11.6.08

411 - A guerra das mamonas



Batalha de La Lys, Flandres
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A guerra das mamonas

Por Paulo Heuser


Em Santa Cruz do Sul havia um terreno baldio, de área de pelo menos um hectare, junto ao centro da cidade, entre as ruas Marechal Deodoro e Tomás Flores. Para uma criança, aquilo era uma selva cruzada por um rio. Hoje desconfio que o rio era o esgoto. O terreno estava coberto pela vegetação, com muitas árvores, entre infinitos pés de mamona. A altura da vegetação aumentava a sensação de imensidão, pois, uma vez lá dentro, não era possível enxergar os limites do terreno. Havia trilhas em meio à floresta, abertas sabe-se lá por quem.

Como nem tudo são flores no paraíso, havia também a disputa pelo controle do terreno. Duas turmas disputavam o controle sobre aquele latifúndio urbano. Cada turma construía seu esconderijo no meio da selva, longe das trilhas, de modo a dificultar sua localização pelo inimigo. As regras do conflito territorial não eram muito claras. Todos sonhavam com as armadilhas pavorosas, preparadas pelos nativos africanos do cinema, como aqueles troncos cheios de pontas que perfuram todo o inimigo, e acabavam montando armadilhas menos mortais, preparadas com o subproduto da digestão humana. Menos mortal, porém igualmente cruel. O cuidado com a segurança do esconderijo se explicava, pela ferocidade dos conquistadores, que destruíam completamente o reduto inimigo. Não sobrava pedra sobre pedra, ainda mais que não se utilizavam pedras, apenas madeiras.

Os combates diretos, entre os membros das duas turmas, não eram muito comuns, porém ocorriam. Eram lutas sangrentas. Guerras de mamonas. Quem nunca levou uma bodocada de mamona na orelha não pode imaginar a dor que causa. O sujeito passa a odiar biodiesel e óleo de rícino.

Numa linda tarde de sol, as duas turmas se defrontaram, na única parte do terreno que apresentava vegetação rasteira, e permitia a visualização direta do inimigo. Guerreiro calejado, eu consegui uma tampa de tonel de metal, para utilizar como escudo. Foi uma maravilha. Avançava agachado, em meio à saraivada de mamonas, ouvindo o som dos obuses vegetais atingindo meu fantástico escudo. O que faria, quando chegasse lá, não sei. Contudo, avançar incólume dava uma sensação de poder. Não cheguei até o inimigo, pois me esqueci de proteger as mãos, que seguravam a tampa do tonel. Lá pelas tantas, alguém mandou uma bodocada certeira que atingiu meus dedos. Foi o suficiente para que eu largasse a tampa, ficando a descoberto. Foi hora de bater em retirada, sem olhar para trás.

O terreno baldio deu lugar às casas e a um supermercado. Com o tempo, todos cresceram, viraram adultos, e têm apenas as boas recordações deixadas pelas rusgas em meio à selva santacruzense.. Memórias que nem o Alzheimer apagará. Outros, menos afortunados, lutam suas guerras de mamonas depois de adultos. Em comum, com aquelas crianças, têm apenas uma coisa. Não sabem o que fazer quando chegam lá. Quando ninguém lhes atinge as mãos, derrubando seus escudos, eles chegam ao reduto do inimigo, escudados pelos discursos de campanha. Então, não deixam pedra sobre pedra. Deixarão apenas as péssimas recordações.


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