27.4.07

Férias!

Este blog voltará no final de maio de 2007. Férias!!!!!!!!!!!

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24.4.07

Vocação Neurológica


Vocação Neurológica

Por Paulo Heuser


Armagedônio Ímpio viveu uma infância normal, excluídos alguns episódios um pouco estranhos. Coisa pouca. Nada que pudesse assustar àqueles que já o conheciam bem. Dissecava ratos vivos, movido pela curiosidade científica. Coisas da infância, diziam os pais. Não era muito comunicativo, em alguns períodos, excessivamente, em outros. Coisas da infância, diziam os pais. Os colegas não gostavam muito da maneira como ele jogava futebol, tanto que deixaram de convidá-lo. Tudo porque ele costumava sair correndo com a bola embaixo do braço. A devolvia. Furada, mas sempre devolvia. Coisas da infância, diziam os pais.

Quem reclamou primeiro foi a bibliotecária da escola. Armagedônio adorava livros. Pedia os clássicos bíblicos e os devorava, literalmente. Colocava uma régua, ao comprido, sobre as páginas, e rasgava tira por tira, comendo-as a seguir. Restavam apenas capa e lombada. Impressionada com a cena de blibliofagia explícita, Dona Marta comunicou o fato à direção da escola, que, por sua vez, chamou os pais. Coisas da infância, diziam os pais, que se comprometeram a repor a seção de livros ocos. Os colegas afastaram-se mais, quando Armagedônio começou a desfilar pelas ruas levando Canny pela coleira. Exibia orgulhoso as piruetas que o cão realizava. O ponto alto do espetáculo ocorria quando Canny subia pelas paredes. Nada extraordinário, considerando um animal imaginário. Coisas da infância, diziam os pais. Na época em que Armagedônio completou 18 anos.

Hora de servir à Pátria. Inexplicavelmente, Armagedônio foi recusado na seleção. O médico ficou muito impressionado com o traje temático apresentado pelo rapaz. Montara uma reluzente armadura medieval, a partir de sucata de dutos metálicos. Coisas da infância, diziam os pais. A coisa ofuscava, ao sol. Assim, comprovou-se a criatividade do rapaz. Haveria de seguir uma carreira voltada à criação.

A psicóloga que tentou determinar a vocação do Armagedônio ficou muito preocupada. Não pelo fato de ele ter chupado toda a tinta das quatro canetas esferográficas depositadas sobre a mesa. A gota d’água foi a descoberta feita por Armagedônio. Descobriu que o tapete branco de pele, da sala da psicóloga, era na realidade a terra prometida para sua coleção de pulgas, cuidadosamente trazidas numa caixa de sapatos. Coisas da infância, diziam os pais, mas concordaram em levá-lo ao psiquiatra. Após um sem número de antigos e modernos exames o médico concluiu que Armagedônio apresentava algum defeito nos genes ligados à esquizofrenia, coisas como NRG1 e erB64. Ou seja, não batia bem. Tudo muito técnico. Coisas da infância, diziam os pais. Com excesso de oligodendrócitos e falta de mielina, Armagedônio tentava encontrar algum rumo na vida. Passou por uma fase de rompantes verborrágicos espontâneos, quando discursava aleatoriamente, em praça pública, sobre o que lia nos jornais, antes de comê-los. Coisas da infância, diziam os pais.

Seus discursos não passaram despercebidos. Foram ouvidos. E lhe deram um futuro. Elegeu-se com mais de um milhão de votos.



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19.4.07

A Máquina de Hércules


A Máquina de Hércules


Por Paulo Heuser

O mundo mudou. Mudaram as empresas, as relações familiares, as relações amorosas e, sobretudo, as relações de trabalho. O que ontem era visto como um funcionário relapso lendo jornal no horário de trabalho, hoje é visto como um colaborador aprimorando sua cultura, para o bem geral da empresa e dos demais colaboradores. Até os organogramas evoluíram e os antigos departamentos de RH se transformaram nos modernos gestores de colaboração. Novos tempos, novos comportamentos e novos rótulos.

Somente Heino não percebeu a mudança, ou melhor, não a quis perceber. Aprendeu a gerenciar a empresa com o pai, que aprendeu com o avô, na terra natal distante. Heino manteve as tradições que forjaram a linhagem de administradores empiristas. Não completamente, pois mandou o Júnior estudar na cidade grande, na faculdade. Júnior estudou administração de empresas, com ênfase em gestão de colaboradores. Não só se graduou, se pós-graduou, também. Chegou a receber convite para fazer o doutorado, mas preferiu voltar para sua cidade, ajudando o pai na gestão da empresa. Júnior voltou transbordando de idéias sobre motivação de equipes e outras técnicas que deixariam Heino de cabelos em pé, se ainda houvesse algum. A bagagem de conhecimentos recém-adquiridos do Júnior foi terraplenada pela ortodoxia positivista de Heino. Se não estava escrito, há muito, não existia.

Quem finalmente venceu Heino não foi a argumentação acadêmica do Júnior. Foi a foto no obituário e a inscrição na lápide. Heino ganhou a primeira posição na galeria dos ex-presidentes da empresa. Junior finalmente assumiu o cargo para o qual se preparou durante anos. Sonhava com profundas mudanças na gestão dos colaboradores, que levaria a empresa a dar um salto de qualidade. Durante anos, os func... colaboradores reivindicaram, mudamente, o café. Mudamente, pois Heino não tolerava reivindicações, a não ser que implicassem maior lucro. A questão não era nem de produtividade, o termo era lucro, mesmo. Receita menos despesa. Com algum lugar para os impostos, é claro. Nada sobrava para o café, na antiga visão ortodoxa de Heino. Júnior, por outro lado, acreditava que func... colaboradores felizes trabalhavam melhor, agregando qualquer coisa ao todo.

