25.6.07

Copos-de-leite

Copos-de-leite

Por Paulo Heuser


Hoje um sujeito cruzou a praça, carregando um ramalhete de copos-de-leite. Sei, são flores de defunto, pelo menos eram, no meu tempo. Qual é o meu tempo? É o meu, ora. Einstein provou, matematicamente, que o meu tempo é o meu, só meu. Do seu, nada sei, principalmente se você estiver em movimento. Coisas da Relatividade.

O sujeito caminhava de modo estranho, carregando aquele ramalhete de uma dúzia de copos-de-leite. Doze, não um, nem dois. Doze. Coisa de floricultura, portanto, nem que fosse floricultura de defunto. Ele pendia para o lado direito, segurando o ramalhete com a mão esquerda. Mais um sinal? Sua expressão era o retrato da dor sem moldura. Dor, muita dor. Não passou despercebido, abrindo alas no meio da multidão incógnita que varava a avenida. Os felizes, ou quase, abriam alas para a dor.

Estaria ele indo ao enterro? Enterro de quem? Enterro na rua do rio? Havia algo de dissonante naquele quadro, nem que fosse o som. Mas, ele seguia uma trilha invisível, na direção da desgraça. Rosto sofrido, andar arquejado, copos-de-leite, tudo remetia à desgraça. O que teria sucedido? Algum parente se fora? Seria o féretro unitário? O féretro é o carrinho do caixão, na verdade, mas gostamos de chamar o pessoal de féretro. O féretro sairá da capela... Quem já perdeu alguém, sabe. Reparou como havia copos-de-leite? Se erradicássemos a flor, vidas seriam poupadas? Seria uma relação de causa e efeito ou de efeito e causa?

Ele seguia, abrindo caminho na multidão dos sem-flores, pessoas comuns. Até as moças, que sempre admiram os homens portando ramalhetes, quedaram-se mudas. Quem seria o desgraçado infeliz? Um marido que perdera a amada, após 30 anos de felicidade? Como sobreviveria à disputa pela felicidade? Não seria com aquelas flores, com certeza. Cruzou a rua, pela faixa de pedestre. Todos pararam, até mesmo os táxis e os motoboys. Quem seria ele? Por que sofreria tanto? Nos passos tortos ele avançava, com aqueles copos-de-leite pendentes, no tosco ramalhete. Seria um parente? O pai? O filho? A mulher? Ninguém sabia, na verdade. Passaram apenas a seguí-lo. Com seu ramalhete de copos-de-leite. Pé certo, pé torto, ele avançava na direção de lugar nenhum, inexoravelmente, arrastando aquela multidão atrás de si. Alheio ao involuntário arrastão, segurava firme o ramalhete das flores de defunto, mesmo sem saber, conscientemente, quem seria o defunto. Mas, seguia, apesar da deficiência.

Iria ao enterro da democracia, vilipendiada pelos rapinadores da liberdade? Seria o extremo ato de protesto de um cidadão injuriado? Sem resposta, ele seguia, cruzando ruas e avenidas, arrastando um cordel de anônimas personalidades. Parecia absorto nos mais profundos pensamentos, quando alguém, inconformado, lhe perguntou sobre a razão de portar tão singelo ramalhete. Surpreendido, em meio a devaneios, apressou-se em responder:

- Sei lá, achei no lixo e gostei. Levo para a patroa. Um agradinho, de quando em vez, não faz mal...
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