10.4.07

Gregocídio e o Leão


Gregocídio e o Leão

Por Paulo Heuser


Gregocídio anda preocupado. Suas noites têm sido insones. Não é só o frio, recém-chegado, o que o incomoda. Nem os outros, que eventualmente compartilham sua marquise. Ofende-se quando o chamam de morador de rua. É de marquise, de marquise! Defronte o 393. O barulho dos carros passando ao lado também não o incomoda. É outra coisa, na verdade.

Chegou ao 393 faz tempo. Assistiu à decadência do prédio. Chegou a temer que aquela marquise caísse durante alguma noite chuvosa. Ainda bem que é uma marquise de esquina. Quando chove de um lado, muda-se para o outro. Contudo, diz morar no 393, para não dar confusão. É um homem que tem residência fixa – sob a marquise. Alguns dão como endereço a rua tal, número tal, fundos. Gregocídio dá a rua tal, número tal, marquise. Quando dobra a esquina, refugiando-se da chuva e do vento, deixa um aviso: “Favor deixar a correspondência após a esquina. A Direção”. O tom mais formal é importante.

Quando lhe perguntam sobre a renda, Gregocídio a tem na ponta da língua, presumidos R$ 15.949,00 anuais, recebidos de pessoas físicas, referentes à extorsão diária de R$ 37,00, em média, das segundas aos sábados, na parada da lotação, acrescidos dos R$ 87,00 que consegue extorquir aos domingos, em Ipanema, como flanelinha. Há ainda os rendimentos pagos por pessoa jurídica, ainda não contabilizados, como os dois sanduíches que o Seu Antenor da Padaria lhe alcança, por dia. Dá para estimar, por baixo, mais R$ 688,60. De segunda a sábado, também. Aos domingos ganha pizza. Mais R$ 7,00 X 52 = 364,00 anuais. Somando tudo, chega-se aos R$ 17.001,60, declarados orgulhosamente pelo Gregocídio, na sua declaração anual de ajuste do Imposto de Renda. Já fez Carnê Leão, no passado. Hoje faz apenas a declaração anual.

Gregocídio não se descuida da declaração de dívidas e ônus. Deve R$ 3,86 ao Tonhão, desaparecido após um arrastão na madrugada. Contam que ele foi junto, de arrasto. Como não voltou, a dívida permanece. Dívida gerada por um momento de caixa zero e pulgas mil. Como o sujeito da farmácia não lhe deu crédito, teve de apelar ao Tonhão. Só não pagará juros, já que o credor sumiu. Mas continuará declarando, mesmo passados sete anos.

O que realmente o incomoda, é a declaração de bens. Como irá declarar o carro? Aquele lindo carro prateado? Teme não ter como justificar a variação patrimonial, caso o declare. A manta de lã uruguaia e a toalha de mesa de plástico não causarão problemas. Mas, e o carro? É ele que tira o sono do Gregocídio. Gregório, seu pai, e Genocídia, sua mãe, sempre fizeram questão de manter-se perfeitamente em dia, com o Leão. Passaram esse ensinamento ao Gregocídio e a Genogória, sua única irmã, já falecida.

O carro não é exatamente seu, na verdade. Tornou-se o fiel depositário, depois que o supermercado faliu. Não teve como devolvê-lo.


E-mail: prheuser@gmail.com

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