19.4.07

A Máquina de Hércules


A Máquina de Hércules


Por Paulo Heuser

O mundo mudou. Mudaram as empresas, as relações familiares, as relações amorosas e, sobretudo, as relações de trabalho. O que ontem era visto como um funcionário relapso lendo jornal no horário de trabalho, hoje é visto como um colaborador aprimorando sua cultura, para o bem geral da empresa e dos demais colaboradores. Até os organogramas evoluíram e os antigos departamentos de RH se transformaram nos modernos gestores de colaboração. Novos tempos, novos comportamentos e novos rótulos.

Somente Heino não percebeu a mudança, ou melhor, não a quis perceber. Aprendeu a gerenciar a empresa com o pai, que aprendeu com o avô, na terra natal distante. Heino manteve as tradições que forjaram a linhagem de administradores empiristas. Não completamente, pois mandou o Júnior estudar na cidade grande, na faculdade. Júnior estudou administração de empresas, com ênfase em gestão de colaboradores. Não só se graduou, se pós-graduou, também. Chegou a receber convite para fazer o doutorado, mas preferiu voltar para sua cidade, ajudando o pai na gestão da empresa. Júnior voltou transbordando de idéias sobre motivação de equipes e outras técnicas que deixariam Heino de cabelos em pé, se ainda houvesse algum. A bagagem de conhecimentos recém-adquiridos do Júnior foi terraplenada pela ortodoxia positivista de Heino. Se não estava escrito, há muito, não existia.

Quem finalmente venceu Heino não foi a argumentação acadêmica do Júnior. Foi a foto no obituário e a inscrição na lápide. Heino ganhou a primeira posição na galeria dos ex-presidentes da empresa. Junior finalmente assumiu o cargo para o qual se preparou durante anos. Sonhava com profundas mudanças na gestão dos colaboradores, que levaria a empresa a dar um salto de qualidade. Durante anos, os func... colaboradores reivindicaram, mudamente, o café. Mudamente, pois Heino não tolerava reivindicações, a não ser que implicassem maior lucro. A questão não era nem de produtividade, o termo era lucro, mesmo. Receita menos despesa. Com algum lugar para os impostos, é claro. Nada sobrava para o café, na antiga visão ortodoxa de Heino. Júnior, por outro lado, acreditava que func... colaboradores felizes trabalhavam melhor, agregando qualquer coisa ao todo.

Foi numa segunda-feira, pela manhã. Júnior chamou ao escritório aqueles func... colaboradores que eram considerados líderes informais, para uma reunião. Entraram mudos, já que todos conheciam o temperamento de Heino. Júnior era galho da mesma árvore. Ouviram mudos, espantados, enquanto Júnior explicava sua idéia de fornecer café graciosamente aos funcionários. A boa nova correu célere, com Júnior caindo nas boas graças de todos. Principalmente quando eles viram a flamante cafeteira automática industrial. Aquele monstro seria capaz de produzir um sem número de cafés por hora, com leite, sem leite, com chocolate, doce, amargo e, até, café simples, preto. Bastava um apertar de botões e, “xazãm!”, o café recém-colhido-moído-torrado-e-passado fluía ao copo. Espanto tecnológico.

Também numa segunda-feira, chegaram más notícias. O pessoal da controladoria informava perda de lucratividade, provocada pela fantástica máquina de café. Por duas razões até então identificadas. Primeiro, não só os func... colaboradores da empresa estariam usufruindo a máquina. Os números chamavam a atenção. Como poderiam 123 funcionários beber uma média de 1.968 cafés por dia? Logo se descobriu que alguns traziam garrafas térmicas, depois levadas para casa. Uma senhora velhinha foi vista saindo com um imenso tarro de alumínio, para entrega de leite a granel. Havia também o pessoal que vinha de prédios vizinhos. O outro motivo alegado para a queda da produtividade foi a socialização dos func... colaboradores, enquanto tomavam café, eventos que poderiam durar horas.

Heino não pode fazer ouvidos moucos. Mas também não queria retirar conquista tão importante dos func... colaboradores. Emparedaram a fantástica máquina, para limitar o acesso a ela. O pessoal (os func... colaboradores) estranharam, no princípio, mas entenderam a motivação. Aproveitaram, no entanto, para reivindicar um pequeno bar, onde pudessem comprar algo para comer. Júnior não estudara tudo aquilo para cair nessa. Um bar geraria fumaça, cheio de fritura e incômodo, com certeza. Sem mencionar que o problema da socialização ficaria exacerbado. Preferiu contratar uma também fantástica e extraordinária máquina dispensadora de coisas prontas para mastigar, como sacos de salgadinhos sabor vôm... bacon. Não tardou para iniciarem as queixas, pois alguns consideravam os salgadinhos insalubres, continham demais sódio, demais gorduras trans e demais vôm... bacon. Júnior jogou a toalha e entregou a tarefa de contentar a todos à recém-formada comissão de func... colaboradores. Fizeram uma pesquisa de mercado, para identificar o tipo preferido de lanche. O resultado não deixou de ser surpreendente:

