28.6.07

O que é, o que é?


O que é, o que é?

Por Paulo Heuser

Para orgulho de Godoberto, o pai, Bertogodo, o filho, adquiriu o saudável hábito de ler avidamente o jornal. Mal volta da escola, joga suas tralhas na cama e corre para a sala. Sentado ao lado do pai, devora o jornal, cuidadosamente, não deixa escapar uma linha que seja. Lê e pergunta ao pai sobre aquilo que não entende perfeitamente:

- Pai, o que é colupção?

- Corrupção, filho?

- Isso, cor...rupção...

- Bem, meu filho, a corrupção existe quando alguém paga para que outro faça algo ilegal, ou errado, para tirar proveito. Entendeu?

- Acho que sim. É como quando você deu dinheiro ao garçom do restaurante para furar a fila no Dia das Mães e conseguimos uma mesa antes daqueles que chegaram mais cedo. Lembra?

- Não, meu filho! Aquilo foi gorjeta!

- Mas, você deu gorjeta depois, também...

- Parcelei a gorjeta em dois pagamentos, na verdade. Assim o garçom deu desconto. Melhor para ele e melhor para nós. Melhor para todo mundo.

- Hummm... Não entendi. Não é ruim para os que chegaram antes?

- Ah, meu filho. Eles esperaram mais porque não deram a gorjeta antes, apenas depois do almoço, quando já era tarde. Se quisessem sentar-se à mesa antes, que pagassem antes. Lembre-se do provérbio que sempre lhe ensino: “Deus ajuda quem cedo madruga”.

- Mas, nós chegamos depois e sentamos antes...

Sete longos segundos, decorridos entre uma frase e outra.

- Deus não se referia a chegar antes, e sim a pagar a gorjeta antes!
- Sei, só tem uma coisinha que ainda não entendi: se todo mundo der gorjeta antes, quem vai sentar primeiro?

- Ora, filho, quem der a maior gorjeta antecipada. É justo, não é? Entendeu agora?

- Ãhã...

- Que bom, meu filho. Avise-me, se surgir alguma nova dúvida. Estou aqui para orientá-lo na vida. Se os pais não educarem os filhos, imagine só como ficará o mundo. Será um deus-me-acuda!

Bertinho vira a página e concentra-se em nova matéria. Irrequieto, balança as pernas e sacode o corpo para frente e para trás. As páginas passam, enquanto as dúvidas crescem. Ele torna-se um saco de dúvidas prestes a explodir, mas se mantém quieto. Não voltará à mesma questão, pois parecerá bobo perante o pai.

Eis que Togoberdo, o avô, adentra sala. Deixa o corpo desabar na cadeira de balanço, que geme na mesma freqüência das oscilações do Bertinho, e fala:

- Você aprendeu algo de novo hoje, meu netinho?

- Sim, vovô! Descobri que deus ajuda quem cedo paga, e que o pessoal de uma construtora almoçou no mesmo restaurante onde almoçamos no Dia das Mães!

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26.6.07

Traumatismos

Traumatismos

Por Paulo Heuser


Gessilever estava encostado, não na parede, nem no poste. Estava “encostado” no INSS, havia quase dois anos. Fazia bico como porteiro de lupanar (casa de costumes), para complementar a renda. Renda miserável, diga-se de passagem. Podia estar inservível para o INSS, mas para um trabalho de homem, tudo bem. Com a mulher, Crimxise, também encostada, a situação ficara crítica. Como uma coisa leva à outra, Gessilever conseguiu uma colocação para Crimxise, no lupanar. Trinta anos mais nova do que ele e com um sexto da massa volumétrica dele, ela chamava à atenção, principalmente depois do banho-de-brechó. Ela tornou-se a nova sensação da Boyte Calypso, para orgulho do Gessilever.

Crimxise fora “encostada” porque conseguiu convencer o perito da sua terrível dor lombar. Pudera, que lombo! Ela passou a fazer fisioterapia ocupacional, dançando e rebolando sobre o “queijinho”, para o deleite dos clientes da Calypso. Trabalhando lá, Gessilever podia ficar de olho nela, pois nesse mundo decadente todo cuidado era pouco. O que ela fazia lá era meramente profissional. Ai de quem tentasse chegar perto dela depois do final do expediente, lá pelas sete da matina.

Já um homem forte, como ele, necessitava de uma doença mais alta, na cervical. Uma dor medonha, no cangote, atribuída à má postura, comum em quem mede dois metros de altura. Foi um colega de batente quem lhe deu a dica. Como todo mundo tem problemas lá, depois dos 20 e poucos, fica mais fácil dar um cambão no perito. Ainda mais quando se beira os 50. Artrose seria o nome da pereba.

Assim, a vida ia sendo levada na manha. Juntando os “encostos”, o salário dele e as “comissões” dela, não havia motivo para se queixarem muito da vida. Faziam o que gostavam, ele quebrando ossos dos fregueses indesejáveis da Calypso e ela trabalhando na área de serviços de entretenimento da casa. Galgara o posto mais alto, no queijinho mais alto.

Realmente, não havia motivos para se queixarem muito da vida. Até que chegaram aquelas cartas do INSS, convocando-os para nova perícia. Tudo novamente, após apenas dois anos! O que estariam pensando aqueles burocratas? Não teriam mais nada a fazer, do que incomodar seus clientes? E não deu outra. O perito não se impressionou com o lombo da Crimxise e a considerou apta para retornar ao trabalho na economia mais formal. Tão formal que teria de voltar a trabalhar vestida. Se havia algo que não se usava na Calypso, esse algo era o uniforme de batente. Crimxise até tentou inovar, atando uma fita vermelha no pescoço. Só que a clientela reagiu, gritando “tira, tira, ...”.

Chegou a vez do Gessilever, na perícia. Entrou de cara amarrada na sala onde se decidiria seu futuro, por pelo menos dois anos. Relatou que não conseguia dormir, pois a dor era muita. Não encontrava posição. Seus dias seriam um inferno, obrigado pela dor a ficar imóvel, em casa. Desgraçadamente, o médico perito trouxe ótimas notícias, para o INSS. Gessilever estava apto a retornar ao trabalho. O descomunal porteiro da Calypso gelou. A renda da família ficaria seriamente abalada. Crimxise teria de fazer hora extra, e, o que é pior, fora do horário do batente. Então seria amor! Hora de aplicar o plano B:

- Tem o traumatismo ucraniano, doutor...

- Não vejo nada disso nas radiografias, o senhor não apresenta traumatismo craniano!

- Eu não, doutor, mas o senhor apresentará, quando eu terminar...


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25.6.07

Copos-de-leite

Copos-de-leite

Por Paulo Heuser


Hoje um sujeito cruzou a praça, carregando um ramalhete de copos-de-leite. Sei, são flores de defunto, pelo menos eram, no meu tempo. Qual é o meu tempo? É o meu, ora. Einstein provou, matematicamente, que o meu tempo é o meu, só meu. Do seu, nada sei, principalmente se você estiver em movimento. Coisas da Relatividade.

O sujeito caminhava de modo estranho, carregando aquele ramalhete de uma dúzia de copos-de-leite. Doze, não um, nem dois. Doze. Coisa de floricultura, portanto, nem que fosse floricultura de defunto. Ele pendia para o lado direito, segurando o ramalhete com a mão esquerda. Mais um sinal? Sua expressão era o retrato da dor sem moldura. Dor, muita dor. Não passou despercebido, abrindo alas no meio da multidão incógnita que varava a avenida. Os felizes, ou quase, abriam alas para a dor.