Foi numa segunda-feira, pela manhã. Júnior chamou ao escritório aqueles func... colaboradores que eram considerados líderes informais, para uma reunião. Entraram mudos, já que todos conheciam o temperamento de Heino. Júnior era galho da mesma árvore. Ouviram mudos, espantados, enquanto Júnior explicava sua idéia de fornecer café graciosamente aos funcionários. A boa nova correu célere, com Júnior caindo nas boas graças de todos. Principalmente quando eles viram a flamante cafeteira automática industrial. Aquele monstro seria capaz de produzir um sem número de cafés por hora, com leite, sem leite, com chocolate, doce, amargo e, até, café simples, preto. Bastava um apertar de botões e, “xazãm!”, o café recém-colhido-moído-torrado-e-passado fluía ao copo. Espanto tecnológico.

Também numa segunda-feira, chegaram más notícias. O pessoal da controladoria informava perda de lucratividade, provocada pela fantástica máquina de café. Por duas razões até então identificadas. Primeiro, não só os func... colaboradores da empresa estariam usufruindo a máquina. Os números chamavam a atenção. Como poderiam 123 funcionários beber uma média de 1.968 cafés por dia? Logo se descobriu que alguns traziam garrafas térmicas, depois levadas para casa. Uma senhora velhinha foi vista saindo com um imenso tarro de alumínio, para entrega de leite a granel. Havia também o pessoal que vinha de prédios vizinhos. O outro motivo alegado para a queda da produtividade foi a socialização dos func... colaboradores, enquanto tomavam café, eventos que poderiam durar horas.

Heino não pode fazer ouvidos moucos. Mas também não queria retirar conquista tão importante dos func... colaboradores. Emparedaram a fantástica máquina, para limitar o acesso a ela. O pessoal (os func... colaboradores) estranharam, no princípio, mas entenderam a motivação. Aproveitaram, no entanto, para reivindicar um pequeno bar, onde pudessem comprar algo para comer. Júnior não estudara tudo aquilo para cair nessa. Um bar geraria fumaça, cheio de fritura e incômodo, com certeza. Sem mencionar que o problema da socialização ficaria exacerbado. Preferiu contratar uma também fantástica e extraordinária máquina dispensadora de coisas prontas para mastigar, como sacos de salgadinhos sabor vôm... bacon. Não tardou para iniciarem as queixas, pois alguns consideravam os salgadinhos insalubres, continham demais sódio, demais gorduras trans e demais vôm... bacon. Júnior jogou a toalha e entregou a tarefa de contentar a todos à recém-formada comissão de func... colaboradores. Fizeram uma pesquisa de mercado, para identificar o tipo preferido de lanche. O resultado não deixou de ser surpreendente:

23% - Sonhos (aqueles pesadelos fritos);
22% - Coxinhas de galinha;
13% - Bolinhos de chuva;
8% - Pasteis de frango;
7% - Croquete;
6% - Sanduíche de mortadela;
5% - Cueca virada;
4% - Bolo inglês;
3% - Feijão mexido;
2% - Sanduíche de salame;
1% - Torresmo;
6% - Outros, inclusive o pé-de-moleque.

Júnior percebeu logo que dificilmente encontrariam uma máquina que dispensasse qualquer uma dessas coisas. Ficou imaginando uma máquina que dispensasse feijão mexido. Dava nojo só de imaginar. Mas, promessas eram promessas, haveria de cumpri-las. Júnior utilizou uma estratégia aprendida na cidade grande: quando lhe trouxerem um grande problema, jogue-o de volta no colo de quem o trouxe. Imediatamente deu carta branca à comissão de func... colaboradores para que encontrassem uma máquina capaz daquele prodígio.

Já que o fornecedor de café declarou-se incapaz de atender às reivindicações, que outrem atendesse. Entregaram a tarefa à mulher do Arfeio, que já explorava uma concessão de churrasquinho de gato, defronte à empresa. Ela colocaria uma banca, ao lado da máquina de café, e prepararia aquelas iguarias, ao vivo. Se era o que todos queriam, que fosse – declarou Júnior.

Novas más notícias vieram da controladoria. O pessoal (os func... colaboradores) aguardavam muito tempo, enquanto seus lanches eram preparados pela mulher do Arfeio, que sofria de artrite, por isto aposentada. Alguns setores paravam em protesto pelo cheiro de fritura que subia pela coluna de ventilação. A mulher do Arfeio ligou um exaustor à tubulação, pois os seus clientes queixavam-se do cheiro do bar. Alguns func... colaboradores criticavam a qualidade dos alimentos preparados na hora. Um em especial se queixava dos bolinhos ingleses recém-assados. Não secariam toda saliva da boca, segundo ele. Um bolo inglês que se preze deve absorver qualquer umidade do corpo, feito esponja universal. Os sonhos fresquinhos também foram alvo de queixas. Eram sequinhos demais. Faltava aquela gordura amanhecida. A comissão dos func... colaboradores apresentou queixa no sindicato e na delegacia do trabalho. Quando Júnior foi notificado, percebeu que algo drástico devera ser feito. Convocou a comissão de func... colaboradores, o sindicato e a mulher do Arfeio para uma reunião. Nela expôs os problemas originados no bar e suas conseqüências. Acabaram concordando com as premissas de que os alimentos deveriam chegar prontos e serem vendidos rapidamente. Nada de fedor, nada de fila. Já tentando se livrar do problemas, Júnior comunicou que a empresa somente aceitaria uma máquina, como no caso do café.

