21.1.09

499,999 e 1/2 - A campanha


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A campanha

Por Paulo Heuser


A campanha já começou. Aliás, ela nunca terminou. A campanha eleitoral é um contínuo abalado, de quando em quando, pelas eleições. Os abalos periódicos não significam o retorno à estaca zero, pois cada pleito é um pleito diferente. Novos jogadores, novo público, novo cenário, tudo contribui para implicar investimentos crescentes nas campanhas eleitorais. Por mais que a história e a estatística apóiem as decisões dos marqueteiros favoritos, sempre há o fator surpresa: a zebra que se revela favorita, no último instante, quando se faz tarde para reação.

O bom coordenador de campanha olha dois pleitos à frente. Em 2006, pensava em 2014, em 2010, pensará em 2018. Faz parte do planejamento. Há também de pensar nas não tão eventuais pedras no caminho. Pedras grandes, por vezes. Portanto, além do Plano A, se faz necessário um Plano B. Um plano de contingência.

As corridas de resistência mostraram a utilidade de um corredor afoito, que faz às vezes de lebre. Ele corre como um louco, já no início da competição, arrastando os incautos atrás de si. Cansados prematuramente eles logo abandonam a disputa pelas primeiras posições, assim como a lebre que dá lugar à corrida vitoriosa de algum colega de equipe que guardou suas forças para a disparada da última volta. Como a oposição logo percebe essas manobras, a tarefa de chegar à frente torna-se cada vez mais complexa. É preciso inovar, sempre.

Uma tática eficaz pode ser a do candidato papagaio de pirata. Ele anda grudado no presidente, feito peixe-piloto no tubarão, e a ele são contabilizadas as realizações do governo. Durante a travessia dos mares tempestuosos da campanha, os candidatos dessa espécie são transformados esteticamente em modelos que atraem votos. Não só a aparência física se modifica, através de procedimentos cosmetológicos e cirúrgicos, como também o seu comportamento em público. Candidatos excessivamente sisudos deixam de rosnar e passam a sorrir. Após alguns anos de campanha, ninguém mais consegue reconhecê-los nas fotos antigas. Uma boa equipe consegue transformar o Charles Bronson no George Clooney e a Rossy de Palma na Nicole Kidman.

Se o candidato papagaio de pirata não emplaca, sempre há como fazer alguns acordos e conchavos para reeleger o titular popular. Uma alteração constitucional aqui, outra ali, e pronto, mantêm-se o que deu certo. É o Plano B enrustido, com a vantagem de manter o titular refratário aos ataques oposicionistas, focados no candidato papagaio de pirata. Se não ganha um, ganha outro.

Há quem afirme ter ouvido o seguinte diálogo:

- Fizemos tudo certo. Você esteve ao meu lado durante 357 viagens com 2976 inaugurações, segurou 18732 crianças no colo, parou de morder e passou a sorrir, emagreceu, arrumou o cabelo, fez lifting, peeling e lanternagem geral. Não lhe faltou dinheiro para obras sociais. Hoje você é mais candidata do que qualquer outro. Tenho a mais absoluta convicção de que vencemos as resistências internas e externas. Nunca ninguém antes neste País foi tão candidata como você é hoje.

- Não sei, Presidente. Sempre há o fator surpresa...

- Não desta vez. Façamos um teste. Perguntaremos ao primeiro que passar sobre suas intenções de voto.

João vinha distraído, carregando sua mala de ferramentas, no seu caminho para consertar a janela emperrada do palácio. O Presidente sorriu ao vê-lo. Alguém do povo. Ótimo, pensou, ninguém melhor para servir à pesquisa de intenção de voto.

- Rapaz, como é o seu nome?

- João, senhor.

- Você sabe quem sou eu?

- Claro, o senhor é o Presidente!

- E ela, você sabe quem é?

- Claro! É a mãe do... como é mesmo o nome daquela coisa que dá dinheiro?

- Então, diga-me, em quem você votará para Presidente, na próxima eleição?

- Barbada! Obama, na cabeça!

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28.8.08

451 - O voto na praça


Foto: Paulo Heuser
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O voto na praça

Por Paulo Heuser

Corre por aí, à boca pequena, que isto ocorreu no início de agosto. Na reunião do conselho do Partido, já tarde na noite, o pessoal que trabalhava na campanha dos candidatos a vereadores queixava-se da dificuldade em se fazer campanha, frente à escassez geral de dinheiro, tempo na TV, espaço físico para afixar propaganda, além dos candidatos sem apelo algum. O corpo a corpo estava difícil. A maioria nem olhava para os candidatos, e os que aceitavam santinhos jogavam-nos fora logo a seguir, sem ao menos lê-los.