Estaria ele indo ao enterro? Enterro de quem? Enterro na rua do rio? Havia algo de dissonante naquele quadro, nem que fosse o som. Mas, ele seguia uma trilha invisível, na direção da desgraça. Rosto sofrido, andar arquejado, copos-de-leite, tudo remetia à desgraça. O que teria sucedido? Algum parente se fora? Seria o féretro unitário? O féretro é o carrinho do caixão, na verdade, mas gostamos de chamar o pessoal de féretro. O féretro sairá da capela... Quem já perdeu alguém, sabe. Reparou como havia copos-de-leite? Se erradicássemos a flor, vidas seriam poupadas? Seria uma relação de causa e efeito ou de efeito e causa?

Ele seguia, abrindo caminho na multidão dos sem-flores, pessoas comuns. Até as moças, que sempre admiram os homens portando ramalhetes, quedaram-se mudas. Quem seria o desgraçado infeliz? Um marido que perdera a amada, após 30 anos de felicidade? Como sobreviveria à disputa pela felicidade? Não seria com aquelas flores, com certeza. Cruzou a rua, pela faixa de pedestre. Todos pararam, até mesmo os táxis e os motoboys. Quem seria ele? Por que sofreria tanto? Nos passos tortos ele avançava, com aqueles copos-de-leite pendentes, no tosco ramalhete. Seria um parente? O pai? O filho? A mulher? Ninguém sabia, na verdade. Passaram apenas a seguí-lo. Com seu ramalhete de copos-de-leite. Pé certo, pé torto, ele avançava na direção de lugar nenhum, inexoravelmente, arrastando aquela multidão atrás de si. Alheio ao involuntário arrastão, segurava firme o ramalhete das flores de defunto, mesmo sem saber, conscientemente, quem seria o defunto. Mas, seguia, apesar da deficiência.

Iria ao enterro da democracia, vilipendiada pelos rapinadores da liberdade? Seria o extremo ato de protesto de um cidadão injuriado? Sem resposta, ele seguia, cruzando ruas e avenidas, arrastando um cordel de anônimas personalidades. Parecia absorto nos mais profundos pensamentos, quando alguém, inconformado, lhe perguntou sobre a razão de portar tão singelo ramalhete. Surpreendido, em meio a devaneios, apressou-se em responder:

- Sei lá, achei no lixo e gostei. Levo para a patroa. Um agradinho, de quando em vez, não faz mal...
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22.6.07

Mataram o Karlsson

Mataram o Karlsson

Por Paulo Heuser

Todos necessitamos de um porto seguro (sem Passarela do Álcool). Um lugar onde podemos fundear nosso barco da vida. Os primeiros portos seguros da vida são a casa, a cama e a família. Para os menores, o travesseiro ou aquela fralda especial. Quando dormem fora, levam-nos junto, pois os sons e a imagem do outro local são estranhos. O travesseiro é o elo de ligação com a casa. Na medida em que crescemos, vamos necessitando menos do porto seguro físico, dando mais importância ao porto seguro sentimental: a casa da namorada. Lá tudo é maravilhoso, menos o sogro, evidentemente. Ele crê ser o dono da casa. Futuros cunhados também são potencialmente estranhos.

Chega o momento no qual deixamos nosso tão saudoso porto seguro. Vida nova, nova casa. Levamos algum objeto que nos recorde da antiga, na qual crescemos. Substitui a fralda e o travesseiro. Quando isso não ocorre, pode valer a pena investigar as causas. Não é normal levar a fralda à casa da namorada. O sogro estranha. Muito. Em alguns momentos da vida nos esquecemos do passado, lançados no turbilhão da nova vida. Tudo é novo, até o porto seguro se vai. Até os sogros se vão. Eis o momento em que os portos seguros institucionais se tornam importantes. Aí ficamos chatos. Só bebemos determinada marca de qualquer coisa, viramos as fatias de torta sempre no mesmo sentido, comemos primeiro a parte de fora do sonho-de-valsa, lemos o jornal de trás para diante e assim por diante. Maníacos, nos mantemos seguros, ligados a qualquer coisa. Esqueça a fralda, no entanto. Mesmo sem sogro, estranham.

Meu penúltimo bastião institucional era o Karlsson. Coitado, morreu. Soube que andava moribundo, faz algum tempo. Convivi com ele por tantos anos, sem saber de nada. Soube que era finlandês. Pois o Karlsson inventou um método de contagem de impulsos telefônicos que em breve deixará de ser utilizado. Quem o matou diz que a tarifação dos telefonemas com medição em minutos é muito melhor, mais transparente. Não concordo. Levei décadas para entender como funciona o método de Karlsson Acrescido, ou Multimedição, e, agora que entendi, querem tirá-lo de mim. Coisa bonita, estatística, com sabor de jogo de azar. Há uma probabilidade de se pagar um valor qualquer. Qual é a graça de se saber exatamente quanto se pagará por uma ligação de tempo determinado? Onde ficará o diferencial do meu saber? Nós, que aprendemos (e entendemos) o método, seremos míseros mortais.

Nem bem resignado pela perda dos impulsos, recebo a terrível notícia da iminência da nova reforma ortográfica. Onde irão parar os tremas? Tremo só de pensar. Que sabor terão as lingüiças? Linguiças sem trema terão gosto de papelão, gosto de globalização. Que valor terá o cinquenta? Se o vôo - com acento circunflexo - causa enjôo, imagine como será o voo com enjoo. Uma sequência de horrores para os que leem, completamente fora de frequência. Ideias sem acentos, ao retirá-los dos ditongos abertos das proparoxítonas, essas felizes, por mantê-los. Para que servirá um para-choque? Quem pára os choques é pára-choque!

Tenho medo. No espaço de menos de um ano ficarei sem Karlsson e sem tremas. Terei de substituí-los por outra coisa, encontrar um novo porto seguro. Algo pétreo, perene, solidamente imutável. Mas, o quê? Rolos de papel higiênico de 30 metros?
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21.6.07

O seqüestro da Lurdinha



O seqüestro da Lurdinha

Por Paulo Heuser


Trimmm... trimmm... trimmm...

- Alô!

- Me assaltaram, Pai! – gemido longo.

- Alô!

- Me pegaram, Pai! – novo gemido longo.

- Alô, Lurdinha? Onde você está?

Bip... bip... bip...

Trim... trim... trim...

- Olha aqui meu, noix tamo aqui com a Lurdinha! Se não quizé qui ela morrha, fica experto!

- Vocês estão com a Lurdinha? Por quê???

- Ó otário, ixto daqui é um xequestro, qué qui ela morrha? Não enrola, otário, ninguém é babaca aqui!

- Pelo amor de Deus, não! O que vocês querem?

- Noix queremo xem mil, agora, otário!

- Mas eu não tenho tudo isso, deixe-me ligar para o banco ...

- Se ligá pra alguém, ela morrhe, otário! Axa qui noix tamo aqui pra bricá com otário? Se desligá, ela danxa. Vai danxá com us hôme aqui, com cada um!

- Mas, ....

- Cala a boca otário, quantu qui tem aí na conta? Não menti, qui ela danxa com os hôme!

- Tenho por volta de 70 mil reais...

- Tá brincando com noix, otário? Qué qui xua filha morrha?

- Não, pode acreditar, eu não brincaria com a vida da Lurdinha...

