30.10.08

484 - A classe média XVI – Festum omnium sanctorum

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A classe média XVI – Festum omnium sanctorum

Por Paulo Heuser


A chegada do Estranho foi surpresa, desta vez. Chegou sem avisar, pois o telefone do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos esteve novamente mudo. E surdo, a bem da verdade. O frenesi atual ficava por conta da beata Dona Clotilde, que preparava a chegada do Dia de Finados seguindo o de Todos os Santos. Padre Antão já fugia, quando a via chegar, pois não agüentava mais a tagarelice, principalmente depois que ela teve a idéia de organizar o tal de Necrotur, uma espécie de trilha no cemitério.

Padre Antão fugia pelos fundos da igreja quando passou o jipe do MINLE – Ministério das Línguas Estrangeiras. Além do Estranho, estavam a bordo um sujeito de terno azul-marinho e um jovem casal. Antes de se dirigir ao 12 Irmãos, sede do progressista Município do Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média não-estatística do IBGE, Padre Antão badalou o sino para chamar Linoberto, que se encontrava na roça.

O Estranho cumprimentou a todos e lhes apresentou os estranhos recém-chegados.

- Apresento-lhes o Secretário Nacional Para Assuntos Culturais Norte-Americanos, Mr. Jefferson Silva, e os estagiários em Cultura Neocéltica, Ms. Peggy-Anne Santos e Mr. John Roy Silveira. Eles estão difundindo o Halloween, e o Lado de Cá do Cinamomo é o último local a ser aculturado.

O recém-chegado Linoberto reagiu:

- Aculturado? O que você quer dizer com isso?

Mr. Silva interveio e tomou a palavra:

- Nós participarr do Programa de Aculturamento do Terceiro Mundo e estarr a implantarr hábitos do Primeiro Mundo nos países em desenvolvimento. Nós começarr com USAID e seguirr com margarina, sucrilhos e agora o Halloween, dia que só não serr mais importante do que o fórjulai – 4 de julho. Nós só desistirr da manteiga de amendoim. Quando nós implantarr o Halloween aqui, vocês ganharr Certificado de Conformidade ISO, SAE, PMP, ANSI, NRA e NBA. Tudo estarr conforme uma Portaria Ministerial.

- Para o que servirá isso? – perguntou o Sétimo, atual prefeito reeleito.

- Oh, com essa certificação os cidadãos do Çainamomo’s This Side poderão obterr vistos VIP para festejarr o Halloween no Disneyworld.

- Ampfhmf... – o Sétimo não conseguia parar de rir baixinho e cochichou para Linoberto: manda-o dizer que o rato roeu as roupas do rei...

Linoberto acreditou que, quanto antes fizessem o que os estranhos queriam, antes deles se livrariam.

- O que vocês desejam?

- Nós fazerr hoje uma demonstração de Noite de Halloween. Mr. Silveira e Ms. Santos trazerr fantasias e pedirr gostosuras. Eles vão baterr nas portas das casas, à noite, gritando a famosa frase: “- travessuras ou gostosuras!”, como vocês vêem nos filmes.

- Quais filmes? – perguntou o Sétimo.

Linoberto interrompeu-o:

- Isso é um evento norte-americano que nada tem a ver com nossa cultura local! Quem tem interesse nisso?

- Ora, a AELI – Associação das Escolas de Língua Inglesa -, é claro! Como vão montarr uma franquia aqui, se o povo não estiverr aculturado? Sem margarina, sucrilhos e Halloween, nada feito. Estão até abrindo mão da manteiga de amendoim, num gesto de extrema boa vontade. – disse Mr. Silva.

- Qual é a graça disso? – perguntou o Sétimo.

- Ora, eles irr fantasiados de bruxos e assustarr as pessoas! – respondeu Mr. Silva.

- Não acho uma boa idéia assustar as pessoas! – disse o Sétimo.

- Deixe-os, assim cumprirão logo a missão, e nos veremos livres... – foi a vez de Linoberto cochichar para o Sétimo e o Padre.