Arfeio e sua mulher estavam desolados, pois perderiam o ponto. E já haviam perdido o ponto do churrasquinho, defronte. Foi ele quem teve a idéia. Se quiserem uma máquina, a terão! Limpou as migalhas de pão sobre a mesa, estendeu o papel de embrulho do pão, e pôs-se a projetar a solução do problema. Virou a noite, mas amanheceu com o projeto feito. Bateu cedinho na casa do cunhado, mecânico de solda. Deixou o projeto e foi trabalhar.

O cunhado acordou cedo, vestiu a melhor – e única – camiseta regata manchada, colocou a melhor bagana de cigarro no canto da boca e partiu à caça. Encontrou uma enorme geladeira velha, no depósito de sucata. Pegou as lâmpadas coloridas na caixa de coisas de Natal. Os botões, de um liquidificador quebrado. E lá se foi, após conseguir também uns pedaços de fios. Não foi difícil retirar a buchada da geladeira e abrir diversos sulcos e orifícios no fundo. Pintou a obra prima de preto e instalou as lâmpadas do lado de dentro, os botões do lado de fora. A porta serviria exatamente para entrar e sair da máquina. Instalou ainda prateleiras no fundo, para estocar as mercadorias. Um cardápio, feito no micro do escritório, foi afixado do lado de fora, junto aos botões. Curiosamente, era uma máquina que aceitava qualquer tipo de cédula, moeda ou tíquete, inclusive fichas de vale-transporte. Correu um boato sobre a máquina aceitar até caderno, fiado. O cunhado conseguiu um carreto barato para levar sua criação até o bar. A coisa era bem simples. Munida de um bom estoque, a mulher do Arfeio entraria no móvel da ex-geladeira, colocada (a geladeira!) com a traseira voltada aos clientes, pela abertura da porta. O cliente colocaria o dinheiro, ou outra forma de pagamento, pelo sulco e apertaria o botão correspondente à iguaria desejada, que acenderia uma luz no interior da máquina, indicando à mulher do Arfeio qual era o pedido. Esta passaria o pedido pela abertura no fundo da geladeira e passaria também o eventual troco, ou vale, no caso de pagamentos nessa espécie. Havia até uma caneleta para despejar o feijão mexido. Uma máquina dotada de coração humano.

Arfeio cometeu um erro de projeto. Subestimou as dimensões da mulher, que não coube dentro do móvel da geladeira. O cunhado lembrou-se do Hércules, primo desempregado. Hércules era anão e serviria como uma luva, considerado o espaço disponível. Após um breve treinamento na operação do equipamento, Hércules decorava a tabela de conversão de cores de luzes para a seleção de alimentos. Cor vermelha, bolo inglês, cor azul, pastel de galinha, luz verde, feijão mexido.

Dia da inauguração! Após os discursos do Júnior, dos membros da comissão de func... colaboradores e do presidente do sindicato, cortaram a fita inaugural, aplaudidos pelos 92 func... colaboradores que não faziam parte da comissão de func... colaboradores. Foram 38 discursos.

Hércules estava ansioso. E faminto. Não resistiu àquela panela de feijão mexido frio, um dos seus pratos preferidos. Saciou a fome, enquanto os discursos se sucediam, do lado de fora. Aí pelo 24º discurso, o feijão começou a fazer efeito. No Hércules, que sentia um desconforto intestinal crescente. O suor começou a escorrer pela fronte, devido ao calor interno, da máquina, e devido àquela pressão interna, do próprio. Sentindo que os discursos iriam varar o resto da manhã, Hércules resolveu dar uma escapadela até o toalete. Havia tempo, com certeza. Foi então que se escancarou o segundo erro de projeto do Arfeio. Esquecera-se de colocar uma maçaneta do lado de dentro. Erro até natural, já que ninguém abriria uma geladeira por dentro. E era uma geladeira do tempo em que havia realmente uma tranca. Após um momento de pânico inicial, Hércules procurou acalmar-se, utilizando um exercício de respiração que aprendera nas aulas de pré-parto da mulher. Teria de agüentar até que a mulher do Arfeio abrisse a porta para repor estoque.

O último discurso, finalmente! Júnior foi convidado a cortar a fita e inaugurar a máquina. Hércules deu graças a Deus, já não sabia mais o que fazer. Rezava de olhos fechados. Assim, não viu a luz vermelha acender na sua frente. Nem poderia, mesmo se estivesse de olhos abertos. Esqueceu-se de avisar que era daltônico. Arfeio pensou que Hércules dormira, e deu um tapa na máquina, acrescentando: - É nova, ainda não amaciou... Hércules levou um susto, soltando a guarda e algo mais. A pressão intera superou o limite da válvula de segurança. Ocorreu uma súbita e incontrolável expansão de gases, contida no interior da máquina, num primeiro momento. Júnior pressionou novamente o botão correspondente ao bolo inglês. Hércules percebeu a luz verde acendendo. Recolheu a nota de R$ 50,00, deu o troco em vales-transporte, tíquetes e algumas moedas, prontamente mandando uma carga generosa de feijão mexido. Era inauguração, afinal. Júnior ficou com cara de bobo, com a mão vazia defronte à saída de pastéis, enquanto o feijão mexido caía no seu sapato e uma cascata de tíquetes e vales caía do sulco. E ele jurou que ouvira a máquina reclamar – do idiota que pagava com uma nota de 50, no início da manhã.