- Tão bom, otário, hoji noix faiz dixconto, eu vô passá o número da conta pra voxê depositá a grana. Mas, se desligá, Lurdinha danxa, com todu noix!

- Calma, calma, vou depositar pelo home banking...

- Sai déxa cara, qué mi enrolá?

- Pelo amor de Deus, eu já disse que nunca brincaria com a vida da Lurdinha. Calma, por favor!

- Calma nada, otário, qué qui ela morrha? Depoix de danxá com tudo noix? Seix sarado? Se desligá ela danxa! Si liga aí, otário!

- Não fique nervoso, já estou na página do banco. Qual é o número da conta?

- Olha aí, otário, é banco 1987, conta 909345 traxinho 8! Se a grana não entrá em doix minuto, Lurdinha danxa, danxa feio com os hôme daqui! Não brinca, não, otário!

- Certo, calma, eu só preciso saber mais uma coisa, para depositar o dinheiro...

- Qual é, otário, tá brincando com a vida da Lurdinha? Qué qui ela morrha?

- Não, eu só preciso saber quem é essa tal de Lurdinha...
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Os Navegadores


Os Navegadores

Por Paulo Heuser


A tecnologia desenvolvida para os carros de competição acaba sendo estendida aos carros de passeio. Após as últimas chuvas, isso ficou patente. Surgiram milhares de novos buracos no asfalto. Há buracos para qualquer gosto, redondos, quadrados, voçorocas, trincheiras e tudo mais onde um pneu possa entrar. O borracheiro já está implantando o caderno, aceitando o pagamento mensal. Os buracos podem se apresentar secos ou molhados. Dos molhados sai água, em abundância, o que dificulta sua localização.

Eis que a tecnologia vem no auxílio aos motoristas. Os novos modelos de carros terão, como opcional, o radar e o sonar, equipamentos que permitirão a localização e a determinação da profundidade dos buracos, secos e molhados. Virão como complementos do GPS – sistema de navegação por satélite -, que é capaz de guiar o motorista até o destino. Só não sabe onde estão os novos buracos. Os sistemas de GPS costumam ter guias de voz, disponíveis em diversas línguas, menos em português. Em inglês, vai bem. Não recomendo o alemão, especialmente para quem não o conhece. Quando finalmente ele terminar de falar para tomar a terceira saída à esquerda, na rotunda, a cidade já estará longe. Aliás, as rotatórias podem ser bem complicadas. Daí a importância do navegador, figura copiada dos ralis, responsável pela tradução dos sinais gráficos e ordens faladas em comandos ao motorista. Navegadores multilingües podem ser muito úteis. Especialmente para ler placas em alemão. São longas e distraem demasiadamente o motorista. Instruções não ajudam, pois ler Fahranfängerfortbildungsverordnung pode ser perigoso. Acidentes acontecem antes do segundo “f”.

Cabe ao navegador, que poderá ser o cônjuge, pais, filhos, ou outros, passar as informações ao motorista de forma simples e clara, como:

“- Mantenha-se diagonalmente à esquerda em 723 metros, pegando a quarta saída à direita e fique à direita para tomar a Rodovia A6, cruzada pela E52, acessível pela falsa rotunda de entrada única, após 17 metros”.

Já aqui, adapta-se a parte referente aos buracos. Além das simples instruções de praxe de todo o GPS, acrescentam-se as do radar e do sonar:

“- Desvie do buraco em 27 metros localizado à esquerda da faixa, com profundidade de 24 cm e diâmetro de 76 cm, sem cair na voçoroca junto ao acostamento, com extensão de 298 metros e profundidade variável!”.

Facilita em muito a condução. O tom de voz deve ser ajustado conforme a profundidade e a proximidade dos buracos.

Fiquei intrigado com uma notícia ouvida do rádio do carro, hoje pela manhã, enquanto tentava desviar dos buracos, sem navegador, sem radar nem sonar. Comentavam que um relatório acusaria a existência de controladores de vôo gagos e surdos. Para os últimos, um intérprete de libras – linguagem brasileira de sinais - poderá ajudar. Mas, e para os primeiros? Pilotos surdos?
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20.6.07

O dia em que o mundo acabou


O dia em que o mundo acabou

Por Paulo Heuser

O escritor escocês Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) escreveu novelas de ficção científica, antes de criar o famoso detetive Sherlock Holmes. Duas me impressionaram especialmente, além do Mundo Perdido. Continuando a saga do Dr. Challenger, personagem daquele livro, Conan Doyle escreveu O Dia Em Que o Mundo Acabou (1913) e O Dia Em Que a Terra Gritou (1928).

O Dia Em Que o Mundo Acabou (The Poison Belt) narra a passagem da Terra por um cinturão de gás, denominado éter, que fez todos seres vivos adormecerem durante algumas horas, menos os aventureiros de O Mundo Perdido, que contavam com cilindros de oxigênio. Quase toda história se desenvolve nos dias que precederam a passagem do planeta pela nuvem, com todas incertezas e angústias decorrentes. A grande pergunta era: morreriam todos naquele dia?

O Dia Em Que a Terra Gritou (When The World Screamed) tem o Dr. Challenger novamente como personagem. Nessa fantástica novela, o personagem é convidado a opinar sobre uma descoberta feita em um profundo poço, em profundidades nunca atingidas. Atingem uma manta de aparência muito estranha, muito diferente de rocha, ou qualquer outra coisa que esperavam encontrar lá embaixo. Conan Doyle consegue criar muito suspensa, até a revelação do que havia sob a manta, quando perfurada. O centro da Terra seria um ser vivo, extremamente incomodado pela presença humana, que lhe perfurara a pele. Daí o pavoroso grito que ecoou por todo o planeta.

O dia ainda não raiou, mas já temo pelo fim dele. Este não é um dia qualquer, que se repete semanalmente, monotonamente, sazonalmente. Quarta-feira é dia de feira, mas nesta quarta há muito mais do que a feira de hortifrutigranjeiros. Hoje a temperatura já subiu bastante, prenúncio do que está para vir. O único caminhão da decrépita feira está passando.

Não sei como este dia terminará, mas Conan Doyle previu. Hoje as ruas ficarão desertas, à espera do éter que vem de longe, do cinturão venenoso portenho. Sequer os cães se arriscarão pelas ruas. Todos se recolherão às suas casas ou aos seus bares para aguardar a passagem do éter alienígena. Alguns se arriscarão mais longe. Entrarão no enorme buraco cavado no Olímpico, a aguardar o grito improvável, mas não impossível, vindo das entranhas do poço. A desvantagem de 3 a 0 está mais para a permanência no éter, pelo menos até amanhã.

O resultado da reunião do Conselho de Ética do Senado poderia gerar outro grito tremendo. Também improvável, a permanecer a história das vacas alagoanas. De qualquer forma, não seria ouvido aqui, onde todos estão atravessando o éter.



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19.6.07

A fé cega enxerga!

A fé cega enxerga!

Por Paulo Heuser


Alguém me mandou matérias digitalizadas de edições de O Cruzeiro, de 1964. Não há como não lê-las. Ou melhor, não há como parar de lê-las. As colunas do jornalista David Nasser são realmente inacreditáveis. Só lendo mesmo. Entretanto, a que mais me chamou a atenção é uma matéria escrita por dois Josés, um Pinto, outro Souza, na edição de 13 de junho de 1964, intitulada Ouro para o bem do Brasil – São Paulo repete 32.