Todos olhavam para o Bocão da Urna, maior especialista do Partido, quando se trata de convencimento de eleitores sem candidato. Ele falava da necessidade de arregimentarem mais candidatos que chamassem a atenção do eleitorado. O prazo legal para a inscrição estava se esgotando. Bocão mostrou alguns vídeos do horário político da eleição anterior. Com aquela fração de minuto, disponível para cada candidato, o que se via e ouvia era algo como:

- MeunomeéCandidoAtoevouresolverasegurançaasaúdeea
educaçãovote99999!

Os candidatos também não ajudavam muito no aspecto físico. Todos eram comuns demais, como se fizessem parte do povo. Poderiam passar por vizinhos dos eleitores. O pessoal gosta de votar nos candidatos que se sobressaem, de alguma forma. Em outros tempos, quando havia fartura, era mais fácil fixar a imagem de alguém na cabeça do eleitor. Do jeito que ficou, terão de disputar os eleitores a tapa, na boca da urna. Em algumas seções haverá mais “orientadores” do que eleitores.

Bocão deixou a sede, a pé, e aventurou-se a caminhar pelo Centro, na companhia da Eufrázia, secretária do Partido. Talvez esta fosse a razão da aparente imunidade aos assaltos que experimentaram. Para quem não estava habituado, Eufrázia aparentava ter fugido da tela do King Kong. Ela se parecia com a irmã gêmea dele. Quando cruzavam corajosamente a Praça da Alfândega, Eufrázia soltou um grito pavoroso, enquanto saltava dois metros para trás. Bocão foi além, pulando sobre os ombros da Eufrázia. A razão do susto não era um assaltante, como seria de se esperar. Era o Nestor, expoente máximo da mendicância alfandegária. Eles se depararam com aquela figura estranha, balbuciando o tradicional me-dá-me-dá. Ao lado dele descansava a mulher número 2. O Nestor realmente estava feio. Talvez não fosse feio, enquanto abonado, mas ficou. Os anos de praça deixaram sua marca. O que assustava mesmo eram os olhos esbugalhados, destacados pela fuligem que tomava conta do seu rosto. Ele tinha algo de felino, pois fugia d’água como tal. Algo refeitos do susto, Bocão e Eufrázia seguiram na direção da Rua da Praia, supostamente mais segura.

Subitamente, Bocão vislumbrou a oportunidade que deixavam para trás.

- É ele, Eufrázia!

- Ele... quem? – disse Eufrázia, enquanto arredava os pêlos da testa.

- É ele, o Candidato! Aquele sujeito não passa despercebido nem no manicômio forense.

Na manhã seguinte, Eufrázia trouxe o pessoal do Partido à praça, à procura do Nestor. Encontraram-no atrás da escultura Teorema, de Bruno Giorgi, sua residência diurna. Ele descansava da labuta noturna. Estariam diante do mais novo candidato a vereador. Bocão já havia planejado tudo. Nestor apareceria, durante os sete segundos - espaço reservado para cada candidato -, e pediria o voto:

- Ãh, me-dá-me-dá-me-dá-...-me-dá!

Para não perderem nenhum me-dá, Nestor seguraria uma placa com seu número e a sigla do Partido. Que impacto causaria tal aparição! Ele atrairia todos os votos de protesto, de solidariedade, de antipatia e de qualquer outro sentimento não retratado na mesmice dos demais candidatos. Ao candidato a prefeito, bastaria aparecer ao lado do Nestor nos palanques. Estaria fatalmente eleito.

Não deu, desta vez. Nestor teria de reaprender a ler, tarefa para longo prazo. Mas, para 2012, quem sabe? Já há gente pisoteando os canteiros que rodeiam o Teorema. Alguns pensam em 2010, pois talvez ele não chegue vivo a 2012.