O jovem casal retirou um imenso baú do jipe e foram se vestir na sala ocupada pela Câmara dos Vereadores do Lado de Cá do Cinamomo. Mesmo quem já sabia que eles se fantasiariam de bruxos levou um susto. As fantasias e a maquiagem transformaram-nos completamente. O Sétimo olhou e não gostou. Não achava certo assustarem as pessoas dessa forma. Porém, foi voto vencido. Quando faziam os últimos arranjos, testando a iluminação da abóbora – gentilmente fornecida pela Prefeitura – o Sétimo resolveu praticar a hospitalidade do lugar, que já levara um ou outro ao hospital, longe dali, pois ali não havia nenhum. Enfim, Sétimo serviu-lhes generosas doses da “boa”, por conta do 12 Irmãos. O Estranho já nem estranhava mais a “boa”, habituado que estava. A reação do demais visitante, porém, foi bem diferente.

Mr. Silva tomou um gole da coisa e permaneceu sentado com o olhar fixo na parede. A seguir, tornou-se extremamente rubro, iniciando pelas orelhas e seguindo pelo resto do corpo. A vida deixou o olhar do homem. Dele teria se ouvido apenas um sibilo que deixava escapar entre os lábios cerrados, não fosse pelos urros liberados pelo jovem casal. Ms. Santos foi a primeira a levantar-se e sair correndo porta afora enquanto soltava um uivo de profundo lamento. A combinação da postura inusitada que ela assumiu, com o corpo inclinado para frente, somada à penumbra e a tênue névoa, criou uma atmosfera da charneca dos Baskerville. Ms. Santos personificou o infernal cão que aterrorizou a mansão imaginada por Sir Arthur Conan Doyle. A figura aproximando-se, precedida pelo pavoroso uivo, pegou o crescido terneiro desprevenido. O bicho mugiu desesperadamente e tentou sair do brejo. Ms. Santos caiu de cara na lama. Quando o bicho conseguiu sair do brejo, deu de frente com Mr. Silveira que vinha em louca corrida e ensaiava um ruído gutural. Novo susto, mútuo dessa vez. Os olhos do crescido terneiro refletiram a luz e brilharam naquele tom de vermelho que os olhos dos animais assumem quando no escuro. Homem e animal cruzaram em debandada, um entrando de cabeça no brejo, outro saindo. Ms. Santos e Mr. Silveira conseguiram sair do outro lado e sentaram-se sobre a relva.

Finalmente refeitos do susto, e da queimação na garganta, eles acharam melhor iniciar a demonstração do Halloween, antes que alguém mais lhes servisse outra bebida como aquela. Viram uma porteira aberta e entraram. A algazarra chamou a atenção do terceiro dos 12 Irmãos que se preparava para dormir, pois já passava das 19 horas. Ele arredou a cortina de bordado branco e vislumbrou a dupla que ensaiava gestos assustadores, completamente compatíveis com sua aparência reforçada pelo banho de lama. O Terceiro não teve dúvida. Com antevéspera de Finados não se brincava. Passou a mão na Morgana, o velho bacamarte que herdou do avô mercenário, e mandou fogo pela janela.

Maria chegou ao 12 Irmãos quando o jipe do MINLE já havia partiu em disparada, na direção da Capital, levando apenas o Estranho e Mr. Silva. No interior do bar-prefeitura, todos rolavam às gargalhadas.

- Onde foi parar o casalzinho? – perguntou Maria.

- Já devem ter cruzado pelo Cinamomo! – respondeu Linoberto, quando conseguiu segurar o riso.

Até a beata Dona Clotilde sacudia-se de tanto rir enquanto tomava um cálice de vinho de missa.
- O que houve com eles? – Maria nada entendia.

- Eles tomaram o primeiro gole da “boa” e foram berrando porta afora, até caírem no brejo. Quase mataram o terneiro de susto. Então, foram assustar o Terceiro, que os recebeu com um tiro de festim da Morgana, deixando-os ainda mais apavorados. Saíram correndo em direção à Capital.

O Terceiro parecia meio constrangido, quando disse:

- Puxa, deveriam ter me avisado de que era brincadeira de americano. Eu ouvi aquele berreiro todo, abri a cortina e dei de cara com aqueles dois que pareciam saídos do inferno. Ainda por cima, a mulher gritava que era uma era uma gostosura e que queria fazer travessura comigo. Eu, hein! Ela era uma bruxa! Mandei fogo, antes que a patroa reclamasse.