Os Diários Associados criaram a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, um dos movimentos dos “Legionários da Democracia”. Recolheram 400 quilos de ouro e meio bilhão de cruzeiros, apenas em São Paulo. Não sei quanto isso importa hoje, mas, pelo me recordo da época, com cinco cruzeiros se compravam um sorvete de duas bolas e um ingresso da matinée do cinema. O Governador Adhemar de Barros doou seu salário, 400 mil cruzeiros, à campanha. Ou seja, arrecadaram 1.250 salários do governador, apenas em dinheiro. Suficientes para a compra de milhões de sorvetes de duas bolas. E para se passar o resto da vida dentro do cinema. Muita gente doou anéis de ouro, pulseiras e outros objetos. Recebiam uma aliança, em troca, com os dizeres: “Legionários da Democracia”.

Muitas empresas aderiram à campanha, obviamente esperando algum retorno, mesmo que apenas o publicitário. Contudo, mais de 100.000 pessoas, segundo a matéria, teriam doado jóias ou dinheiro. Inclusive muita gente modesta. Sacrificaram-se pela Pátria. Na Argentina, durante a Guerra das Malvinas, fizeram algo semelhante. Chamaram o povo a pagar a conta de uma guerra que não era deles.

Essa matéria me levou ao passado, quando um colega de colégio me mostrou, inflado de orgulho, uma aliança de metal onde se lia: “Doei ouro pelo Brasil”, ou algo parecido. Havia uma grande competição por símbolos de prestígio entre a meninada, e aquele era um trunfo muito grande. Tão grande quanto fora o alfinete de lapela da campanha de Jânio Quadros, uma vassourinha dourada. Lembro-me de ter corrido para casa implorando para que meus pais também doassem alguma coisa.

Aí vem a seguinte pergunta: quem aqui hoje, em sã consciência, doaria jóias ou dinheiro à Pátria? Patriotismo é devoção à Pátria. E aquele foi um ato de devoção, pelo menos da parte dos doadores sem interesse direto. Havia um sentimento patriótico, portanto. Sentimento que foi substituído pela desconfiança generalizada, nas décadas seguintes, provocada pelos governos. Com a rapinagem grassando, os bolsos foram se fechando. Foram-se os anéis e os dedos. Nem brasileiros, nem argentinos, ninguém mais cairia nessa. Patriotismo exige fé, quase cega. Não o patriotismo esportivo, de Copa do Mundo, sazonal como o evento. A fé cega começa a enxergar, após muitos anos de discursos e promessas não cumpridas. Hoje a fé está restrita à religião. A fé cega nas demais instituições perdeu a venda, e até deixou de usar óculos. Lê até a última linha - Aquela bem pequenina.
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14.6.07

Filósofos Cosmopolitas

Filósofos Cosmopolitas

Por Paulo Heuser


Toda cidade cosmopolita carece de uma identidade. Ou melhor, tem todas. Pode parecer confuso, mas a filosofia é confusa, de qualquer forma. Por isso é tão interessante. O pessoal se reúne para trocarem idéias e as passam adiante. Ninguém precisa concordar com ninguém. É muito democrático. Em termos físicos, uma cidade cosmopolita se assemelha à cor branca, que nada mais é do que a combinação de todas as cores. Nas cidades, surgem os guetos, os bairros etnicamente distintos. Em algumas, no entanto, surgem áreas sem uma identidade específica, são zonas sem fronteiras, como o Café Bataclan, em Oberkampf, Paris. Ali cada mesa é um gueto, em algumas, cada cadeira é um gueto.

O Bataclan é a Torre de Babel. Não há padrões ali, nem lingüísticos, nem comportamentais. Havia apenas um padrão: mais de uma pessoa por mesa, conversando alegremente, no final de tarde. Seja em que língua fosse. Quem fulminou o padrão foi o Giandomenico. Havia apenas uma mesa livre, no meio do passeio. Giandomenico sentou-se àquela mesa, como que iluminado por um holofote. Contrastava com o resto, que, por si só, personificava o contraste. Confuso, não é? Pois, filosofia é complicada mesmo.

Enquanto judeus ortodoxos cruzavam ao largo, e um senegalês consultava sua bússola para localizar a Meca, Giandomenico sentou-se ereto, de olhos arregalados, com um cigarro meio fumado no centro exato dos lábios. A cinza do cigarro não caía, ficando levemente curvada para baixo. Giandomenico vestia capa bege e usava cabelo longo repartido no centro, no melhor estilo telhado raso. A barba, mais grisalha que o cabelo, fazia conjunto com a cinza do cigarro e a cor da pele. Apesar de nada fazer para chamar a atenção, Giandomenico se destacava como um farol em meio à escuridão. Apenas por representar a normalidade em meio ao caos. Tornou-se impossível não notá-lo. E imaginar que aquela cinza estivesse colada, pois continuava lá, curva, mas firme. Giandomenico fumava de modo estranho. Ingeria a fumaça pelo centro da boca, onde o cigarro estava espetado, e a soltava pelos lados. Pediu algo transparente, servido em pequenos cálices, para beber. Não bebeu, no entanto. O cigarro permanecia no centro da boca.

Um grupo de alemães, na mesa ao lado, discutia sobre o aquecimento global, e suas conseqüências. Os mais vermelhos defendiam a tese da culpa do homem no processo de aquecimento. Os outros, igualmente vermelhos, defendiam a tese do engodo global. O aquecimento global seria ficção. O vermelhão se devia, em doses iguais, ao sol e à cerveja.

- A culpa é da Natureza! – disse Giandomenico, sem ser convidado.

Fez-se o silêncio no bar. Todos olhavam para aquela figura ímpar, perguntando-se por que aquela cinza não caía. Cinza que já ameaçava o filtro.

Em outra mesa, povoada por marroquinos, franceses e cambojanos, uma menina usando enormes óculos escuros, gritou:

- Como, da Natureza? – parecia indignada.

Sem tirar o cigarro do centro da boca, Giandomenico falou, meio sibilante:

- Se a Natureza pôs o homem aqui, e o homem produziu o aquecimento global, trata-se de um processo natural. Obra da Natureza, portanto! É lógico e irrefutável!

Sêneca não teria feito melhor. Um americano levantou a mão, como que pedindo licença para contestar, mas desistiu. Fitou o tampo da mesa, através do fundo do copo de cerveja.

Quando o cheiro de filtro queimado ficou evidente, Giandomenico tirou o cigarro da boca, bebeu do copo em apenas um trago e prontamente acendeu outro cigarro, colocado no centro dos lábios. Deixou algumas moedas sobre a mesa e sumiu, engolido pela entrada da estação Oberkampf. O caos voltou a imperar nas mesas do café, naquele fim de tarde excepcionalmente quente para a primavera.

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13.6.07

Libertadoras do Brasil


Libertadoras do Brasil

Por Paulo Heuser


Há dias em que estamos caminhando, ou fazendo qualquer outra coisa rotineira, e vem aquele lampejo. Vem do nada. Não estávamos pensando no assunto, mas o assunto se intromete na nossa rotina, sem pedir nem receber permissão. Foi o jogo da Libertadores. Por que veio? Não percebi imediatamente a extensão da coisa. Não parecia nada de novo, pois é só do que falam, nos últimos tempos. Foi então que uma coisa começou a encaixar na outra. Restou descobrir qual era a outra coisa. Não foi muito difícil, na verdade.