O próprio Hércules não agüentava mais o peculiar odor do subproduto da digestão do feijão mexido. Sem saída, teve uma idéia que se mostrou muito luminosa, muito mesmo. Riscou um fósforo, receita infalível para se livrar daquele tipo de odor.

Aquela cena aparecendo na chamada do noticiário da tv não era a de um mercado de Bagdá, apesar da fumaça, dos destroços e dos feridos sendo atendidos. A cena que mais chamava a atenção era a de um anão atordoado saindo de dentro de uns destroços tombados, que pareciam uma geladeira calcinada, enquanto a fumaça saía das suas vestes esfarrapadas. Escorria uma massa preta, do teto e das paredes.

Júnior lembrou-se muito do pai, naquele dia. E passou a dar mais valor aos ensinamentos passados de geração em geração.



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14.4.07

A Torneira



A Torneira


Por Paulo Heuser

Torneiras são coisas maravilhosas. Não nos damos conta disso, no dia-a-dia, enquanto as torneiras funcionam, bem entendido. Reparamos nelas quando deixam de funcionar, como aconteceu com a torneira da água gelada do bebedouro do escritório do Alfredo. Quebrou, simplesmente, deixando o pessoal com a água morna, apenas. E a água gelada tem outro gosto, ou melhor, não tem gosto algum. Talvez seja esta a razão para o sucesso dela. No primeiro dia, ninguém falou nada. No segundo, algumas reclamações. No terceiro, havia focos de ameaça de greve, caso não consertassem a torneira da água gelada.

Fez-se a hora de testar o serviço de manutenção terceirizada, recém-contratado. Daqueles que se paga por mês. Uma maravilha, profissionais especializados, cada um na sua área. Tudo é tão moderno, podendo-se abrir um chamado via Internet e acompanhar o andamento. Transparência total. Alfredo cuidou pessoalmente da coisa. Acessou a página da empresa, escolheu o formulário indicado e começou a preenchê-lo. Quem bolou aquilo, pensou em tudo. Há todo tipo de perguntas, até uma que indaga sobre as conseqüências da torneira estar quebrada. - Perspectiva de greve iminente -, respondeu Alfredo à questão. Maravilha, 23 minutos após iniciar o preenchimento, Alfredo cliclou no botão “Enviar”. Teve alguma dificuldade para descobrir o número de série e a data de fabricação da torneira. Achou propício enviar um memorando a todos no departamento, informando sobre a solicitação de manutenção da torneira, para jogar um balde de água fria nos agitadores de plantão. Água fria que não saía da torneira, por sinal. Acrescentou o número do chamado, para que pudessem acompanhar o andamento.

O pessoal adorou. Em questão de poucos minutos, fez-se o silêncio, com todos acompanhando o andar da carroça. Ouviam-se apenas alguns rápidos comentários, entusiasmados até: - Viu só, já começou!

Efetivamente, logo após o número do chamado, já aparecia na tela a primeira ocorrência:

09:23:14 – Solicitação recebida pelo robô de coleta de pedidos.
09:23:15 – Aberta OS no. 1893940989098 série A-23.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

09:23:17 – Solicitação encaminhada para Aurélia, matrícula 65#8798.

Maravilha tecnológica! Alfredo não conteve o entusiasmo. Mandou que alugassem um canhão, para projetar a tela na parede. Estranharam um pouco a demora para que aparecesse nova ocorrência na tela. Por fim, apareceu. Já havia um grupo defronte o telão.

10:48:23 – Aurélia volta do toalete.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

11:56:12 – Aurélia vai almoçar.

O pessoal do telão também vai.

13:29:12 – O pessoal volta do almoço.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

14:23:45 – Aurélia volta do almoço.
14:55:43 – Aurélia desliga o telefone e vai escovar os dentes.
15:47:11 – Aurélia volta do toalete.
15:47:59 – Aurélia verifica a relação de ocorrências, no computador. Encontra a OS no. 1893940989098 série A-23. Cuidará disso, tão logo termine a partida de paciência.
16:21:44 – Aurélia despacha a OS no. para o setor de Mecânica.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

16:49:54 – Maurício recebe a OS no. 1893940989098 série A-23.
16:49:55 – Maurício retorna a OS no. 1893940989098 série A-23 para Aurélia, pois o setor de mecânica não conserta torneiras.
16:59:59 – Aurélia retorna do café e parte para buscar o filho na aula de dança de rua.

Dia 2:

07:58:12 – Aurélia chega ao escritório
08:01:21 – Aurélia vai ao refeitório, para o café da manhã, junto com a Mirtes e a Flávia.
08:48:14 – Aurélia volta do café e liga o computador.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

08:49:34 – O carro de som do sindicato encosta na porta do prédio.
09:34:25 – Aurélia volta do toalete. Avisam-lhe que a Lurdes está vendendo roupas íntimas na sala de reuniões.
10:12:51 – Aurélia volta da sala de reuniões. Ops, quase perde a hora da fisioterapia coletiva.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

11:55:13 – Aurélia volta da fisioterapia coletiva, pega a bolsa e vai almoçar.
11:56:34 – O sindicato entrega um ultimado à diretoria. Sem água gelada, nada de trabalho.
14:07:58 – Aurélia retorna do almoço, vai ao toalete,.....

