28.3.07

Nau do Desespero



Nau do Desespero

Por Paulo Heuser

Otávio mora no bairro, em meio à floresta de mamonas do terreno que seria baldio, não fosse a presença dele. Há fortes indícios de que Otávio será despejado, num futuro não muito distante. Para onde levará sua casa de caixa, com a vistosa indicação “Este lado para cima”? Sua floresta será transformada em biodiesel, o terreno em edifício. Mas, Otávio não se preocupa com o futuro. Vive o presente, apenas o agora. Se agora está com fome, come, se houver algo para comer. Se agora está com sono, dorme. Se agora não está nem com fome, nem com sono, fica sentado em frente ao terreno, olhando para o nada urbano, alheio aos sons e movimentos na avenida. Quando o amanhã virar hoje, agora, então Otávio poderá se preocupar. Não muito, porque logo o agora será antes, deixando de ter importância, portanto. Ele não sabe nem se o futuro realmente chegará. Se tiver sorte, o futuro será postergado indefinidamente, apenas tendendo ao despejo. Ou morrerá antes dele.

Como todo mendigo de bairro, Otávio tem história. E toda história de mendigo está inserida no folclore do bairro. Já ouvi histórias sobre um grande maestro de orquestra sinfônica que enlouqueceu durante um Bolero de Ravel que não teve fim. Outras, sobre um renomado advogado criminalista que defendeu Maluf. Um membro do conselho de ética da Câmara Federal, quem sabe? Um professor estadual que fitou o contracheque durante mais de um minuto? Sei lá, são histórias muito vagas. Há, no entanto, um porteiro de um prédio próximo que conta uma história mais crível, sobre o que aconteceu com Otávio.

Conta o porteiro, Seu Mário, que Otávio foi piloto de avião, em viagens internacionais. Pronto, pensei eu, lá vem outra história maluca. Seu Mário continuou, contando que Otávio fazia a linha São Paulo – Nova Iorque. Foi preso. Sim, preso por agentes do FBI vestindo coletes pretos com letras amarelas. Foi algemado e colocado de joelhos, enquanto uma agente usando sapatos cinza de salto extremamente pontudo lia os seus direitos, recém revogados pelos atos institucionais pós-onze de setembro. Foi um dos primeiros vôos a pousar em NY após o estado de sítio. Otávio comera aquela salada de pepino cru e pimentão verde, durante o vôo. Aquele arroto, que passaria despercebido em outras circunstâncias, foi interpretado, na imigração, como um ato hostil de um estrangeiro contra o mortalmente ferido defensor da liberdade – os EUA. Otávio foi enviado à base de Guantânamo, onde passou quatro meses, vestido de macacão laranja, no resort de praia na ilha de Fidel. Bem, quase dele. Otávio recebeu um kit, que incluía um tapete, para fazer suas orações. De nada adiantaram seus protestos, alegando que não rezava. Acabou apenas recebendo um macacão laranja acrílico, que identificava os fanáticos religiosos ateus, da pior espécie.

A agente especial Judy Sue “Hellgirl” Patterson foi promovida à condição de agente muito especial – VSA – Very Special Agent, tendo direito à mesa própria, cabide e xícara com emblema, no escritório. Alguém, um agente não-especial, acreditou finalmente na história de Otávio, que acabou solto e expulso dos EUA, por via das dúvidas. Afinal, fora preso por uma aspirante a VSA. Seu visto foi confiscado. A companhia aérea o demitiu, por via das dúvidas. Se ficara preso por quatro meses, com um tapete, havia motivo, seja qual fosse. Acabou conseguindo emprego em outra companhia, que o colocou na linha para Londres. Um pouco antes de falir. Preso novamente ao chão, Otávio acabou aceitando o emprego de piloto de vôos nacionais, partindo de São Paulo. Exatamente quando começou o Grande Apagão, que ninguém mais lembra quando começou. Começou, ninguém sabe como, nem por quê. Otávio suportou a situação por exatos oito meses. Foi quando mordeu a orelha de um passageiro que reclamava do atraso de dois dias do seu vôo.

