14.6.07

Filósofos Cosmopolitas

Filósofos Cosmopolitas

Por Paulo Heuser


Toda cidade cosmopolita carece de uma identidade. Ou melhor, tem todas. Pode parecer confuso, mas a filosofia é confusa, de qualquer forma. Por isso é tão interessante. O pessoal se reúne para trocarem idéias e as passam adiante. Ninguém precisa concordar com ninguém. É muito democrático. Em termos físicos, uma cidade cosmopolita se assemelha à cor branca, que nada mais é do que a combinação de todas as cores. Nas cidades, surgem os guetos, os bairros etnicamente distintos. Em algumas, no entanto, surgem áreas sem uma identidade específica, são zonas sem fronteiras, como o Café Bataclan, em Oberkampf, Paris. Ali cada mesa é um gueto, em algumas, cada cadeira é um gueto.

O Bataclan é a Torre de Babel. Não há padrões ali, nem lingüísticos, nem comportamentais. Havia apenas um padrão: mais de uma pessoa por mesa, conversando alegremente, no final de tarde. Seja em que língua fosse. Quem fulminou o padrão foi o Giandomenico. Havia apenas uma mesa livre, no meio do passeio. Giandomenico sentou-se àquela mesa, como que iluminado por um holofote. Contrastava com o resto, que, por si só, personificava o contraste. Confuso, não é? Pois, filosofia é complicada mesmo.

Enquanto judeus ortodoxos cruzavam ao largo, e um senegalês consultava sua bússola para localizar a Meca, Giandomenico sentou-se ereto, de olhos arregalados, com um cigarro meio fumado no centro exato dos lábios. A cinza do cigarro não caía, ficando levemente curvada para baixo. Giandomenico vestia capa bege e usava cabelo longo repartido no centro, no melhor estilo telhado raso. A barba, mais grisalha que o cabelo, fazia conjunto com a cinza do cigarro e a cor da pele. Apesar de nada fazer para chamar a atenção, Giandomenico se destacava como um farol em meio à escuridão. Apenas por representar a normalidade em meio ao caos. Tornou-se impossível não notá-lo. E imaginar que aquela cinza estivesse colada, pois continuava lá, curva, mas firme. Giandomenico fumava de modo estranho. Ingeria a fumaça pelo centro da boca, onde o cigarro estava espetado, e a soltava pelos lados. Pediu algo transparente, servido em pequenos cálices, para beber. Não bebeu, no entanto. O cigarro permanecia no centro da boca.

Um grupo de alemães, na mesa ao lado, discutia sobre o aquecimento global, e suas conseqüências. Os mais vermelhos defendiam a tese da culpa do homem no processo de aquecimento. Os outros, igualmente vermelhos, defendiam a tese do engodo global. O aquecimento global seria ficção. O vermelhão se devia, em doses iguais, ao sol e à cerveja.

- A culpa é da Natureza! – disse Giandomenico, sem ser convidado.

Fez-se o silêncio no bar. Todos olhavam para aquela figura ímpar, perguntando-se por que aquela cinza não caía. Cinza que já ameaçava o filtro.

Em outra mesa, povoada por marroquinos, franceses e cambojanos, uma menina usando enormes óculos escuros, gritou:

- Como, da Natureza? – parecia indignada.

Sem tirar o cigarro do centro da boca, Giandomenico falou, meio sibilante:

- Se a Natureza pôs o homem aqui, e o homem produziu o aquecimento global, trata-se de um processo natural. Obra da Natureza, portanto! É lógico e irrefutável!

Sêneca não teria feito melhor. Um americano levantou a mão, como que pedindo licença para contestar, mas desistiu. Fitou o tampo da mesa, através do fundo do copo de cerveja.

Quando o cheiro de filtro queimado ficou evidente, Giandomenico tirou o cigarro da boca, bebeu do copo em apenas um trago e prontamente acendeu outro cigarro, colocado no centro dos lábios. Deixou algumas moedas sobre a mesa e sumiu, engolido pela entrada da estação Oberkampf. O caos voltou a imperar nas mesas do café, naquele fim de tarde excepcionalmente quente para a primavera.

Marcadores: , ,