6.6.07

Maria e José Voltaram


Maria e José Voltaram

Por Paulo Heuser

Vamos chamá-los de Maria e José, apenas. Ele não era carpinteiro e ela não teve um filho homem que completou 33 anos. Nem eram casados um com o outro. Eram irmãos. Um dia desses fizeram-se a clássica pergunta sobre sua origem. De onde teriam vindo? Da Itália. Mas de onde na Itália? Após algumas pesquisas e consultas a parentes, eles tinham um rumo. E uma necessidade, a de conhecer a terra de onde sua família havia emigrado, em direção à nossa terra. Seu avô deixara a Europa, ainda quando criança, sem haver retornado. Tempos difíceis aqueles. Lá e aqui. Pestes, guerras, fome, tudo contribuía para que homens e mulheres abandonassem seus lares e se aventurassem em uma terra estranha, uma terra prometida.

Maria e José voltaram à terra de seus avós, para conhecê-la. Para beber da água e do vinho de lá, apanhar um punhado de terra e sentir o cheiro das flores. Será que algo na carga genética despertaria, aos experimentarem das olivas? As coisas pareceriam familiares? Encontrariam pessoas fisicamente semelhantes?

Chegaram na pequena cidade por volta do meio-dia. Em uma planície de infinitos horizontes. Uma estrada estreita levou à praça central, defronte à igreja e ao hotel. Uma cidade fantasma? Nada havia nas ruas. A não ser a sorveteria Arcobaleno. O nome não poderia ser mais apropriado. As cores dos sorvetes, feito arco-íris, destoavam dos tons monocromáticos do resto da paisagem. A vida parecia ter fugido da cidade, com exceção da sorveteria. O vermelho das frutas silvestres e o verde do pistachio emprestavam vida e cor ao lugar. Na praça, não faltava o tradicional obelisco com a relação dos cidadãos que tombaram nas duas grandes guerras. O tempo parou lá, na primeira, provavelmente. Dois meses sem chuvas tornavam o sol mais impiedoso, ampliando a sensação de abandono.

Um sorvete foi o ponto inicial da saga de Maria e José, na busca de algo ou alguém que preenchesse sua necessidade de voltar às origens. O proprietário da Arcobaleno não conhecia pessoas com o sobrenome de Maria e José. Maria estava com o endereço da casa do avô, na Via Appia, a mesma da sorveteria. Número seis. Simples, a sexta casa. Logo aquela, a que faltava. A numeração pulava de cinco para sete. Entre as duas, uma lavoura. E agora, José? Quando chegaram à casa seguinte, onde havia uma pequena placa indicando o sobrenome de Maria e José, o coração deles disparou. Não apenas ele, também disparou um carro, pelo portão dos fundos. Tarde demais, o homem fora visto e teve de retornar, explicando que não era parente, apesar de carregar o mesmo sobrenome e morar no terreno lindeiro àquele da casa do avô. Os parentes estariam no nro. 14, onde se lia outro sobrenome. Ninguém em casa, lá. À medida que o carro avançava, crescia a estranha sensação de que a cidade se fechava, cerrando portas e janelas. De volta à praça, Maria e José foram à igreja, onde uma senhora estava parada ao lado de uma pomba morta. Mau agouro? A mulher ouvira falar daquele sobrenome, mas em outra cidade, não ali.

Quem procura parentes, e não os encontra, vivos pelo menos, vai ao cemitério. Foi exatamente o que fizeram Maria e José. Dirigiram-se ao cemitério, onde encontraram muitos túmulos com o seu sobrenome. Teria havido uma peste que eliminara todos portadores daquele sobrenome? Eis que surge uma senhora que leva o mesmo sobrenome. Viva, por sinal. Carregando um balde com flores. Ouve pacientemente a história dos viajantes à procura dos antepassados e diz não ser parente. O do número sete seria, ela não. Ligou pelo celular para uma tia, que conhecia ou desconhecia todo mundo na cidade, obtendo uma confirmação de não-parentesco. Essa era a única certeza.

Decepcionados, Maria e José foram ao hotel. Não encontraram parentes, mas poderiam ao menos dormir uma noite na terra de onde descendiam. Uma noite de sono no local das suas raízes. Algo lá no íntimo haveria de perceber, mesmo que inconscientemente. Receberam a triste notícia da lotação completa do hotel. Nada de vagas. Apesar de não se verem carros ou pessoas. Perguntaram sobre a existência de vagas no hotel da cidade ao lado. Tudo lotado. O encarregado não precisou consultá-los. Já sabia que estava tudo lotado. O local mais próximo com vagas seria Legnago, longe dali.

Maria e José deixaram a terra dos seus ancestrais como chegaram. O carro retomou a estrada estreita, sem acostamentos. O vento seco levantava uma poeira fina, quase formando uma névoa. O sol provocava miragens no asfalto. Naquela noite dormiram em Legnago, na mesma região, mas distante dali.

Na terra dos ancestrais ocorreria uma reunião, na pizzaria do hotel. Participariam o dono da sorveteria, o sujeito da casa sete, o da casa 14, as senhoras do cemitério e da igreja e o dono do hotel, além de outros, ainda não vistos. O dono da sorveteria trocaria acusações com Luigi, o olheiro, cuja missão era vigiar a estrada e avisar da aproximação de carros estranhos, com placas de outras terras. Luigi dormira a sesta, antes do tempo.


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