Novamente preso ao chão, Otávio decidiu permanecer nele. Passou pelos empregos de relações públicas no aeroporto e controlador de vôo. Ali começou o tique no olho e a tremedeira no canto esquerdo dos lábios. Reconhecido na rua, Otávio foi perseguido pela Avenida Rubem Berta, por uma turba de passageiros enfurecida, que gritava: - pega, pega, é um controlador! Demitido novamente, Otávio resolveu trabalhar por conta. E risco. Investiu suas economias num ônibus de turismo. Já que as coisas lá em cima não andavam, que andassem aqui em baixo. Andavam, realmente, mas de forma estranha. Seu primeiro contrato foi firmado com aquela simpática velhinha. Que liderava a turba que foi assaltar a fábrica de picolés transgênicos de eucalipto. Dona Clotilde, em especial, foi a que mais se destacou. Entoava um cântico, em língua estrangeira, digno de ser entoado por Átila, o “Flagelo de Deus”, durante os ataques. Seus olhos de catarata brilhavam como gemas ao fogo. Não sobrou picolé sobre picolé. O último, o deputado levou. Otávio conseguiu fugir, durante a confusão. Foi processado pela fábrica, por levar os invasores, pelos invasores, por fugir da cena do crime, deixando 43 velhinhas desamparadas e abandonadas. Após três meses conseguiu reaver seu ônibus, bem a tempo de alugá-lo para aquela excursão que foi à festa de aniversário do tal de Tonico 9mm, no Rio. Nome curioso aquele - pensou Otávio, na época. As iniciais mm seriam de Mariano Macedo, Mesquita Matoso, ou Meireles Mendonça? Não, tarde demais ele descobriu que eram milímetros mesmo. Descobriu, no momento em que a gangue rival, do Pavoroso da Cruz, atacou o ônibus, na Brasil. Otávio escapou com vida, o ônibus restou queimado.

Falido, estressado e chamuscado, Otávio aceitou o convite do primo para morar no sul e dirigir um táxi. Otávio passou de comandante de Boeing 747 a piloto de Fiat 147, em questão de meses. Mas aceitou a oportunidade, de bom grado. Disseram-lhe que deveria andar pelas avenidas onde a noite fervilhava, pois lá não faltaria trabalho. O sol estava nascendo, e o bolso do Otávio estava recheado, quando Shirley Cachorrão tomou seu táxi. Quando Otávio viu aquele(a) moreno(a) de quase dois metros de altura, saia plissada e pestanas postiças, entrar no carro, temeu pela féria e pela vida. Não foi dali que veio o perigo. O(a) moço(a) era muito educado(a). Feito uma moça(o). Mandou tocar em direção ao gasômetro, pois estava encerrando a noite. O(a) moço(a) falava sobre o novo namorado, quando viraram a última curva antes do destino. E este não quis que Otávio visse o racha entre carroças que estava ocorrendo ali. O choque do táxi com três delas foi inevitável. Preso às ferragens, Otávio e Shirley Cachorrão gritavam por socorro. Que veio na forma de saque. Terminada a pilhagem de carteiras, celulares, relógios, óculos e anéis, conseguiram arrancar uma coroa de ouro do dente da Cachorrão. Vão-se os dentes, ficam os dedos – pensou ele(a). Quem os libertou, finalmente, foi a turma do desmanche, que veio para pilhar o monte de sucata que o 147 representava. Quando roubaram o assento, Cachorrão liberou-se, ajudando Otávio a sair. A última carroça já ia longe, carregando os últimos pedaços do 147, quando Cachorrão também se foi, banguela e apenas de calcinhas, pois levaram a saia plissada. Otávio ficou lá, sentado junto ao meio-fio, segurando a bolota da alavanca de câmbio. Foi visto cruzando a cidade, sempre segurando aquela bolota, que hoje enfeita a entrada da casa de caixa, onde se lê “Este lado para cima”. Enlouquecido, adotou a rua como casa.

E eu perco tempo ouvindo essas incríveis e fantasiosas histórias sobre mendigos malucos de bairro. Por que não são apenas os loucos que sabem qual é o lado que deve ficar para cima?



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