Vejamos, agremiações, equipes de adversários, somente um sairá vencedor, ser o segundo não interessa a ninguém, campanhas na mídia, patrocinadores, torcidas, ótima remuneração, o céu e o inferno se alternam e troca de técnico na derrota. E dois turnos, a coisa se resolve em dois turnos. A semelhança entre futebol e política é obvia. Com as guerras, também. Os cartolas são os mesmo, sempre os mesmos, alternando-se de quando em quando. Perdem esta, vencem aquela. Técnicos, secretários, todos se alternam com os candidatos.

Contudo, há de se destacar alguns aspectos onde futebol e política diferem, muito ou pouco. Iniciando pelos jogos. Os jogos de futebol têm tempo certo, para começar e para terminar – 90 minutos, em tese. São muito curtos, quando comparados aos jogos políticos. Estes podem tornar-se intermináveis, transcendendo o próprio campeonato. Os jogos de futebol têm arena definida, os políticos ocorrem tanto em arenas definidas como em outras nem tanto. Nos dois esportes os jogadores podem trocar de time durante o campeonato, mas em um deles a troca nem sempre é muito divulgada, ocorre dentro das próprias competições.

O aspecto no qual mais diferem, é a torcida. As agremiações futebolísticas contam com enormes torcidas espontâneas. Torcem por amor à camiseta. Camiseta que vestem, orgulhosamente. Suas bandeiras estão sempre desfraldadas. A paixão pelo esporte faz com que pacatas donas de casa tornem-se protótipos da vovó hooligan, excluído o lado violento do movimento, é claro. Vestem a camisa, gritam, xingam, agitam bandeiras e rezam, sem receber nada em troca, além da imensa satisfação ou frustração de verem seus times vencer ou perder. Dificilmente trocam de time. Nascem, crescem e são enterradas, enroladas na bandeira do timão.

A torcida política é algo diferente. As grandes movimentações da torcida ocorrem apenas nos finais de campeonato, quando ocorre troca da diretoria. Ali não há vovó hooligan. Há a vovó do fisiologismo. Passado a decisão, esquecem-se de tudo. A camiseta vira pano de chão e o pau da bandeira vai ao fogo. Nos próximos quatro anos – ou dois? -, tudo pode mudar. O entusiasmo profissional da torcida política contrasta com o ativismo voluntário da torcida esportiva. Nesta há paixão.

Estão aí a reforma política e a Libertadores. Não há santos, nem no futebol profissional, nem na política, desculpem-me os santistas, pelo involuntário trocadilho. Contudo, se as vovós hooligans entrassem na política, as coisas seriam muito diferentes. Os jogadores e técnicos ruins não durariam meia dúzia de sessões legislativas. Elas seriam as Libertadoras do Brasil, senão da América.



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12.6.07

Lembranças Psicóticas

Lembranças Psicóticas

Por Paulo Heuser


Aconteceu em Chalôns-sur-Saône, na Borgonha. Chegamos ao hotel de beira de estrada ao cair da noite, pouco antes das 21 horas. Estacionamento vazio, ninguém à vista. Estaria fechado? Sabia tratar-se de um hotel cuja portaria fecha depois de determinado horário, passando ao atendimento automatizado. Apesar do aparente abandono, a porta abriu-se. Entrei. Meu boa-noite foi respondido pelo resmungo de boca cheia de alguém que jantava, na sala ao lado. Veio mastigando, com o guardanapo ainda enfiado no colarinho. Esfregando as mãos, engoliu, depois sorriu. Sim, havia quarto vago. Todos - pensei cá comigo. Jurei ouvir uma voz abafada de mulher, idosa, vinda da sala de onde ele saíra. Murmurava que não queria... estranhos, seria isso? O chamou de Norton?

Norton perguntou sobre o jantar. Apontou para as máquinas que preparariam o melhor jantar que um autêntico chef de cuisine mecânico poderia preparar, por apenas quatro euros. Poupamos as moedas e apelamos para os sandubas comprados com o cru da Borgonha. A máquina do chef parecia torcer o nariz para as máquinas de refrigerantes e vomititos, ao lado - Le petit vomitite avec cocá-colá.

Esse sujeito me era familiar. Já o vira antes, com certeza. Alias, não só ele, tudo parecia muito familiar, autêntico déjà vu. Dos mais autênticos, pois estávamos na França.

Feita a burocracia, chegamos ao quarto, finalmente. Espartanamente suficiente. Ficamos na extremidade do corredor, o que aumentou a sensação de isolamento. Norton estava a 100 metros de nós, três andares abaixo. Por que nos colocara no terceiro andar de um hotel vazio e sem elevador? O calor sufocante exigiu que ligássemos o ar-condicionado. Aparelho muito silencioso, justiça seja feita. Pena que não funcionava. Saía apenas um ventinho morno. Tentei daqui, tentei dali, e nada. Não saía ar frio. Não houve solução, senão percorrer o longo corredor e descer os lances de escada, atrás do Norton. Cheguei à portaria vazia. Apenas o chef de cuisine automático e seus acompanhantes exóticos estavam parados na entrada. Reparei que havia vomititos sabor de pizza com molho de churrasco. No balcão, tentei um ãmr-ãmr, caprichando no sotaque. Nada. Bati no balcão, assoviei, bati palmas, no melhor estilo “Seu Norton está?”, como eu fazia na infância, quando ia comprar ovos na casa da Dona Ata. Nada. Talvez as palmas sem sotaque não surtissem efeito. Será que o Norton fora embora a pé? Não havia outro carro, quando chegamos, e não parecia haver linha de ônibus que passasse por ali. Norton deveria estar por ali, mas onde? De onde o conhecia? Sem resposta a nenhuma das questões, voltei ao quarto. No caminho, passei por um quarto que não tinha número na porta. Era uma porta lisa. Encostei o ouvido nela. Pude ouvir vozes, havia alguém lá dentro. Uma parecia ser a voz do Norton, a outra, da velha.

Bati de leve, na porta. Bati com mais vontade. Sem resposta, fiz aquilo que não deveríamos fazer, mas fazemos. Abri um pouco a porta. Em meio à penumbra, consegui ver a silhueta do Norton, sentado ao pé da cama. Falava algo à velha deitada. Envergonhado, fechei novamente a porta, sem fazer ruído algum.

Já que estávamos sozinhos mesmo, abri a janela e a porta, deixando o vento passar pelo quarto. Norton não viria até ali. Nada como um banho, antes de me deitar. Fechei a cortina de plástico e me ensaboava, enquanto pensava de onde conheceria o Norton. A lembrança me caiu sobre a cabeça como um piano de cauda cai sobre uma cristaleira. Não era Norton! Era Norman - Norman Bates! Estávamos no Bates Motel! E eu estava no banho...


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11.6.07

Efemérides

Cupido, de William-Adolphe Bouguereau
Efemérides


Por Paulo Heuser

Doze de junho é Dia dos Namorados, no Brasil. E os outros dias são o quê? Dia das Mães, dos Pais, das Crianças, etc. O dia 13 de junho é Dia do Turista. Faz sentido, o número do azar, quando se vê a bagunça nos aeroportos. O sujeito compra um pacote de feriadão em Buenos Aires e dorme uma noite no Rio de Janeiro, uma em Montevidéu e uma em Brasília. Dorme nos aeroportos, bem entendido. Mora em Florianópolis. É o turismo lotérico que se afirma. Vá, sem saber quando, nem para onde.

