24.4.07

Vocação Neurológica


Vocação Neurológica

Por Paulo Heuser


Armagedônio Ímpio viveu uma infância normal, excluídos alguns episódios um pouco estranhos. Coisa pouca. Nada que pudesse assustar àqueles que já o conheciam bem. Dissecava ratos vivos, movido pela curiosidade científica. Coisas da infância, diziam os pais. Não era muito comunicativo, em alguns períodos, excessivamente, em outros. Coisas da infância, diziam os pais. Os colegas não gostavam muito da maneira como ele jogava futebol, tanto que deixaram de convidá-lo. Tudo porque ele costumava sair correndo com a bola embaixo do braço. A devolvia. Furada, mas sempre devolvia. Coisas da infância, diziam os pais.

Quem reclamou primeiro foi a bibliotecária da escola. Armagedônio adorava livros. Pedia os clássicos bíblicos e os devorava, literalmente. Colocava uma régua, ao comprido, sobre as páginas, e rasgava tira por tira, comendo-as a seguir. Restavam apenas capa e lombada. Impressionada com a cena de blibliofagia explícita, Dona Marta comunicou o fato à direção da escola, que, por sua vez, chamou os pais. Coisas da infância, diziam os pais, que se comprometeram a repor a seção de livros ocos. Os colegas afastaram-se mais, quando Armagedônio começou a desfilar pelas ruas levando Canny pela coleira. Exibia orgulhoso as piruetas que o cão realizava. O ponto alto do espetáculo ocorria quando Canny subia pelas paredes. Nada extraordinário, considerando um animal imaginário. Coisas da infância, diziam os pais. Na época em que Armagedônio completou 18 anos.

Hora de servir à Pátria. Inexplicavelmente, Armagedônio foi recusado na seleção. O médico ficou muito impressionado com o traje temático apresentado pelo rapaz. Montara uma reluzente armadura medieval, a partir de sucata de dutos metálicos. Coisas da infância, diziam os pais. A coisa ofuscava, ao sol. Assim, comprovou-se a criatividade do rapaz. Haveria de seguir uma carreira voltada à criação.

A psicóloga que tentou determinar a vocação do Armagedônio ficou muito preocupada. Não pelo fato de ele ter chupado toda a tinta das quatro canetas esferográficas depositadas sobre a mesa. A gota d’água foi a descoberta feita por Armagedônio. Descobriu que o tapete branco de pele, da sala da psicóloga, era na realidade a terra prometida para sua coleção de pulgas, cuidadosamente trazidas numa caixa de sapatos. Coisas da infância, diziam os pais, mas concordaram em levá-lo ao psiquiatra. Após um sem número de antigos e modernos exames o médico concluiu que Armagedônio apresentava algum defeito nos genes ligados à esquizofrenia, coisas como NRG1 e erB64. Ou seja, não batia bem. Tudo muito técnico. Coisas da infância, diziam os pais. Com excesso de oligodendrócitos e falta de mielina, Armagedônio tentava encontrar algum rumo na vida. Passou por uma fase de rompantes verborrágicos espontâneos, quando discursava aleatoriamente, em praça pública, sobre o que lia nos jornais, antes de comê-los. Coisas da infância, diziam os pais.

Seus discursos não passaram despercebidos. Foram ouvidos. E lhe deram um futuro. Elegeu-se com mais de um milhão de votos.



E-mail: prheuser@gmail.com

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1 Comments:

At sexta-feira, 25 maio, 2007, Blogger Unknown said...

O louco é aventurero e cierttamente livre... mas a sua vez não sempre está bem visto...

 

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