9.11.10

579 - A grande noite


A grande noite
Paulo Heuser

Como alguém deve ter notado, andei meio afastado da pena. O Moacyr Scliar diz que escrevemos como forma de catarse. Creio que ele tem razão, principalmente depois que descobri, em algum dicionário, que catarse significa purgação, evacuação ou purificação. Isolando a purgação e a evacuação, deixando-as no plano mais fisiológico, digamos assim, resta a purificação da alma após um trauma. Quem me deixou com vontade de catar-me foi o Paul McCartney. Confesso, assisti ao show dele. Tudo começou, uance oponataime, quando anunciaram que o ex-eterno-Beatle viria a Porto Alegre. Confesso que relutei, inutilmente, em comprar os ingressos, não apenas pelo preço, um tanto salgado. Não que eu não gostasse do Paul McCartney, ainda mais que ele não traria junto o Ringo Starr. Ocorre que eu detesto duas coisas na vida: arroz doce e Imagine. Ok, Let it be também. Tá, acrescente Yesterday. Porém, logo descobri que ir ao show era uma obrigação social, algo como uma peregrinação, que todo mundo tem de fazer, pelo menos uma vez na vida. Comprei os ingressos pela Internet, pagando uma “taxa de conveniência” de 16%. Foi muito conveniente, para não dizer revolucionário. Você compra pela rede e paga 16% para retirar o ingresso numa fila lá no estádio. Prodigiosamente conveniente! Para eles.
Eis que chega o dia, finalmente. Consigo me esquecer daquelas três músicas, e do arroz doce, e me encho de esperança, pois ele tocará Let ‘em in, Eleanor Rigby e A Day in the life, das quais eu realmente gosto. Chegar até o estádio até que é fácil. O problema é entrar lá. Há filas por todos os lados, mesmo após hora e meia da abertura dos portões. Se todos os caminhos levam a Roma, nenhuma dessas filas leva a algum lugar, apenas às outras filas. Elas serpenteiam, giram em torno de si, não têm início nem fim, apenas algo em comum, gente que não sabe em que fila está. Os prometidos orientadores de fila estão fora das filas, dentro do estádio. Do lado de fora, Medusa enfia o dedo na tomada e sobram serpentes enlouquecidas. O pessoal das filas bebe cerveja e conversa com quem está nas filas que se cruzam periodicamente. Deve haver uma função de senos e cossenos que explique isso. Imagino o que acontecerá com as bexigas repletas de cerveja. Uma mulher grita, furiosa, pois nossa fila estaria invadindo a dela. O marido, impassível, toma um longo gole e arrota ruidosamente. Ele tenta encobrir a barriga com a camiseta “Eu estive lá” baby look. Chegamos de alguma forma ao portão. Hora de retirar as tampas das garrafas de água. Pode-se levar qualquer coisa na garrafa, desde que não haja tampa. A revista das bolsas, que não há, deixa passarem facas, soqueiras, granadas, bazucas e potes de arroz doce. Passada a roleta, fica fácil, basta espremer-se, com mais milhares de pessoas, num corredor estreito, que leva ao gramado. Não é necessário caminhar. Bóia-se na correnteza do mar de gente. De onde sairá tanta cerveja? Lá dentro, nova fila, imensa, a do bar. A chegada ao gramado é um alívio. Há pelo menos 0,3 metros quadrados por pessoa. Não para de entrar mais gente, vinda daquele funil humano. O cheiro da cerveja já lembra o das seis da matina no baile do chope. O sol se vai e agora é só esperar. E defender meu 0,3 metro quadrado de grama. Há um pessoal que tenta invadir meu terreno, repilo-os. Joguei handball quando estive no colégio e sei defender meu terço de metro. Só não consigo repelir a fumaça daquilo. O pessoal fuma bosta seca, sem parar. Isso faz os fundos do Parcão se parecerem com uma sala de atmosfera limpa. Virei fumante passivo-compulsivo de marofa, a ponto de tornar I got a feeling em algo palpável.
Após hora e tanto e alguns alarmes falsos, ele chega. Lá está ele, Sir Paul McCartney, ou, pelo menos, um playmobil anão que se parece com ele. Os telões imensos ajudam, pois a essa distância o Tiririca passaria pelo Sir Paul. O show começa e o público delira. Pudera, o homem faz jus à fama. A marofa é tanta que me surpreendo cantando uma daquelas três músicas. Mais algum tempo nesta sauna de viquevaporube paraguaio e serei capaz de comer arroz doce. Chega a encobrir o fedor de cerveja. O efeito parece geral, pois uma senhora bate em todos que estão por perto, atingindo-os com uma estranha almofada de azul acetinado, saída do sofá de alguma titia velha.
Justiça seja feita, Paul McCartney canta, toca e se comunica com a platéia durante três horas, com afinação, carisma e sem demonstrar o mínimo cansaço. Parecem trinta horas, em meio a essa nuvem. O homem arrisca frases em português e, aparentemente, usa o tradutor do Google, pois grita coisas como uóblirrublá e espera que a platéia as repita. Funciona, efeito da marofa, com certeza.
Por um momento, lembro-me de 1965, quando assisti ao filme Help, dos Beatles, num daqueles finados cinemas da Rua da Praia, levado por uma das primas, creio que foi a Suzana. As mulheres gritavam e desmaiavam, só de vê-los na tela. Imagine o que fariam se os vissem assim, quase ao vivo, encobertos apenas pela distância e pela nuvem de esterco queimado. Morreriam, por cento.
Após os bis e tris, volto para casa, realizado. Valeu cada tostão, e nem precisei comer o arroz doce. Rezo para que nenhum policial pare o meu carro. Escaparei do bafômetro, mas do fedor daquilo, impregnado nas roupas e cabelos, não. Só faltou Lucy in the Sky with Diamonds. Outros tempos.             

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