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11.6.08

411 - A guerra das mamonas



Batalha de La Lys, Flandres
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A guerra das mamonas

Por Paulo Heuser


Em Santa Cruz do Sul havia um terreno baldio, de área de pelo menos um hectare, junto ao centro da cidade, entre as ruas Marechal Deodoro e Tomás Flores. Para uma criança, aquilo era uma selva cruzada por um rio. Hoje desconfio que o rio era o esgoto. O terreno estava coberto pela vegetação, com muitas árvores, entre infinitos pés de mamona. A altura da vegetação aumentava a sensação de imensidão, pois, uma vez lá dentro, não era possível enxergar os limites do terreno. Havia trilhas em meio à floresta, abertas sabe-se lá por quem.

Como nem tudo são flores no paraíso, havia também a disputa pelo controle do terreno. Duas turmas disputavam o controle sobre aquele latifúndio urbano. Cada turma construía seu esconderijo no meio da selva, longe das trilhas, de modo a dificultar sua localização pelo inimigo. As regras do conflito territorial não eram muito claras. Todos sonhavam com as armadilhas pavorosas, preparadas pelos nativos africanos do cinema, como aqueles troncos cheios de pontas que perfuram todo o inimigo, e acabavam montando armadilhas menos mortais, preparadas com o subproduto da digestão humana. Menos mortal, porém igualmente cruel. O cuidado com a segurança do esconderijo se explicava, pela ferocidade dos conquistadores, que destruíam completamente o reduto inimigo. Não sobrava pedra sobre pedra, ainda mais que não se utilizavam pedras, apenas madeiras.

Os combates diretos, entre os membros das duas turmas, não eram muito comuns, porém ocorriam. Eram lutas sangrentas. Guerras de mamonas. Quem nunca levou uma bodocada de mamona na orelha não pode imaginar a dor que causa. O sujeito passa a odiar biodiesel e óleo de rícino.

Numa linda tarde de sol, as duas turmas se defrontaram, na única parte do terreno que apresentava vegetação rasteira, e permitia a visualização direta do inimigo. Guerreiro calejado, eu consegui uma tampa de tonel de metal, para utilizar como escudo. Foi uma maravilha. Avançava agachado, em meio à saraivada de mamonas, ouvindo o som dos obuses vegetais atingindo meu fantástico escudo. O que faria, quando chegasse lá, não sei. Contudo, avançar incólume dava uma sensação de poder. Não cheguei até o inimigo, pois me esqueci de proteger as mãos, que seguravam a tampa do tonel. Lá pelas tantas, alguém mandou uma bodocada certeira que atingiu meus dedos. Foi o suficiente para que eu largasse a tampa, ficando a descoberto. Foi hora de bater em retirada, sem olhar para trás.

O terreno baldio deu lugar às casas e a um supermercado. Com o tempo, todos cresceram, viraram adultos, e têm apenas as boas recordações deixadas pelas rusgas em meio à selva santacruzense.. Memórias que nem o Alzheimer apagará. Outros, menos afortunados, lutam suas guerras de mamonas depois de adultos. Em comum, com aquelas crianças, têm apenas uma coisa. Não sabem o que fazer quando chegam lá. Quando ninguém lhes atinge as mãos, derrubando seus escudos, eles chegam ao reduto do inimigo, escudados pelos discursos de campanha. Então, não deixam pedra sobre pedra. Deixarão apenas as péssimas recordações.


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2.7.07

Harold o Empreendedor


Harold o Empreendedor

Por Paulo Heuser



Sem dúvida nenhuma, o mundo é dos empreendedores. Eles movem a economia e fazem acontecer. Harold é um deles. O homem nasceu para tocar qualquer tipo de negócio. Pratica também uma espécie de cooperativismo, envolvendo amigos e parentes, em uma sólida cadeia de fornecedores de produtos e serviços.

A coisa toda começou quando a Tia Hitlertraudt resolveu comemorar seus 89 anos em grande estilo. Na verdade, nem era tia do Harold, era a tia do Humbert, colega da Confrade – Confraria Fraternal Despótica. Tia Hitlertraudt queria um chá para suas amigas e parentes, algo como 50 pessoas, quase todas senhoras da terceira idade. Humbert foi encarregado da organização da festa. Sem experiência alguma em eventos dessa natureza, pediu socorro aos pares, durante uma reunião da Confrade. Para extrema sorte de Humbert, Harold estava lá para auxiliá-lo. E Harold era um empreendedor, entendia de qualquer coisa que pudesse ser vendida ou comprada, inclusive chás dos 89 anos da tia dos outros.