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

15:59:39 – Aurélia verifica que o Maurício da Mecânica retornou a OS no. 1893940989098 série A-23. Trataria logo disso, se o chefe não a tivesse chamado.

O homem estava preocupado, pois um cliente chamado Alfredo estava furioso com um hipotético descaso com uma hipotética torneira quebrada. Ameaçava rescindir o contrato, um grande contrato, por sinal.

- Gente estressada essa – observa Aurélia. Tanto drama por uma mísera torneira.

Aurélia teria visto, mesmo. Pena que quebrou a torneira de água gelada do bebedouro de água do departamento dela. Teve de procurar alguém para consertá-la.

Carlos vai até o bebedouro e serve-se de um copo d’água.

Alfredo passa ao lado dele, preocupado em conseguir mão-de-obra temporária para substituir os grevistas. Pára, no entanto, e fala:

- Carlos, você é o único que toma essa água morna sem reclamar. Como consegue?

- Bem, chefe, eu troquei a torneira de água gelada com a torneira de água morna, espero que ninguém se importe.

A empresa quase quebrou, devido à greve, Carlos foi demitido por sabotar o fornecimento de água morna, Aurélia foi promovida à vice-presidente, pela idéia de terceirizar o conserto de torneiras, e Alfredo foi visto no toalete, chorando feito criança.

Aurélia tomará conta da OS no. 1893940989098 série A-23, tão logo volte do chá em sua homenagem, pela promoção.


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12.4.07

O Gamerial Pôs Fogo no Circo

O Gamerial Pôs Fogo No Circo

Por Paulo Heuser


As pessoas diferentes são mais notadas nas cidades menores. Lá todos conhecem todos. Nas grandes cidades elas se limitavam aos bairros, cada um com seu louco, seu excêntrico, seu avarento, sua velha que cria 128 gatos, e assim por diante. O próprio conceito de loucura vem mudando ao longo dos tempos. O que seria um louco varrido, há alguns anos, hoje poderá ser um virtuoso em alguma área. Loucura e genialidade, por vezes, andam juntas.

Foi nisso que pensei, ao ver um sujeito empurrando um carrinho de compras, próximo ao Mercado. Até aí, nada de mais. Uma cena natural, não fosse pela placa de papelão, que ostentava no peito, dependurada no pescoço através de fios. A placa dizia: “Gerente de RH”. Dizia não, gritava. Fica difícil classificá-lo, entre louco e visionário. Uma coisa ele conseguiu, com certeza: destaque. Sobressaiu-se entre milhares de Marias e Joões que passam por ali diariamente. Foi o ponto vermelho em meio aos cinza, o que fez a diferença.

Confesso que fiquei um pouco perturbado, tentando imaginar sua história. Por que não o gerente operacional, o industrial ou o financeiro? Bem, o que o levou a colocar aquela placa no peito perdeu-se junto com ele, levado pelo mar de gente anônima que se foi, para lugar nenhum. Não tornei a vê-lo. Lembrei-me do Gamerial, no entanto. Ele andava pelas ruas de Santa Cruz do Sul, catando baganas de cigarros, enquanto xingava alguém transparente, inodoro e insípido. Ao vê-lo chegando, a molecada gritava: “O Gamerial pôs fogo no circo”. Não sei quem lhe deu, nem por que, um apelido de marca de pó-de-gafanhoto. Faz-se hora de esclarecer aos urbanos que pó-de-gafanhoto não é um pó obtido através da secagem e moagem de insetos. É um veneno. Seja como for, Gamerial e a molecada mantinham aquela relação de amor e ódio que os normais costumam manter com os diferentes. Caçoam deles, mas deles sentem falta, quando não estão. Coisas do sadismo guardado dentro de todos nós, liberado quando crianças. Acusavam-no, a título de pirraça, de ter posto fogo no circo que queimou na cidade aí por 1960, creio eu. E o Gamerial corria atrás das crianças, xingando e gesticulando, sem nunca alcançá-las. Fazia parte do jogo. Não queria alcançá-las, na verdade.

Os diferentes geravam assunto. Nutriam a imaginação. Hoje são tantos, nas grandes cidades, que passam despercebidos, para muitos. Tornaram-se lugar comum, deixaram de ser diferentes, portanto. Transcenderam os bairros, perdendo sua identidade.

Ninguém mais repara. Passo despercebido, puxando meu crocodilo empalhado, com rodinhas vermelhas.


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10.4.07

O Erro de Dante


Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 13/04/2007:

http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=73195&intIdEdicao=1132
O Erro de Dante


Por Paulo Heuser


Quem descobriu o Brasil não foi Pedro Álvares Cabral, como contam os livros de História. Foi Dante Alighieri, aí por 1320, quando empreendeu uma viagem aos três reinos do além-túmulo, guiado por Virgílio, autor da Eneida, épico romano do século I a.C. Atravessando o Rio Aqueronte, levados pelo barqueiro Caronte, Dante e Virgílio chegaram ao Brasil. Esperavam encontrar o Limbo, no vestíbulo do Inferno. Encontraram o próprio Inferno, o Brasil. Visitaram nossas cidades, onde as balas perdidas encontram novos donos a cada dia, levando novas almas aos círculos dos mundos além-túmulo. Experimentaram o crack, assistiram aos arrastões, assaltos, assassinatos e às cenas dos famélicos miseráveis morrendo de fome e das doenças, nas ruas. Viram a prostituição infantil. Assistiram ao êxodo rural e a guerrilha no campo.

