prestigiadas academias La Grande Chaumière e Ranson.
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Bruno Giorgi voltou ao Brasil, em 1939, e estabeleceu-se em São Paulo. Ao longo de 40 anos de escultura, Giorgi deixou obras de grande expressão artística, como o Monumento à Juventude Brasileira (1947), que se encontra no Palácio da Cultura do Rio de Janeiro, antigo Ministério da Cultura e Saúde. Os Candangos (1960) enfeita a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Outra obra de grande destaque é Integração (1989), que se encontra no Memorial da América Latina, em São Paulo. Bruno Giorgi foi professor do artista plástico austríaco, naturalizado brasileiro, Francisco Stockinger.
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Há uma obra de Giorgi na Praça da Alfândega, o Teorema. Pois o Teorema está cercado pelo povo. Nestor e suas famílias moram atrás do Teorema, durante o dia, pois diariamente perdem a marquise que os abriga durante a noite. Esse crescimento econômico, que tirou a maior parte da população da condição de miseráveis, trouxe a crise imobiliária para a minoria remanescente, na base da pirâmide. Bons mesmo foram aqueles tempos de crise, quando havia prédios para alugar, por toda parte. Sobravam marquises. Hoje, não. Basta o sol nascer para que Nestor e suas famílias sejam despejados pelos esquadrões da mangueira e do esfregão. Não respeitam nem sua mulher número 2, que espera outro filho. Ele nascerá sem marquise fixa.
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Noutro dia perguntaram ao Nestor sobre o número de filhos dele. Ele sempre responde o mesmo: dez. E continuarão sendo dez, após no nascimento daquele que a número 2 carrega no ventre, pois Nestor tem apenas dez dedos nas mãos. É aí que termina o sistema numérico dele. A Mega Sena acumulada paga dez, há dez árvores na praça, a idade do Nestor é dez, e assim por diante.Quase todas as pequenas cidades européias têm monumentos, nas suas praças centrais, aos soldados mortos durante as duas Grandes Guerras. São obeliscos com as listas dos nomes. Essas listas são particularmente grandes nos povoados próximos às fronteiras belga, luxemburguesa e francesa com a Alemanha. Lá ocorreram os combates que deixaram milhões de mortos e estropiados, homenageados através dos célebres monumentos ao soldado desconhecido. Sobre as cenas que lá presenciou, o médico britânico John McCrae escreveu um célebre poema, em 1917:
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“NOS CAMPOS DE FLANDRES
Nos campos de Flandresas papoulas estão florescendo entre as cruzes
que em fileiras e mais fileiras assinalamnosso lugar;
no céu as cotovias voame continuam a cantar heroicamente,
e mal se ouve o seu canto entre os tiros cá embaixo.Somos os mortos...
Ainda há poucos dias, vivos,
ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poentea rebrilhar,
e agora eis-nos todos deitadosnos campos de Flandres.
Continuai a lutar contra o nosso inimigo;
nossa mão vacilante atira-vos o archote:
mantende-o no alto.
Que, se a nossa fé trairdes,
nós, que morremos, não poderemos dormir,
ainda mesmo que floresçam as papoulas
nos campos de Flandres.”
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Na Praça da Alfândega há apenas monumentos em homenagem àqueles que conquistaram as mais altas patentes. Nestor nunca lerá Nos campos de Flandres, até porque é analfabeto. Tampouco sonha onde fica Flandres, apesar de sonhar com uma telha de folha de flandres, para construir um puxadinho no Teorema. Talvez agora perguntem: o que tem uma coisa a ver com a outra? Bem, provavelmente Bruno Giorgi nunca esperou chegar tão próximo do povo, a ponto de morarem na sua obra. Tampouco esperava criar uma espécie de monumento em homenagem ao estropiado desconhecido, pracinha da miséria. Sem papoulas a florescer, resta algo de poesia ao Nestor. Talvez ele possa declamar Nos campos da Alfândega:
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“...ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poentea rebrilhar,
e agora eis-nos todos deitados...”
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Disso, Nestor entende. Passa metade do dia deitado, e, pela facilidade que ele apresenta, para amar e ser amado, talvez aquele seja o monumento ao pai desconhecido.
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11.8.08

439 - A persistirem os sintomas, o médico deverá ser ...