Definida a necessidade, Harold foi a campo. Um campo fechado, por sinal, adstrito à Confrade. A escolha da data foi muito importante, pois dela dependia a escolha do local, ou vice-versa. Datas havia muitas, local apenas um. Apenas um dos confrades tinha um local para alugar. Um salão para mil pessoas. Como o que não tem solução, solucionado está, o problema do local estava resolvido. A data também, pois havia apenas um dia no qual o salão estaria disponível, uma segunda-feira à noite. O salão não era muito barato, em função da grande capacidade. Apesar do desconto para confrade, ainda estava excessivamente caro, para as disponibilidades da Tia Hitlertraudt. De volta à confraria, a solução caiu do céu. Alguém procurava um local para comemorar os 30 anos de Herbert, deputado confrade. Seria um jantar para arrecadar fundos, já pensando na reeleição. O cabo eleitoral do Herbert adorou a oportunidade de terceirizar a organização da festa.

Harold já havia resolvido data e local. Tia Hitlertraudt não gostou muito da idéia de um chá à noite, preferia o período da tarde, mas acabou aceitando. Herbert andava com problemas no fluxo de caixa, unidirecional. Escolheram o arroz com lingüiça como prato principal e único. Por questões de economia de escala e racionalização de custos, Harold decidiu modificar um pouco o chá da Tia Hitlertraudt, retirando tortas, docinhos e salgados, incluindo o arroz com lingüiça. Afinal, tortas e doces não fariam bem à saúde. Humbert concordou, preferindo apenas não avisar à tia imediatamente. Ela saberia no tempo certo.

Pensando bem, Harold concluiu que era relativamente fácil organizar festas, especialmente quando se conta com a confraria. Foi de lá que veio também a solução para a música. Tia Hitlertraudt havia pensado em algo parecido com uma orquestra de câmara. Peças suaves, para violino e piano. Harold encontrou outra oportunidade, entre os confrades. O filho de um deles, de nome artístico Ronco de Porco, era líder de uma banda nativista alternativa, os Bombachudos da Jamaica. Faria preço promocional, pois seria sua primeira apresentação em público.

Uma festa para mil pessoas implica a existência de uma boa estrutura de apoio. Foi aí que entrou na história o confrade representante da Reboque, grande marca de tênis chineses. Ele forneceria atendentes de portaria, orientadores (leões-de-chácara) e performers, seja lá o que fossem. Seria tudo de graça, em troca da publicidade, não fosse a comissão de Harold. Sim, Harold precisava viver de alguma coisa.

Comida também não seria problema. Harold encontrou um confrade que abrira uma fábrica de lingüiça calabresa de soja, ainda sem mercado. Com o retorno de um carregamento de soja refugado pela China, os preços caíram muito. Uma ótima oportunidade para investimento. O chá escolhido foi o de cevada, fornecido em barris de alumínio. A decoração foi fornecida pela funerária de um confrade, a preços promocionais.

Tia Hitlertraudt e suas amigas enfrentaram algumas dificuldades para entrar no salão do Bingo Palace à Go-Go. Haviam vendido dois mil convites e o pessoal estava se acotovelando na entrada. Aquelas mocinhas vestindo maiôs e tênis Reboque foram decisivas para o encaminhamento das convidadas às mesas reservadas. Aquela foi uma noite de surpresas, começando pela apresentação do Ronco de Porco, seguindo com a performance das meninas de maiô e os rapazes sarados de sunga. Ronco de Porco desafinou tanto que o pessoal começou a gritar por discurso, na tentativa de calá-lo. Quando Herbert se levantou, pronto para atender ao chamado, ouviu-se uma voz fina, mas firme, ecoando pelo salão, em substituição aos zurros do Ronco de Porco, sustentados pelos cacófonos reggaes dos Bombachudos da Jamaica. Era a voz da Tia Hitlertraudt. Do que tratou o discurso dela, nada sei, mas quase todos ali ganharam algo, naquela noite. Ronco de Porco e os seus Bombachudos Jamaicanos ganharam o primeiro nome no seu portfólio de clientes. Saíram do amadorismo. Diversos confrades se livraram, ou melhor, venderam seus produtos e serviços. Harold tornou-se um dos publicitários mais requisitados pelos políticos, lembrado por nove entre 10 CPIs. Somente Herbert perdeu. Perdeu a eleição, diga-se de passagem. Não foi páreo para o discurso da Tia Hitlertraudt, esta sim, eleita deputada.
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