Em outro círculo do Inferno, assistiram à espoliação dos trabalhadores pela pilhagem oficial dos impostos. À renovação da CPMF. No terceiro círculo esperavam encontrar os gulosos sendo flagelados pela chuva putrefata, observados por Cérbero, o cão de três cabeças. Não estavam lá. Também não encontraram os avarentos, os iracundos e os insolentes soberbos, nos círculos seguintes do Inferno. Encontraram apenas os gentios, sofrendo os horrores da doença, da miséria e da ignorância. Isto sim é um Inferno, digno do nome. Como o fogo das queimadas que destroem a Amazônia, na nova corrida pelo Ouro Etílico. Tudo arde em chamas, como se o enxofre caísse do céu.

Dante e Virgílio acabaram chegando a Brasília, o Paraíso. Lá acabaram encontrando o que faltava no Inferno, paradoxalmente. Encontraram os gulosos que não se saciam com nada, aumentando seu lucro enquanto reduzem seu trabalho. No Paraíso se trabalha de terça à quinta-feira, pela manhã. Depois é hora de visitar o inferno, lá chamado de bases. Reduziram a jornada, pois o barqueiro Caronte andou complicando as travessias. Os insolentes estavam por toda parte, escancarando sua soberba, zombando dos habitantes do Inferno, que os colocaram lá. Encontraram os iracundos que ocupam seu dia fazendo intrigas que não permitem que se faça algo aproveitável. Lá também estavam os avarentos, que não liberam as verbas para satisfazer as necessidades mínimas das almas do Inferno, desviando-as para o próprio paraíso. Acima de todos, lá estavam os hereges, traidores dos dogmas que defendiam quando foram alçados ao Paraíso.

Como Dante errou, ao escrever sua Divina Comédia. O Inferno era aqui.


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Gregocídio e o Leão


Gregocídio e o Leão

Por Paulo Heuser


Gregocídio anda preocupado. Suas noites têm sido insones. Não é só o frio, recém-chegado, o que o incomoda. Nem os outros, que eventualmente compartilham sua marquise. Ofende-se quando o chamam de morador de rua. É de marquise, de marquise! Defronte o 393. O barulho dos carros passando ao lado também não o incomoda. É outra coisa, na verdade.

Chegou ao 393 faz tempo. Assistiu à decadência do prédio. Chegou a temer que aquela marquise caísse durante alguma noite chuvosa. Ainda bem que é uma marquise de esquina. Quando chove de um lado, muda-se para o outro. Contudo, diz morar no 393, para não dar confusão. É um homem que tem residência fixa – sob a marquise. Alguns dão como endereço a rua tal, número tal, fundos. Gregocídio dá a rua tal, número tal, marquise. Quando dobra a esquina, refugiando-se da chuva e do vento, deixa um aviso: “Favor deixar a correspondência após a esquina. A Direção”. O tom mais formal é importante.

Quando lhe perguntam sobre a renda, Gregocídio a tem na ponta da língua, presumidos R$ 15.949,00 anuais, recebidos de pessoas físicas, referentes à extorsão diária de R$ 37,00, em média, das segundas aos sábados, na parada da lotação, acrescidos dos R$ 87,00 que consegue extorquir aos domingos, em Ipanema, como flanelinha. Há ainda os rendimentos pagos por pessoa jurídica, ainda não contabilizados, como os dois sanduíches que o Seu Antenor da Padaria lhe alcança, por dia. Dá para estimar, por baixo, mais R$ 688,60. De segunda a sábado, também. Aos domingos ganha pizza. Mais R$ 7,00 X 52 = 364,00 anuais. Somando tudo, chega-se aos R$ 17.001,60, declarados orgulhosamente pelo Gregocídio, na sua declaração anual de ajuste do Imposto de Renda. Já fez Carnê Leão, no passado. Hoje faz apenas a declaração anual.

Gregocídio não se descuida da declaração de dívidas e ônus. Deve R$ 3,86 ao Tonhão, desaparecido após um arrastão na madrugada. Contam que ele foi junto, de arrasto. Como não voltou, a dívida permanece. Dívida gerada por um momento de caixa zero e pulgas mil. Como o sujeito da farmácia não lhe deu crédito, teve de apelar ao Tonhão. Só não pagará juros, já que o credor sumiu. Mas continuará declarando, mesmo passados sete anos.

O que realmente o incomoda, é a declaração de bens. Como irá declarar o carro? Aquele lindo carro prateado? Teme não ter como justificar a variação patrimonial, caso o declare. A manta de lã uruguaia e a toalha de mesa de plástico não causarão problemas. Mas, e o carro? É ele que tira o sono do Gregocídio. Gregório, seu pai, e Genocídia, sua mãe, sempre fizeram questão de manter-se perfeitamente em dia, com o Leão. Passaram esse ensinamento ao Gregocídio e a Genogória, sua única irmã, já falecida.

O carro não é exatamente seu, na verdade. Tornou-se o fiel depositário, depois que o supermercado faliu. Não teve como devolvê-lo.