Foto: Wikipedia


A persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado


Por Paulo Heuser



Há coisas que ninguém confessa ter, a não ser sob intensa tortura, é claro. É o caso daquelas enfermidades relacionadas com o sistema de ejeção dos subprodutos da digestão. O pessoal disfarça, e só vai atrás de ajuda quando a coisa fica realmente crítica. O Zé agüentou a tortura, anos a fio, até que uma crise excepcionalmente intensa o levou a procurar o Babão, o barbeiro. Só a Dona Mirtes - do instituto - entende mais de remédios que o Babão. Porém, como confessar a Dona Mirtes que ele tinha, sabe, aquilo? Nem morto. Melhor contar com a sabedoria e a discrição do Babão. Dona Mirtes organiza reuniões de senhoras, para vender uns bagulhos de pintura, nas quais atualiza o mercado da fofoca com as últimas novidades. O Babão é mais discreto. Só conta para os seus clientes. Mesmo a falar de homem para homem, o Zé custou a confessar. Marcou a consulta, e foi cortar o cabelo. Esperou não haver mais ninguém na barbearia, e mandou, sem dó, na lata: “- Ô Babão, o que é bom contra hemorróidas?”. Babão é profissional, manteve a linha. Não riu, pelo menos até o Zé sair de lá, feliz da vida, com a prescrição do Retoplus 400 – agora com abas anatômicas.

Obter a prescrição foi fácil. Comprar o Retoplus 400 – agora com abas anatômicas – foi outra. Com que cara entraria na farmácia do Seu Agenor, e pediria aquilo? O problema não era o Seu Agenor. Era a Dona Graça – irmã da Dona Mirtes -, balconista em tempo integral. O Zé bolou um plano. Chegou à farmácia, como quem não quer nada, e pediu para falar, em particular, com o Seu Agenor. Dona Graça esticou o ouvido para tentar pescar algo da conversa. Esse tarado tentava comprar preservativos - pensou ela. Seu Agenor ouviu a explicação, fez cara de entendimento e gritou: “- Mande uma caixa de Retoplus 400 – agora com abas anatômicas -, Dona Graça. Morto de vergonha, Zé foi para casa, a levar seu tesouro – agora com abas anatômicas. Ao chegar, usou o negócio, na hora. Pois não é que funcionou? Pelo menos para o problema original. Só que as abas anatômicas não eram tão anatômicas assim, e deixaram uma tremenda urticária, logo naquela região. Lá foi ele novamente à barbearia. Babão nem cobrou pela nova consulta, digo, pelo novo corte. Prescreveu Urticol Generex, para uso tópico. Nova ida à farmácia, novo pacote e novo alívio. Já podia até sentar-se novamente. Dona Mirtes passou a encará-lo de forma estranha, quando passava pelo instituto. O alívio da urticária foi imediato. Pena que surgiu a sensação de boca seca.

O Babão chegou a pensar em sugerir que o Zé bebesse água, para terminar com a boca seca, mas manteve o profissionalismo. Prescreveu Oralflud Humetrat, que efetivamente hidratou novamente a boca do Zé. Dessa vez, pediu diretamente a Dona Graça, sem medo. Por esse lado, nada havia para envergonhá-lo. Dona Graça achou melhor preveni-lo da possibilidade da ocorrência de um efeito colateral um pouco comum: a náusea. Ela convenceu-o a levar também o Inojetyl Alfa, para prevenir qualquer efeito indesejado. Hidratado e não-nauseado, Zé viveria momentos de felicidade, não fosse pela palpitação da pálpebra esquerda. Nada que o Palpitremol Sinistrel não resolvesse. Então veio o formigamento nos pés.

Desconfiado, Zé resolveu retornar ao Babão. Começou a desconfiar da capacidade farmacológica da Dona Graça. Ela estava empurrando tudo que havia na prateleira da farmácia. Na certa, ela ganharia aquela viagem a Búzios, patrocinada pelo laboratório. O Babão fez cara de horror. Qual fora o louco que prescrevera Palpitremol Sinistrel sem prescrever, concomitantemente, o Formiplax Pedatrol? Dona Graça ofendeu-se, ao perceber que ele procurara um concorrente leigo. Nada falou, enquanto pensava na dor muscular que essa combinação provocaria. Na manhã seguinte, Zé jogou a toalha, não muito longe, pois a dor era muita. Fez o que deveria ter feito desde o início: Procurou a ajuda da Dona Mirtes. Ela logo descobriu o que havia de errado com ele. A combinação de Palpitremol Sinistrel com Formiplax Pedatrol, após o uso do Inojetyl Alfa, causa aumento do ácido galáctico, gerando fortes dores musculares. Nada que não pudesse ser resolvido através da ingestão de cápsulas de Mioespasmil Relax. Contudo, Dona Mirtes achou melhor preveni-lo da possibilidade, apesar de muito remota, da ocorrência de um efeito colateral: hemorróidas.


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