12.6.07

Lembranças Psicóticas

Lembranças Psicóticas

Por Paulo Heuser


Aconteceu em Chalôns-sur-Saône, na Borgonha. Chegamos ao hotel de beira de estrada ao cair da noite, pouco antes das 21 horas. Estacionamento vazio, ninguém à vista. Estaria fechado? Sabia tratar-se de um hotel cuja portaria fecha depois de determinado horário, passando ao atendimento automatizado. Apesar do aparente abandono, a porta abriu-se. Entrei. Meu boa-noite foi respondido pelo resmungo de boca cheia de alguém que jantava, na sala ao lado. Veio mastigando, com o guardanapo ainda enfiado no colarinho. Esfregando as mãos, engoliu, depois sorriu. Sim, havia quarto vago. Todos - pensei cá comigo. Jurei ouvir uma voz abafada de mulher, idosa, vinda da sala de onde ele saíra. Murmurava que não queria... estranhos, seria isso? O chamou de Norton?

Norton perguntou sobre o jantar. Apontou para as máquinas que preparariam o melhor jantar que um autêntico chef de cuisine mecânico poderia preparar, por apenas quatro euros. Poupamos as moedas e apelamos para os sandubas comprados com o cru da Borgonha. A máquina do chef parecia torcer o nariz para as máquinas de refrigerantes e vomititos, ao lado - Le petit vomitite avec cocá-colá.

Esse sujeito me era familiar. Já o vira antes, com certeza. Alias, não só ele, tudo parecia muito familiar, autêntico déjà vu. Dos mais autênticos, pois estávamos na França.

Feita a burocracia, chegamos ao quarto, finalmente. Espartanamente suficiente. Ficamos na extremidade do corredor, o que aumentou a sensação de isolamento. Norton estava a 100 metros de nós, três andares abaixo. Por que nos colocara no terceiro andar de um hotel vazio e sem elevador? O calor sufocante exigiu que ligássemos o ar-condicionado. Aparelho muito silencioso, justiça seja feita. Pena que não funcionava. Saía apenas um ventinho morno. Tentei daqui, tentei dali, e nada. Não saía ar frio. Não houve solução, senão percorrer o longo corredor e descer os lances de escada, atrás do Norton. Cheguei à portaria vazia. Apenas o chef de cuisine automático e seus acompanhantes exóticos estavam parados na entrada. Reparei que havia vomititos sabor de pizza com molho de churrasco. No balcão, tentei um ãmr-ãmr, caprichando no sotaque. Nada. Bati no balcão, assoviei, bati palmas, no melhor estilo “Seu Norton está?”, como eu fazia na infância, quando ia comprar ovos na casa da Dona Ata. Nada. Talvez as palmas sem sotaque não surtissem efeito. Será que o Norton fora embora a pé? Não havia outro carro, quando chegamos, e não parecia haver linha de ônibus que passasse por ali. Norton deveria estar por ali, mas onde? De onde o conhecia? Sem resposta a nenhuma das questões, voltei ao quarto. No caminho, passei por um quarto que não tinha número na porta. Era uma porta lisa. Encostei o ouvido nela. Pude ouvir vozes, havia alguém lá dentro. Uma parecia ser a voz do Norton, a outra, da velha.

Bati de leve, na porta. Bati com mais vontade. Sem resposta, fiz aquilo que não deveríamos fazer, mas fazemos. Abri um pouco a porta. Em meio à penumbra, consegui ver a silhueta do Norton, sentado ao pé da cama. Falava algo à velha deitada. Envergonhado, fechei novamente a porta, sem fazer ruído algum.

Já que estávamos sozinhos mesmo, abri a janela e a porta, deixando o vento passar pelo quarto. Norton não viria até ali. Nada como um banho, antes de me deitar. Fechei a cortina de plástico e me ensaboava, enquanto pensava de onde conheceria o Norton. A lembrança me caiu sobre a cabeça como um piano de cauda cai sobre uma cristaleira. Não era Norton! Era Norman - Norman Bates! Estávamos no Bates Motel! E eu estava no banho...


E-mail: prheuser@gmail.com

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2 Comments:

At quarta-feira, 13 junho, 2007, Blogger José Elesbán said...

Rá, rá, rá, ...
Estou até ouvindo os sons agudos da partitura que acompanha a cena.
Por outro lado, se esta crônica não foi psicografada, é sinal que sobreviveste para contá-la.

[]

 
At quinta-feira, 14 junho, 2007, Blogger Paulo Roberto Heuser said...

Bem, Zé. Me safei por não ser a Janet Leigh ;)

 

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