406 - Uma questão de imputabilidade
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Uma questão de imputabilidade
Por Paulo Heuser
Quem é criminalmente imputável, afinal? Todo mundo que goza de perfeita saúde mental, não está sob o efeito de drogas, não é parlamentar, e foi civilizado. Este é o entendimento jurídico reinante. Ou seja, há bem mais inimputáveis do que se imagina. O grande problema é a convivência entre imputáveis e inimputáveis. Eles não devem habitar o mesmo ambiente, sob pena de alguém dar uns talhos no outro alguém, e livrar-se da encrenca. Os inimputáveis deveriam ficar fisicamente separados do resto da população - os imputáveis. Os detentores de cargos eletivos, que gozam de imunidade, ficariam confinados às reservas parlamentares. Os não-civilizados ficariam confinados às reservas indígenas, na companhia de membros de ONGs estrangeiras, representantes das madeireiras, garimpeiros, pesquisadores de laboratórios, guerrilheiros de nações amigas e vendedores de facões abençoados. Os inimputáveis que sofrerem das faculdades mentais, ou estiverem sob a influência de drogas, ficariam confinados ao mundo, às ruas, às praças e as suas casas.
Cabe aos imputáveis a percepção da condição de inimputáveis dos outros. Por isso, todo cuidado é pouco, ao passar por eles. Esta é uma regra de sobrevivência do mundo moderno. As mamães ensinam os filhos a evitarem aqueles sujeitos de aparência exageradamente rústica, que vêm pela rua, babando e sorrindo, com os olhos esbugalhados.
Haram pensa assim. Ele sempre foi favorável à manutenção dos não-civilizados em ambientes isolados. Somente quem compartilha da mesma ética, pode viver em comum. A convivência religiosa dos ditos civilizados não é nada, digamos, civilizada. Assim, fica difícil definir o que é civilização. Haram tem consciência desses problemas éticos, surgidos nos contatos com civilizações primitivas não-civilizadas. Eles não vêem a morte do outro como algo necessariamente ruim, desde que possam comê-los. Faz parte da sua natureza e das suas religiões. Suas relações com o ambiente também são diversas daquelas dos civilizados. Os inimputáveis não têm escrúpulos, em venderem as riquezas naturais das suas reservas aos imputáveis que convivem com eles. Os imputáveis, também não. Mais um motivo para viverem isolados – acredita Haram.
Terom é um otimista. Acredita que os não-civilizados têm apenas boas intenções. Eles deveriam ser ajudados a progredir aos patamares mais altos da civilização. Terom defende os missionários que se aventuram pelas reservas, catequizando e fornecendo a tecnologia mais avançada da civilização mais desenvolvida. Ele acredita na integração social do não-civilizado, através de empurrõezinhos na escala evolutiva. Forneçam-lhes tecnologia e eles saberão o que fazer com ela – este é o seu lema.
Não é de hoje, que Haram e Terom trocam farpas a respeito da conveniência do contato com os inimputáveis não civilizados. A rusga começou em 1938, quando Terom participou de um contato direto com um não-civilizado chamado Otto Hahn. Num gesto de boa vontade, mostrou ao sujeito o que acontecia quando se bombardeavam átomos de urânio com nêutrons térmicos. Deu no que deu. Acabaram construindo uma bomba atômica. Não é para isso que se transfere tecnologia aos primitivos. Haram defende a manutenção dos terráqueos na sua reserva planetária. Eles que façam bom uso dela.
Terom não desiste de tentar civilizá-los. Aparentemente, não aprendeu nada com seu primeiro fracasso. Continuou transferindo tecnologia, e os primitivos criaram o Orkut e o YouTube.
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