Avançando-se um dia, até o 14, chega-se ao Dia do Doador de Sangue, efeméride que homenageia não apenas os nobres cidadãos que doam vida aos seus semelhantes. Homenageia também a todos aqueles que têm seu sangue sugado involuntariamente, nesse e nos demais dias do ano, na forma de impostos. Alguns pensaram em mudar a efeméride para Dia do Contribuinte. Já havia uma: 25 de maio. Dia 15 de junho é o Dia do Paleontólogo. Ganharão ossos velhos novos? Dezessete de junho é um dia inventado por alguém que fabricava pijamas listrados e pantufas. É o Dia do Funcionário Público Aposentado. Coitados, cairá em um domingo. Se bem que, aposentados, nada perderão. Os da ativa não poderão rir deles, pois o 28 de outubro também cairá em um domingo.

Quem inventou o Dia dos Namorados fabricava bombons. Inventou uma boa forma para livrar-se dos estoques, antes que mofassem. Os tempos desvirtuaram a coisa. Hoje se presenteia com celulares, milhões de celulares novos. Celulares que falam, que ouvem, que registram, que navegam, que tocam. Pode-se namorar a distância, com eles. Ou melhor, entre eles. Antigamente o Cupido enviava flechas aos apaixonados. Hoje os apaixonados mandam torpedos, através do cupido celular. Evoluímos, das flechas aos torpedos. Evoluiremos às ogivas múltiplas? Quem já o havia feito, foi Ranário, sujeito bem apessoado e galanteador. Ele não perdia oportunidade de angariar múltiplas namoradas. Andava sempre bem vestido, jogando charme para todos os lados. Tinha um fabuloso arquivo de cantadas temáticas. Para as enfermeiras vinha com um meloso “Posso colocar meu estetoscópio no teu coraçãozinho?”. Algumas o consideravam meio brega, mas fazia sucesso, mantendo sempre um harém de pelo menos cinco namoradas. Ranário investia muito na imagem de galã. Roupas, perfumes, celulares, tudo fazia parte do leque de ferramentas do ofício. No dia 12 de junho, Ranário pedia licença no trabalho, para poder homenagear o maior número possível de namoradas. Era freguês preferencial de floriculturas e telemensagens. Os torpedos que enviava nesse dia eram suficientes para afundar dez Bismarks. Escorria mel perfumado deles.

Ranário não entendeu por que razão perdeu sua mais linda namorada para o Normélio, o Insosso. E não foi por conta de algum galanteio espantoso. Foi ela que correu atrás do Normélio, na verdade. Ele se limitou a lhe sorrir e lhe ceder passagem, na entrada do elevador.


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8.6.07

Retorne à Sua Poltrona!



Retorne à Sua Poltrona!

Por Paulo Heuser


Meu primeiro vôo em avião comercial, em 1976, não foi dos mais calmos. Uma turbulência forte incomodou a todos, durante boa parte da viagem. O avião sacudia tanto que se tornou impossível o acesso ao toalete. Ato que se tornava premente, no meu caso. Decorrida meia hora de sacudidas, o avião passou a voar em céu de veludo. Aproveitei a vantagem tática de estar sentado próximo ao toalete e me joguei na direção dele, pisando sobre senhoras idosas cegas, criancinhas e paralíticos. Aquele toalete tinha de ser meu, urgentemente, a qualquer custo! E consegui adentrá-lo no momento exato em que a turbulência reiniciou. Do que ocorreu após, nada me lembro. Ou melhor, nada quero lembrar.

Lembrei-me daquele vôo das 19h15, da finada Vasp, conhecida depois como “Malufthansa”, enquanto tentava operar – será o termo mais correto? – o toalete de um hotel francês. A palavra banheiro não cabe lá dentro. Fica toalete mesmo, portanto. A coisa foi pré-fabricada em uma peça única, de fibra de vidro. Tudo, desde a pia até o vaso sanitário. Era um vaso mesmo, muito distante da noção que fazemos de um trono. Tronos têm tampa estofadinha, formato anatômico e espaço livre ao redor, muito espaço. A coisa não tinha nem tampa! Exigia mira perfeita, ou aquele procedimento impensável para um gaúcho de múltiplos costados: fazer sentado. Jurei, por um momento, que se ascendera um aviso luminoso, em vermelho, na parede oposta: - Retorne imediatamente à sua poltrona! Cheguei a me segurar, temendo a turbulência. Nada, a turbulência não veio. Também, não havia nada onde se pudesse segurar. A coisa era toda lisa, imitando o piso do box, parte integrante e irremovível.

O banho na coisa é inesquecível, infelizmente. Melhor seria a ingestão de substância amnésica, uma hora antes do vôo, digo, do banho. – Céus, a coisa se moveu? – Aberta a cortina “de matéria”, puxei a torneira, aguardando a água esquentar. Sabonete e xampu na mão, lá me fui, todo contente. Não tão contente assim, pois descobri não haver lugar para pendurar a toalha. Comprovei também o princípio físico que afirma que cortinas “de matéria” se grudam instantaneamente no banhista, seja onde este estiver. Homem, mulher e cortina passam a formar uma entidade só, integrada à coisa. Há outro princípio físico que explica por que o sabonete de hotel sempre cai. Há uma terrível força de atração entre o piso do banheiro (a coisa) e o sabonete, de mesma direção e mesmo sentido da força gravitacional. Muito maior em módulo, no entanto, definida por Fs=mAs. Lê-se como: a força de atração sabonítica é igual ao produto da massa do sabonete pela aceleração sabonítica, ainda não perfeitamente mensurada. Como a força aparentemente tende ao infinito, já que ninguém consegue segurar o sabonete, e a massa dele é fixa, acredita-se que a aceleração tende igualmente ao infinito. Só não descobriram ainda por que a aceleração cresce na proporção inversa da área do box. O fato é que ninguém, ninguém mesmo, consegue tomar banho lá sem deixar cair o sabonete. Não há saboneteira naquela coisa, além do mais. Enquanto se desvencilha da cortina, a pessoa usa uma mão para segurar a ducha, que nunca fica no lugar, outra mão para segurar o xampu e a última para passar o sabonete, aquele que cairá.

Juntar o sabonete é praticamente impossível, pois não há espaço de manobra. É muito mais fácil iniciar outro banho. Desde que você consiga se desgrudar da cortina “de matéria”, que se gruda feito polvo famélico. Aí tudo se torna muito fácil. Basta entrar novamente no box, puxar novamente a torneira, segurar firmemente o sabonete, perdê-lo novamente, etc. Em caso de desespero, não puxe aquela cordinha, único local onde alguém poderia se segurar. O mico de ver a equipe de resgate entrando na coisa é grande. Pelo menos, lhe desgrudam da cortina “de matéria”.

Essa história sobre os franceses não gostarem de tomar banho é bobagem. Eles gostam, na verdade. O problema é mais técnico. Eles não conseguem tomar banho!




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6.6.07

Maria e José Voltaram


Maria e José Voltaram

Por Paulo Heuser

Vamos chamá-los de Maria e José, apenas. Ele não era carpinteiro e ela não teve um filho homem que completou 33 anos. Nem eram casados um com o outro. Eram irmãos. Um dia desses fizeram-se a clássica pergunta sobre sua origem. De onde teriam vindo? Da Itália. Mas de onde na Itália? Após algumas pesquisas e consultas a parentes, eles tinham um rumo. E uma necessidade, a de conhecer a terra de onde sua família havia emigrado, em direção à nossa terra. Seu avô deixara a Europa, ainda quando criança, sem haver retornado. Tempos difíceis aqueles. Lá e aqui. Pestes, guerras, fome, tudo contribuía para que homens e mulheres abandonassem seus lares e se aventurassem em uma terra estranha, uma terra prometida.

