31.5.07

Só Mudam o Endereço e os Mariscos

Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 02/06/2007: http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=76194&intIdEdicao=1175

Só Mudam o Endereço e os Mariscos

Por Paulo Heuser


Quiseram o destino, o clima e a companhia aérea que eu acabasse com um argentino e um chileno num táxi, em Buenos Aires, dirigido pelo portenho. No longo percurso entre Centro e o aeroporto de Ezeiza, desfilavam paisagens de outono no parque, em belos tons de vermelho e amarelo. A conversa girava em torno dos mariscos chilenos, enquanto o sol invadia o interior do carro. Esvaziou-se, no entanto. Tentei quebrar o silêncio comentando com o motorista sobre a quantidade de mendigos que eu vira dormindo nas gélidas ruas cortadas pelo Minuano, na madrugada anterior. Lá ainda se caminha pelo centro da cidade, mesmo à noite. Pudera, há policiais uniformizados pelas ruas, inclusive no interior das praças. A segurança acabou entrando na conversa.

O motorista passou a discorrer sobre os motivos da crescente miséria entre os argentinos. Disse que eu não deveria temer os mendigos nas ruas, pois eles pertenceriam à parte honesta da população. Apontou na direção do congresso e o chamou de “la gran fábrica de corrupción”. Segundo ele, lá estaria o perigo. A eles é que deveríamos temer. Com crescente indignação, ele relatou terríveis histórias sobre ex-ocupantes de importantes cargos públicos. Histórias sem fim.

O chileno ouvia calado. Provavelmente lembrou-se de episódios ocorridos há 30 anos, já quase esquecidos. Estava fora do seu país, do seu mundo, nada ali lhe era familiar, hoje.

O motorista estava ficando cada vez mais ruborizado, à medida em que falava da alienação das coisas públicas, sem que se soubesse para onde foi o dinheiro. Ele começou a olhar para trás, enquanto falava, para não dizer que gritava. Pensei em sugerir que ele olhasse para frente, de vez em quando, mas desisti.

O chileno tentou engatar uma volta aos mariscos, comparando-os com os mediterrâneos, mas não logrou êxito. O motorista argentino não parecia preocupado com o sabor mais rico dos mariscos chilenos. Ele queria falar sobre o minguante bife do almoço portenho. Ignorou solenemente o interlocutor do outro lado do Estreito de Beagle, que, resignado, voltou a observar as árvores no parque.

Bem feito - pensei eu. Coloquei fogo no circo, agora teria de agüentar. Tentei elogiar a estátua do Libertador, em vão. O homem gritava que “la gran fábrica de corrupción” só fabricava leis que os impedissem de serem presos. Nem o elogio ao bife do jantar - que não era grande coisa, diga-se de passagem - adiantou. O chileno despertou dos seus devaneios e tentou falar dos mariscos do seu jantar. Inútil, o condutor portenho continuou com a saraivada de invectivas endereçada aos políticos do seu país.

Salvos pela chegada ao aeroporto, nos despedimos. O chileno seguiu seu rumo, em direção aos seus mariscos mais saborosos do que os do Mediterrâneo, com certeza. Estava deixando um mundo estranho que não era seu. Não hoje, pelo menos.

Eu voltei para o meu mundo. Voltei? Descobri, naquele táxi, que eu me sentia terrivelmente em casa. Com outros mariscos, apenas.

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