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9.4.07

Crise e Oportunidade



Crise e Oportunidade

Por Paulo Heuser

Não sai das manchetes o chato assunto do Apagão Aéreo, maiúsculo devido ao importante estrago causado, econômico, social e institucional. Passados meses dos cadáveres espalhados e do imenso drama vivido pelos que ainda ousam viajar de avião, seja por destemor, seja por obrigação, há de se encontrar novas manchetes. É verdade que a crise criou novas oportunidades de emprego, como no caso dos estatísticos. Qual é o jornal que sobrevive hoje sem um estatístico, para avaliação da situação do caos aéreo? As chamadas de capa devem trazer números da crise: “Aeroportos apresentam 5,47% de atraso nos vôos”. A estatística passou a fazer parte da coisa. Ontem assisti, pela tv, à cena que mostrava uma mulher emocionada, eufórica, porque seu vôo estava apenas 1h47 atrasado. Afortunada, agradecia aos céus, aos controladores e ao Presidente, pelo privilégio de voar no mesmo dia do embarque. Estaria incluída nos 5,47%?

Falando em controladores e presidentes, a conversa engrenou um clima de comovente cordialidade. Após o perdido de perdão dos amotinados, vem o agradecimento do Presidente, por terem feito o seu trabalho. As companhias aéreas, ora vilãs, ora vítimas, ora uma estranha combinação das duas condições, perdem excelentes oportunidades de inovação em seus produtos. Nesta era de extrema massificação globalizada, os clientes estão extremamente carentes de personalização. Imploram para que a máquina de atendimento diga seu nome. Que a conta de telefone comece com um “Caro e amado Fulano”. Há coisa mais impessoal do que a compra de um bilhete de passagem? Quando ainda há bilhete, fisicamente falando. O sujeito senta na frente do computador e faz todo o trabalho de venda da companhia aérea, do atendimento inicial à fatura. Se já havia o medo de voar, agora há os medos de não voar e de voar aleatoriamente.

Cobrem o dobro, companhias aéreas, criem produtos diferenciados e personalizados. Dêem-lhes nomes bonitos, como Deslizando na Carruagem Alada. Coloquem atraentes atendentes reais, pessoas de carne e osso, para vender os bilhetes, de papel mesmo. Aqueles livrinhos com uma página para cada trecho do vôo, com papel carbono vermelho e misteriosas inscrições. Colem papeizinhos adesivos quando das alterações de trechos. Sirvam comida a bordo. Comida mesmo - aquela coisa que se come com garfo e faca, mesmo que de plástico. Para os muito afortunados, criem a classe G – Flying Gods – Deuses Voadores - autêntico ponto G do ego dos viajantes bacanas, com direito a Personal Flight Controller – Controlador de Vôo Pessoal. Esse público já está acostumado a ter personal trainers, personal driver, personal diet planners, personal dancers, personal lovers, personal bankers e personal persons.

Um Personal Flight – Vôo Pessoal – começa pela consulta, feita por um especialista, na casa do cliente. O Personal Flight Advisor – Consultor Pessoal de Vôo – entrevista os clientes de primeira viagem pessoal. Ouve seus anseios, gostos, medos e fetiches. De uma boa entrevista pré-vôo poderá depender um vôo bem ao gosto do freguês. Os fetiches se fazem importantes, apesar de não parecer. Não raro, surgem clientes que desejam ser atendidos por um, ou uma, Personal Flight Attendant – Comissário(a) de Vôo Pessoal -, vestido(a) de rainha má ou carrasco da Bastilha. Segue-se um Personal Flight Plan – Plano de Vôo Pessoal – que é apresentado ao cliente para eventuais ajustes, como a troca do machado do carrasco por uma foice, por exemplo. Pequenos detalhes que definem o sucesso do produto. Aprovado o plano, cardápio inclusive, vamos ao coquetel de confraternização, onde o cliente conhecerá os seus companheiros de fileira, escolhidos através das avaliações psicológicas, obtidas na entrevista inicial. Ao soar dos clarins, entra a tripulação, apresentada através da leitura de currículos. Na apoteose da coisa, entra o Controlador de Vôo Pessoal, que dançará a Valsa do Imperador com o seu cliente. Do mezanino, os menos afortunados poderão assistir à cerimônia, através de binóculos de ópera.

Dia do embarque. Nada de estresse. O Personal Driver leva o Personal Client ao aeroporto. O Personal Ground Attendant – Atendente Pessoal de Solo – levará o cliente para o Spa de preparo, enquanto providencia o Personal Check-in – Embarque Pessoal. Enquanto o cliente relaxa com uma massagem, ou terapia com florais de Mozart, o Personal Customs Agent – Chato Aduaneiro Pessoal – fará os enfadonhos procedimentos aduaneiros de embarque. Quando dos já inevitáveis atrasos, Personal Escorts – Acompanhantes Pessoais – acompanharão o cliente às sessões de cinema ou música de câmara.

O mais importante mesmo é a segurança proporcionada pelo Personal Flight Controller, cuja voz o cliente poderá ouvir durante o vôo, pelo canal sete do som.

Para vôos com destino, origem, ou conexão em Buenos Aires, será garantido um Personal Luggage Violator – Arrombador Pessoal de Bagagem, que saberá furtar apenas aqueles itens pré-acordados com o cliente. Tudo muito personal.


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7.4.07

O Jardim Secreto



O Jardim Secreto

Por Paulo Heuser

Cada vez mais vemos o mundo através dos olhos dos outros. Ele nos é trazido já corrigido, fotoshopiado, pasteurizado e convenientemente cômodo, podendo ser contemplado a partir do sofá. Sem sujeira, sem pernilongos. Talvez por isso fico tão espantado, aqui sentado, em meio a este jardim.