Maria e José voltaram à terra de seus avós, para conhecê-la. Para beber da água e do vinho de lá, apanhar um punhado de terra e sentir o cheiro das flores. Será que algo na carga genética despertaria, aos experimentarem das olivas? As coisas pareceriam familiares? Encontrariam pessoas fisicamente semelhantes?

Chegaram na pequena cidade por volta do meio-dia. Em uma planície de infinitos horizontes. Uma estrada estreita levou à praça central, defronte à igreja e ao hotel. Uma cidade fantasma? Nada havia nas ruas. A não ser a sorveteria Arcobaleno. O nome não poderia ser mais apropriado. As cores dos sorvetes, feito arco-íris, destoavam dos tons monocromáticos do resto da paisagem. A vida parecia ter fugido da cidade, com exceção da sorveteria. O vermelho das frutas silvestres e o verde do pistachio emprestavam vida e cor ao lugar. Na praça, não faltava o tradicional obelisco com a relação dos cidadãos que tombaram nas duas grandes guerras. O tempo parou lá, na primeira, provavelmente. Dois meses sem chuvas tornavam o sol mais impiedoso, ampliando a sensação de abandono.

Um sorvete foi o ponto inicial da saga de Maria e José, na busca de algo ou alguém que preenchesse sua necessidade de voltar às origens. O proprietário da Arcobaleno não conhecia pessoas com o sobrenome de Maria e José. Maria estava com o endereço da casa do avô, na Via Appia, a mesma da sorveteria. Número seis. Simples, a sexta casa. Logo aquela, a que faltava. A numeração pulava de cinco para sete. Entre as duas, uma lavoura. E agora, José? Quando chegaram à casa seguinte, onde havia uma pequena placa indicando o sobrenome de Maria e José, o coração deles disparou. Não apenas ele, também disparou um carro, pelo portão dos fundos. Tarde demais, o homem fora visto e teve de retornar, explicando que não era parente, apesar de carregar o mesmo sobrenome e morar no terreno lindeiro àquele da casa do avô. Os parentes estariam no nro. 14, onde se lia outro sobrenome. Ninguém em casa, lá. À medida que o carro avançava, crescia a estranha sensação de que a cidade se fechava, cerrando portas e janelas. De volta à praça, Maria e José foram à igreja, onde uma senhora estava parada ao lado de uma pomba morta. Mau agouro? A mulher ouvira falar daquele sobrenome, mas em outra cidade, não ali.

Quem procura parentes, e não os encontra, vivos pelo menos, vai ao cemitério. Foi exatamente o que fizeram Maria e José. Dirigiram-se ao cemitério, onde encontraram muitos túmulos com o seu sobrenome. Teria havido uma peste que eliminara todos portadores daquele sobrenome? Eis que surge uma senhora que leva o mesmo sobrenome. Viva, por sinal. Carregando um balde com flores. Ouve pacientemente a história dos viajantes à procura dos antepassados e diz não ser parente. O do número sete seria, ela não. Ligou pelo celular para uma tia, que conhecia ou desconhecia todo mundo na cidade, obtendo uma confirmação de não-parentesco. Essa era a única certeza.

Decepcionados, Maria e José foram ao hotel. Não encontraram parentes, mas poderiam ao menos dormir uma noite na terra de onde descendiam. Uma noite de sono no local das suas raízes. Algo lá no íntimo haveria de perceber, mesmo que inconscientemente. Receberam a triste notícia da lotação completa do hotel. Nada de vagas. Apesar de não se verem carros ou pessoas. Perguntaram sobre a existência de vagas no hotel da cidade ao lado. Tudo lotado. O encarregado não precisou consultá-los. Já sabia que estava tudo lotado. O local mais próximo com vagas seria Legnago, longe dali.

Maria e José deixaram a terra dos seus ancestrais como chegaram. O carro retomou a estrada estreita, sem acostamentos. O vento seco levantava uma poeira fina, quase formando uma névoa. O sol provocava miragens no asfalto. Naquela noite dormiram em Legnago, na mesma região, mas distante dali.

Na terra dos ancestrais ocorreria uma reunião, na pizzaria do hotel. Participariam o dono da sorveteria, o sujeito da casa sete, o da casa 14, as senhoras do cemitério e da igreja e o dono do hotel, além de outros, ainda não vistos. O dono da sorveteria trocaria acusações com Luigi, o olheiro, cuja missão era vigiar a estrada e avisar da aproximação de carros estranhos, com placas de outras terras. Luigi dormira a sesta, antes do tempo.


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5.6.07

Os Indianos e o Luis

* Mendigos, de Ignácio Mora

Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 16/06/2007:
Os Indianos e o Luis

Por Paulo Heuser


Há quem diga que eu tenho fixação por mendigos. Pode ser verdade. Talvez eu tenha medo de me transformar num deles. Ou, talvez, não possa deixar de ler a mensagem implícita na imagem deles: algo está muito errado por aqui. Não só por aqui, diga-se de passagem. Como diz alguém que conheço:

- Grandes cidades são todas iguais, têm teatros, têm praças, têm monumentos e têm mendigos.

Verdade. Nem os cartões postais do Primeiro Mundo, como Paris e Roma escapam da chaga social. Lá se vêem verdadeiras favelas, basta andar pelos arredores. Tudo bem escondido do turista convencional. Mas estão lá, para quem quiser ver.

Hoje cruzei novamente pelo mundo dos indigentes, o Centro. Aí reside uma grande diferença entre o Primeiro e o Terceiro Mundo. Lá expulsam os indigentes para a periferia. Aqui, vivem no Centro. Ponto para os d’além mar, pois os turistas nada percebem.

Nas manhãs frias, como as deste outono, os habitantes desse mundo intangível, para nós que estamos do lado de cá da amurada social, tornam-se muito mais visíveis. Saúdam o nascer do sol como uma dádiva, enquanto discursam coisas sem sentido. Sem sentido para nós. Para eles, quem sabe? Comemoram o fim da longa noite. Vivos, ainda. Até a próxima noite. Uma mulher caminhava sem rumo, comentando que teria avisado alguém sobre a cortina, que não estaria bem alinhada. Insistia na tese de a ter avisado. Azar da outra, que não ouviu.

Ainda não entendo por que não exploramos economicamente o mundo deles, já que aparentam se transformar em maioria. Poderíamos criar slogans voltados àquela classe socioeconômica. “Hipovitaminose A? Tome Figadol, preparado com selecionados fígados de pombos de praça!”. Ou então, “Anemia, bócio? FerroIodil neles!”. Os ignoramos completamente porque não têm como nos pagar. Poderíamos aceitar lixo seco, por exemplo. Poderíamos trocar um frasco de Figadol por 147 latas de alumínio.

Até a classe política os ignora. Não votam, e, definitivamente, não são formadores de opinião, pelo menos no nosso mundo. No deles, não sei. Apenas os cães parecem gostar deles. E os cães de mendigos parecem felizes. São os vira-latas simpáticos, de olhar bondoso, aqueles que nunca aparecerão nas manchetes por atacar alguém. Dividem passivamente a miséria com seus companheiros humanos.