23% - Sonhos (aqueles pesadelos fritos);
22% - Coxinhas de galinha;
13% - Bolinhos de chuva;
8% - Pasteis de frango;
7% - Croquete;
6% - Sanduíche de mortadela;
5% - Cueca virada;
4% - Bolo inglês;
3% - Feijão mexido;
2% - Sanduíche de salame;
1% - Torresmo;
6% - Outros, inclusive o pé-de-moleque.

Júnior percebeu logo que dificilmente encontrariam uma máquina que dispensasse qualquer uma dessas coisas. Ficou imaginando uma máquina que dispensasse feijão mexido. Dava nojo só de imaginar. Mas, promessas eram promessas, haveria de cumpri-las. Júnior utilizou uma estratégia aprendida na cidade grande: quando lhe trouxerem um grande problema, jogue-o de volta no colo de quem o trouxe. Imediatamente deu carta branca à comissão de func... colaboradores para que encontrassem uma máquina capaz daquele prodígio.

Já que o fornecedor de café declarou-se incapaz de atender às reivindicações, que outrem atendesse. Entregaram a tarefa à mulher do Arfeio, que já explorava uma concessão de churrasquinho de gato, defronte à empresa. Ela colocaria uma banca, ao lado da máquina de café, e prepararia aquelas iguarias, ao vivo. Se era o que todos queriam, que fosse – declarou Júnior.

Novas más notícias vieram da controladoria. O pessoal (os func... colaboradores) aguardavam muito tempo, enquanto seus lanches eram preparados pela mulher do Arfeio, que sofria de artrite, por isto aposentada. Alguns setores paravam em protesto pelo cheiro de fritura que subia pela coluna de ventilação. A mulher do Arfeio ligou um exaustor à tubulação, pois os seus clientes queixavam-se do cheiro do bar. Alguns func... colaboradores criticavam a qualidade dos alimentos preparados na hora. Um em especial se queixava dos bolinhos ingleses recém-assados. Não secariam toda saliva da boca, segundo ele. Um bolo inglês que se preze deve absorver qualquer umidade do corpo, feito esponja universal. Os sonhos fresquinhos também foram alvo de queixas. Eram sequinhos demais. Faltava aquela gordura amanhecida. A comissão dos func... colaboradores apresentou queixa no sindicato e na delegacia do trabalho. Quando Júnior foi notificado, percebeu que algo drástico devera ser feito. Convocou a comissão de func... colaboradores, o sindicato e a mulher do Arfeio para uma reunião. Nela expôs os problemas originados no bar e suas conseqüências. Acabaram concordando com as premissas de que os alimentos deveriam chegar prontos e serem vendidos rapidamente. Nada de fedor, nada de fila. Já tentando se livrar do problemas, Júnior comunicou que a empresa somente aceitaria uma máquina, como no caso do café.

Arfeio e sua mulher estavam desolados, pois perderiam o ponto. E já haviam perdido o ponto do churrasquinho, defronte. Foi ele quem teve a idéia. Se quiserem uma máquina, a terão! Limpou as migalhas de pão sobre a mesa, estendeu o papel de embrulho do pão, e pôs-se a projetar a solução do problema. Virou a noite, mas amanheceu com o projeto feito. Bateu cedinho na casa do cunhado, mecânico de solda. Deixou o projeto e foi trabalhar.

O cunhado acordou cedo, vestiu a melhor – e única – camiseta regata manchada, colocou a melhor bagana de cigarro no canto da boca e partiu à caça. Encontrou uma enorme geladeira velha, no depósito de sucata. Pegou as lâmpadas coloridas na caixa de coisas de Natal. Os botões, de um liquidificador quebrado. E lá se foi, após conseguir também uns pedaços de fios. Não foi difícil retirar a buchada da geladeira e abrir diversos sulcos e orifícios no fundo. Pintou a obra prima de preto e instalou as lâmpadas do lado de dentro, os botões do lado de fora. A porta serviria exatamente para entrar e sair da máquina. Instalou ainda prateleiras no fundo, para estocar as mercadorias. Um cardápio, feito no micro do escritório, foi afixado do lado de fora, junto aos botões. Curiosamente, era uma máquina que aceitava qualquer tipo de cédula, moeda ou tíquete, inclusive fichas de vale-transporte. Correu um boato sobre a máquina aceitar até caderno, fiado. O cunhado conseguiu um carreto barato para levar sua criação até o bar. A coisa era bem simples. Munida de um bom estoque, a mulher do Arfeio entraria no móvel da ex-geladeira, colocada (a geladeira!) com a traseira voltada aos clientes, pela abertura da porta. O cliente colocaria o dinheiro, ou outra forma de pagamento, pelo sulco e apertaria o botão correspondente à iguaria desejada, que acenderia uma luz no interior da máquina, indicando à mulher do Arfeio qual era o pedido. Esta passaria o pedido pela abertura no fundo da geladeira e passaria também o eventual troco, ou vale, no caso de pagamentos nessa espécie. Havia até uma caneleta para despejar o feijão mexido. Uma máquina dotada de coração humano.

