19.6.07

A fé cega enxerga!

A fé cega enxerga!

Por Paulo Heuser


Alguém me mandou matérias digitalizadas de edições de O Cruzeiro, de 1964. Não há como não lê-las. Ou melhor, não há como parar de lê-las. As colunas do jornalista David Nasser são realmente inacreditáveis. Só lendo mesmo. Entretanto, a que mais me chamou a atenção é uma matéria escrita por dois Josés, um Pinto, outro Souza, na edição de 13 de junho de 1964, intitulada Ouro para o bem do Brasil – São Paulo repete 32.

Os Diários Associados criaram a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, um dos movimentos dos “Legionários da Democracia”. Recolheram 400 quilos de ouro e meio bilhão de cruzeiros, apenas em São Paulo. Não sei quanto isso importa hoje, mas, pelo me recordo da época, com cinco cruzeiros se compravam um sorvete de duas bolas e um ingresso da matinée do cinema. O Governador Adhemar de Barros doou seu salário, 400 mil cruzeiros, à campanha. Ou seja, arrecadaram 1.250 salários do governador, apenas em dinheiro. Suficientes para a compra de milhões de sorvetes de duas bolas. E para se passar o resto da vida dentro do cinema. Muita gente doou anéis de ouro, pulseiras e outros objetos. Recebiam uma aliança, em troca, com os dizeres: “Legionários da Democracia”.

Muitas empresas aderiram à campanha, obviamente esperando algum retorno, mesmo que apenas o publicitário. Contudo, mais de 100.000 pessoas, segundo a matéria, teriam doado jóias ou dinheiro. Inclusive muita gente modesta. Sacrificaram-se pela Pátria. Na Argentina, durante a Guerra das Malvinas, fizeram algo semelhante. Chamaram o povo a pagar a conta de uma guerra que não era deles.

Essa matéria me levou ao passado, quando um colega de colégio me mostrou, inflado de orgulho, uma aliança de metal onde se lia: “Doei ouro pelo Brasil”, ou algo parecido. Havia uma grande competição por símbolos de prestígio entre a meninada, e aquele era um trunfo muito grande. Tão grande quanto fora o alfinete de lapela da campanha de Jânio Quadros, uma vassourinha dourada. Lembro-me de ter corrido para casa implorando para que meus pais também doassem alguma coisa.

Aí vem a seguinte pergunta: quem aqui hoje, em sã consciência, doaria jóias ou dinheiro à Pátria? Patriotismo é devoção à Pátria. E aquele foi um ato de devoção, pelo menos da parte dos doadores sem interesse direto. Havia um sentimento patriótico, portanto. Sentimento que foi substituído pela desconfiança generalizada, nas décadas seguintes, provocada pelos governos. Com a rapinagem grassando, os bolsos foram se fechando. Foram-se os anéis e os dedos. Nem brasileiros, nem argentinos, ninguém mais cairia nessa. Patriotismo exige fé, quase cega. Não o patriotismo esportivo, de Copa do Mundo, sazonal como o evento. A fé cega começa a enxergar, após muitos anos de discursos e promessas não cumpridas. Hoje a fé está restrita à religião. A fé cega nas demais instituições perdeu a venda, e até deixou de usar óculos. Lê até a última linha - Aquela bem pequenina.
pauloheuser.blogspot.com

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