28.5.07

Bela e Inculta Etienne


Bela e Inculta Etienne


Por Paulo Heuser

Uma coisa um tanto estúpida a se fazer é chegar em alguma cidade turística, num sábado, sem ter reservado hotel. Assim cheguei em Aix-en-Provence (França). Após consultar vários hotéis, completamente lotados, fui me socorrer da grande rede francesa de hotéis de periferia. Lá, quase sempre, há vagas. Quase sempre. Cheguei à portaria e fui atendido pela Etienne. Linda moça, loira de olhos azuis como o Mediterrâneo, extremamente sorridente. Etienne era a jovialidade em pessoa, combinando perfeitamente com os campos floridos de Provence, que inspiraram Cézanne.

- Bonsoir monsieur – falou ela ao me ver, abrindo ainda mais o sorriso.

Caprichei numa das únicas frases que sei em francês:

- Je ne parle pas Français... – Não falo francês...

O sorriso dela continuou estampado no seu rosto. Algo mudou, no entanto. Passou de um sorriso leve, espontâneo, para um sorriso com pitadas de deboche, sutis. Ela respondeu, rápido, algo que entendi como uma pergunta: se eu havia reservado o quarto. Respondi negativamente. Sem parar de sorrir, acrescentou qualquer coisa que não entendi. O sorriso já era o de alguém que está se divertindo com a situação. Veio nova frase, rápida, quase num riso.

Fiquei imaginando quem colocara a monoglota Etienne na recepção de um hotel onde potencialmente surgiriam estrangeiros que não entendem francês. Vencido, mas não resignado, achei que aquela era a hora de vingar os ignorantes iletrados do mundo:

- Napoleão bebeu no penico de Nelson em Trafalgar. – eu disse em bom português.

Etienne não entendeu a frase toda, mas pescou alguma coisa. Seu sorriso perdeu algo do deboche e ganhou traços de ira. Disse algo sobre não entender o que eu falava. A mudança na atitude dela me encorajou a prosseguir com a terrível vingança. Lancei outras frases decoradas:

- Parlez-vous Portugais? – Você fala português?

Nenhuma reação notável. Senti que deveria manter um ataque contínuo e consistente. À negativa dela, levantei levemente as sobrancelhas, procurando imprimir um ar de surpresa e decepção. Não era momento para esmorecer:

- Parlez-vous Italian? – golpeei novamente.

Nova negativa, agora com efeitos visíveis no sorriso. Etienne começou a sentir a perda do controle total da situação, apesar de não saber o que era um peniqueaux. Pequenos vincos surgiram nos cantos dos olhos. Não eram rugas, pois Etienne é muito nova. Eram vincos de preocupação. O sorriso passou do branco absoluto para o gelo. Sem piedade, continuei:

- Parlez-vous Allemand?

Foi então que notei as primeiras fissuras na pétrea expressão de Etienne. Ainda sorria, mas os vincos na testa mostravam preocupação. Notei também que ela dilatou levemente as narinas e passou a respirar mais rápido.

- Parlez-vous Espagnol? – continuei atacando.

A cada negativa respondi com um novo ângulo de elevação das sobrancelhas. Deixei as pontas dos lábios caírem levemente, traduzindo comiseração e decepção. Hora de dar o golpe fatal do vingador cucaracha:

- Parlez-vous Anglais? – lhe perguntei, adicionando porções equilibradas de irritação, pena e incredulidade.

Atingida em cheio, Etienne balançou, finalmente. Completei em português, elevando mais a sobrancelha direita, num ângulo de dar inveja a um vulcano:

- Você fala apenas francês?

O sorriso se foi. Enquanto eu descia as escadas da entrada do hotel, pude ouvir Etienne assoando o nariz. Parei na base da escada, respirei o ar fresco da primavera, repleto do perfume da lavanda plantada em torno da cidade, e segui assoviando um trecho da Abertura de 1812, de Tchaikovsky.


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