Sentei-me aqui para ler alguma coisa. Os movimentos me distraíram, chamando-me à atenção. O primeiro a quebrar minha concentração no texto foi o beija-flor amarelo, vindo beber água num pequeno bebedouro florido dependurado à minha frente. Seguiu-se um preto, de cauda branca. À esquerda, novos movimentos, as borboletas – estamos no outono? – revoam ao vento e ao sol do início da manhã. Sol filtrado pelo bandô natural do jabuticazeiro. Do gramado, ainda úmido, vem o cheiro de coisa verde. A hera ao fundo, junto ao muro, delimita a seqüência de planos e tons de verde que desce o terreno, como cascata, quebrada pelas flores, aqui e ali – estamos mesmo no outono?

O sabiá de peito laranja acaba de enxotar os sabiás que vieram atrás das migalhas de pão. Ele veio atrás dos pedaços de mamão. Agora são três. Terá vindo toda a família? Ariscos, pulam para lá e para cá, num vaivém especulativo. Estão me testando. Procuro não me mover muito. Numa das idas à árvore, um passarinho pequeno, de peito amarelo, mostrou que tamanho não é documento. Ousou invadir o território dos sabiás e mergulhou no mamão. Estes voltam, afrontados e humilhados.
Esta combinação de cor, vida e cheiros é completamente improvável, no centro da cidade. Dela só tomo conhecimento através da cacofonia urbana. Os sons que vêm de trás não têm nada a ver com o cenário que se descortina à frente. A agitação aumenta à medida que o sol sobe, neste mundo isolado, onde sou apenas um penetra passageiro. O chilrear não consegue se sobrepor ao ruído do trânsito trás-muros.

Sabiás satisfeitos, entram pardais e pombas do mato. Parecem saber repartir o banquete. O cão, semi-adormecido ao sol, observa tudo com apenas um olho. Preguiçoso, deixa o rabo cair, deitado de lado, suspirando. Parece já ter aprendido que perseguir pássaros é uma atividade idiota, sem resultados mastigáveis.

Um imbecil buzina na rua, quebrando mais uma vez a magia deste jardim secreto perdido em meio ao concreto. O sol segue seu curso. E eu seguirei o meu.



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Ovo No. 20



Ovo No. 20

Por Paulo Heuser

A origem do costume de dar ovos de Páscoa perde-se no tempo. Há relatos ancestrais desse costume no oriente e no ocidente. Os primeiros ovos presenteados foram os de galinha e ganso, ou outras aves disponíveis no local. Alguns estudos relatam o culto à divindade anglo-saxã Ostera (Eostre), pelos germânicos da Alsácia e da Renânia, Alta e Palatinado, onde aquela apareceria segurando um ovo e observando um coelho. Ovos e coelhos sempre foram associados à fertilidade, cultuada pelos primitivos nos rituais dos equinócios – no hemisfério norte. Os judeus comemoram o Pessah, entre 15 e 22 do mês de Nissã (março/abril), festejando a saída do Egito.

A igreja católica acabou associando as festividades religiosas da morte e ressurreição de Cristo à efeméride pagã e à judaica. Permaneceu muito vivo, na Europa, o costume de se darem ovos de presente. Do calendário judaico, baseado nas fases da Lua, veio também a data da comemoração da Páscoa. Ocorre no primeiro domingo após a lua cheia que sucede a passagem do equinócio de passagem para a primavera – no hemisfério norte, entre 22 de março e 25 de abril. Daí provém a confusão do estabelecimento da data de outros eventos, como o Carnaval, Quaresma e Pentecostes.

Lembro-me bem da Sexta-Feira da Paixão, quando criança. Em respeito à data, as rádios tocavam apenas músicas clássicas ou sacras, bem como os temas musicais dos grandes épicos bíblicos cinematográficos. Havia silêncio nas ruas, quebrado apenas pelos vendedores de macela, colhida no raiar do dia. Os sinos das igrejas não tocavam. No sábado, grande excitação! O que traria o coelho da Páscoa? Aquele dia não passava nunca. A única distração vinha da cozinha, onde se preparavam os ovos e coelhos de amendoim e massapão.

Chegado o Domingo de Páscoa, após aquele sábado interminável, chegava também a hora da caça aos ovos, logo ao amanhecer. Ovos de galinha pintados, ovos de açúcar decorados, ovos de licor, ovos de amendoim e massapão e os tão esperados ovos de chocolate, embrulhados em papel celofane. Os maiores poderiam conter algum tipo de recheio, descoberto ao sacudi-los. Além dos ovos, os ninhos poderiam conter coelhos ou outras formas feitas de chocolate, como motocicletas e carros.

O costume de se presentear os outros com ovos permaneceu até os dias de hoje. Atribui-se a confecção dos primeiros ovos de chocolate aos confeiteiros franceses do Século XVIII. A globalização chegou também aos ovos. Além de assumirem marcas de chololates em barras, obedecem a uma padronização que chega a ser assustadora. Antigamente colocava-mos os ninhos na balança para verificar quem ganhara mais chocolate. Hoje basta que contabilizem o número e o tamanho dos ovos, também representado através de um número.

Permanece um mistério, no entanto. Quem definiu que os ovos deveriam ser os de No. 20? Foi Ostera?



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