Há tentativas isoladas de comunicação intermundos. Percebi uma delas hoje de manhã, na praça. Um sujeito enrolado em um cobertor imundo gritava:

- Quando Nosso Senhor descer da cruz, os indianos reverenciarão o Luis Inácio Lula da Silva, nosso Presidente!

O que estarão gritando os miseráveis indianos?



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Disfarces Que Denunciam


Disfarces Que Denunciam

Por Paulo Heuser

Nada é mais institucionalmente simbólico do que um francês, ou uma francesa, carregando um pão tipo baguette, também francês, pela rua. Normalmente eles carregam dois pães, um dos quais será devorado no caminho desde a padaria (boulangerie) até sua casa. Francês que se preze não compra pão no supermercado. Aliás, os autênticos franceses não compram nada no supermercado. Nem sabem da existência deles, reservados para os imigrantes e turistas. Vale a pena comprar um pão baguette na padaria, mesmo se estando hospedado em um hotel. É-lhe entregue sem embrulho, apenas com um pequeno pedaço de papel para segurá-lo, no centro. O pão não chegará ao hotel, de qualquer forma, devorado pelo portador, durante o percurso. Pensando bem, aqui ocorre mais o menos o mesmo. Trocam-se papéis, apenas. A figura do portador que come o pão dá lugar à figura do ladrão que leva – e come – o pão. Afora eventuais problemas nos aspectos higiene e segurança, não vejo razão para se embrulhar o pão. A não ser que o sujeito vá para casa de metrô. Baguettes, tábuas para passar roupa e réguas “T” (aquelas enormes, de desenho) não combinam com metrôs ou ônibus apinhados de gente.

Há coisas que é melhor não carregar pela rua, a não ser quando embrulhadas. Certa feita, faz uns 30 e poucos anos, levei um jacaré empalhado, sob o braço, tomando um ônibus urbano. Na entrada do coletivo o motorista fechou a porta no rabo do jacaré, que demorou mais a embarcar. Da cara do cobrador lembro-me até hoje, enquanto gritava “- Abre atrás!”, para liberar a cauda do infeliz réptil da família alligatoridae da ordem crocodylia. Imagino que você esteja tentando imaginar o que eu fazia com um jacaré. A explicação é muito simples: o dei de presente para uma menina, numa festa do colégio. Melhor do que uma caixa de sabonetes, não é? Onde arrumei um jacaré empalhado? Bem, aí a coisa se complica. Hoje, provavelmente, eu e o jacaré terminaríamos numa delegacia. Naquela época havia crimes bem piores do que aquele.

Carregar jacarés no ônibus era estranho. Havia coisas consideradas mais estranhas, no entanto. Raquetes de tênis, por exemplo. Quem as levava, era visto com desconfiança pelos passageiros, digamos assim, menos refinados, que prontamente apelidavam os portadores de “Esterzinha”, numa alusão à jogadora Maria Esther Bueno, maior nome do tênis brasileiro. Por isso, escondiam-se as raquetes no interior de grandes bolsas.

Outra coisa que ninguém carregava à vista de todos - e que continuam não carregando - eram os potes e frascos destinados aos subprodutos indesejáveis da digestão, utilizados nos exames clínicos. Passaram a embrulhá-los em papel pardo, como disfarce. Em pouco tempo, o papel pardo virou sinônimo de embrulho de potes de fezes. Assim como os envelopes de papel pardo viraram sinônimos de transporte de dinheiro. Especialmente quando carregados cuidadosamente sob a axila, nas sextas-feiras à tarde, por uma dupla de sujeitos nervosos saídos de uma agência bancária. Construtores retirando o pagamento semanal dos operários da construção, com certeza. Os rodízios de churrasco terminaram com o pacote de “ossos para o Rex”. Cachorro se chamava Rex ou Tupã. E os restos do almoço eram levados para casa, nos embrulhos de papel pardo, para o Rex. Que os comia, se sobrasse algo, após o carreteiro da janta. Resto de rodízio, não cola. Há quem tente, contudo.

Ontem peguei emprestado um objeto que também ninguém carrega a céu aberto. É aquele utilizado para ... sabe ... desentupir coisas que não são pias. São coisas maiores do que as pias, nas quais não se lava o rosto e, muito menos, escova os dentes. Sei, as banheiras são maiores do que as pias, pelo menos as banheiras antigas, mas não se trata de banheiras, no caso. Fiquei com a impressão de que todo mundo me observava, na rua. Só por que carregava um cabo de madeira com um objeto arredondado, ensacado numa das extremidades?


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1.6.07

Da Hora e da Voz


Da Hora e da Voz

Por Paulo Heuser


Cresci ouvindo a Hora do Brasil. Todas as noites, religiosamente, ou melhor, militarmente, a coisa ia ao ar. E continua indo. Esse programa prestou grandes serviços às populações mais isoladas do país. Chato para uns, excelente para outros. O que foi estranho, na verdade, foi o desaparecimento do “em Brasília são 19 horas”. Hoje são apenas sete. Disseram que o povo não sabia contar até 19. Até sete, sabem. Depois de 1962 passou a chamar-se Voz do Brasil. Muita coisa mudou nesses anos. A linha austera e censurada do regime militar deu lugar ao Guarani forró de hoje. Carlos Gomes não está mais aí, para dizer se aplaude, se chora ou se apenas ri. A Hora do Brasil pegava o horário do jantar. Na hora do almoço, especialmente nos domingos, o ar enchia-se de musicas dos grandes maestros de vitrola, como Paul Mauriat e Ray Conniff, suavemente recomendáveis para uma boa digestão.

Viajando, lembrei-me da Hora/Voz do Brasil. Estando em outro país, cuja língua se estuda, nada melhor do que manter o rádio do carro ligado, enquanto se viaja. O ouvido começa a se familiarizar com a outra língua. Assim fiz na Itália. Os italianos costumam fazer um ritual de almoço com antepasto, primeiro prato, segundo prato, ..., ..., ... e sobremesa. Coisa longa, para lá de hora e meia. Imagino que muitos devem ouvir rádio, ou olhar TV, enquanto almoçam. Contrariando a folga do almoço, aproveitei para viajar exatamente na hora do almoço (pranzo). As estradas ficam bem mais vazias, o que é extremamente importante no Tirol, onde encontrar com um veículo vindo na direção contrária é uma experiência inesquecível.

Liguei o rádio do carro num modo de sintonia automática, deixando que escolhesse a emissora com melhor sinal. Por vezes, é sempre a mesma, operando em cadeia. O que no Tirol pode ser nenhuma, em alguns momentos. Notei que algumas rádios transmitem programas médicos, na hora do almoço. O fato teria passado despercebido, se não fosse a próstata. Não a minha, a do rádio. Ou melhor, a do programa de rádio. Segunda-feira, 12 horas (até 12 os italianos também sabem contar), subindo os Alpes, e a entrevistadora coleta, através do telefone, experiências com a próstata dos ouvintes. Terça-feira seria dia do apêndice? Não, terça-feira, 12 horas, descendo alguma montanha, lá está novamente a apresentadora da próstata. E os inúmeros relatos dos ouvintes. Sete ou oito interessantíssimos relatos sobre próstatas. Bem o que os ouvintes desejam ouvir na hora do almoço. Na quarta-feira, inovei. Almocei na hora do almoço. Num restaurante simples, mas correto, com uma TV de plasma na parede, apresentando algum programa sobre... próstata! Foi então que me caiu a ficha. Os italianos não têm Hora ou Voz da Itália. Eles têm a Hora da Próstata! – Ora Della Prostata.




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