Arfeio cometeu um erro de projeto. Subestimou as dimensões da mulher, que não coube dentro do móvel da geladeira. O cunhado lembrou-se do Hércules, primo desempregado. Hércules era anão e serviria como uma luva, considerado o espaço disponível. Após um breve treinamento na operação do equipamento, Hércules decorava a tabela de conversão de cores de luzes para a seleção de alimentos. Cor vermelha, bolo inglês, cor azul, pastel de galinha, luz verde, feijão mexido.

Dia da inauguração! Após os discursos do Júnior, dos membros da comissão de func... colaboradores e do presidente do sindicato, cortaram a fita inaugural, aplaudidos pelos 92 func... colaboradores que não faziam parte da comissão de func... colaboradores. Foram 38 discursos.

Hércules estava ansioso. E faminto. Não resistiu àquela panela de feijão mexido frio, um dos seus pratos preferidos. Saciou a fome, enquanto os discursos se sucediam, do lado de fora. Aí pelo 24º discurso, o feijão começou a fazer efeito. No Hércules, que sentia um desconforto intestinal crescente. O suor começou a escorrer pela fronte, devido ao calor interno, da máquina, e devido àquela pressão interna, do próprio. Sentindo que os discursos iriam varar o resto da manhã, Hércules resolveu dar uma escapadela até o toalete. Havia tempo, com certeza. Foi então que se escancarou o segundo erro de projeto do Arfeio. Esquecera-se de colocar uma maçaneta do lado de dentro. Erro até natural, já que ninguém abriria uma geladeira por dentro. E era uma geladeira do tempo em que havia realmente uma tranca. Após um momento de pânico inicial, Hércules procurou acalmar-se, utilizando um exercício de respiração que aprendera nas aulas de pré-parto da mulher. Teria de agüentar até que a mulher do Arfeio abrisse a porta para repor estoque.

O último discurso, finalmente! Júnior foi convidado a cortar a fita e inaugurar a máquina. Hércules deu graças a Deus, já não sabia mais o que fazer. Rezava de olhos fechados. Assim, não viu a luz vermelha acender na sua frente. Nem poderia, mesmo se estivesse de olhos abertos. Esqueceu-se de avisar que era daltônico. Arfeio pensou que Hércules dormira, e deu um tapa na máquina, acrescentando: - É nova, ainda não amaciou... Hércules levou um susto, soltando a guarda e algo mais. A pressão intera superou o limite da válvula de segurança. Ocorreu uma súbita e incontrolável expansão de gases, contida no interior da máquina, num primeiro momento. Júnior pressionou novamente o botão correspondente ao bolo inglês. Hércules percebeu a luz verde acendendo. Recolheu a nota de R$ 50,00, deu o troco em vales-transporte, tíquetes e algumas moedas, prontamente mandando uma carga generosa de feijão mexido. Era inauguração, afinal. Júnior ficou com cara de bobo, com a mão vazia defronte à saída de pastéis, enquanto o feijão mexido caía no seu sapato e uma cascata de tíquetes e vales caía do sulco. E ele jurou que ouvira a máquina reclamar – do idiota que pagava com uma nota de 50, no início da manhã.

O próprio Hércules não agüentava mais o peculiar odor do subproduto da digestão do feijão mexido. Sem saída, teve uma idéia que se mostrou muito luminosa, muito mesmo. Riscou um fósforo, receita infalível para se livrar daquele tipo de odor.

Aquela cena aparecendo na chamada do noticiário da tv não era a de um mercado de Bagdá, apesar da fumaça, dos destroços e dos feridos sendo atendidos. A cena que mais chamava a atenção era a de um anão atordoado saindo de dentro de uns destroços tombados, que pareciam uma geladeira calcinada, enquanto a fumaça saía das suas vestes esfarrapadas. Escorria uma massa preta, do teto e das paredes.

Júnior lembrou-se muito do pai, naquele dia. E passou a dar mais valor aos ensinamentos passados de geração em geração.



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