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28.10.08

483 - Dos logaritmos e do Natal



Foto: Wikipedia
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Dos logaritmos e do Natal

Por Paulo Heuser


Quem não conheceu as calculadoras, quando estudou, lembra-se da famigerada tábua de logaritmos, que nem tábua era. Parecia-se com um livro recheado com números distribuídos em colunas. O aluno nada entende das explicações do professor, quando o assunto é logaritmos. Então, o que faz? Ora, procura a definição no livro texto e encontra algo como: o logaritmo de base b, maior que zero e diferente de 1, é uma função de domínio e imagem R, bijetora e contínua que retorna o expoente na equação b**n = x. Bem, agora sim, não entede nada mesmo. O que será função? O que raios será um domínio zero-vírgula-mais-aquela coisinha torta? O maior mistério não é como calculá-los, é para o que servem, afinal? A resposta é simples: para cairem nas provas e para ralarem com todo mundo. Somente os nerds acertam as respostas das questões de logaritmos.

Quando os jovens deixam o Ensino Médio e entram na tão sonhada universidade, pensam que se livraram dos logaritmos. Ledo engano! Então, além de calculá-los, deverão compreender para o que servem. Os que estudarem ciências experimentais defrontar-se-ão com a famigerada Estatística, com seus gráficos log-log. Os que forem para o lado das Ciências Econômicas encontrarão o cálculo dos juros compostos, se bem que a 12C dá um jeito nêles. Os mais velhos usaram a tabela financeira.

Eu hoje acredito que muito da dificuldade que os professores encontram para enfiar os logaritmos na cabeça dos alunos advém dos excessos teóricos. Convém usar de certo empirismo inicial. Um exemplo simplifica bastante o entendimento da coisa. Atualmente, se eu fosse professor de Matemática, usaria o exemplo do Presidente se referindo à crise econômica mundial. Para simplificarmos ainda mais o entendimento poderíamos estabelecer marcos no tempo, como os dias.

Dia 1: - Nunca antes na história deste País a economia esteve tão blindada contra a crise que atinge os países que não fizeram a lição de casa. – Grau de pânico = 0,0001.

Dia 2: - Nunca antes na história deste País a economia esteve tão preparada para enfrentar a crise que eventualmente poderá trazer perturbações mínimas. – Grau de pânico = 1.

Dia 3: - Nunca antes na história deste País um governante enfrentou o desafio de tomar medidas rápidas, ainda que meramente preventivas, contra a crise que se avizinha, ainda que de forma tímida. – Grau de pânico = 10000.

Dia 4: – Nunca antes na história deste País um governante enfrentou o colossal e monstruoso desafio de mandar todo mundo comprar presentes de Natal enquanto a vaca vai para o brejo. – Grau de pânico = 100000000.

Dia 5: - Nunca antes na história deste País um governante enfrentou o fantástico, extraordinário e hérculo desafio de ter de dizer ao povo que o Papai Noel é norte-americano e faliu. – Grau de pânico = +∞ (mais-aquela coisinha torta).

O aluno perguntará, então, para o que serve toda essa baboseira, além de provar que o Presidente sabe que o Papai Noel é norte-americano e que ele faliu. Essa é a hora de o professor impôr sua superior sabedoria, sugerindo que os alunos tracem um gráfico da função que tem como abssissas – os X, né! - os dias e ordenadas – os Y, né! - os graus de pânico do Presidente. Os que souberem o que é um gráfico, uma função, e souberem desenhar a curva que representa a função, logo descobrirão que ela é efetivamente uma curva, partindo da origem – o zero, pô! – e subindo muito rápido na direção do mais-aquela coisinha torta. Grande África! – como diriam antes do tempo das calculadoras. O que têm os logaritmos a ver com isso? Empirando mais um pouco, desafiaríamos os alunos a descobrir o grau de pânico do Presidente no sétimo dia. Fácil diriam os nerds. Bastaria procurar o 7 nas abssissas – o X, o X! – verificar onde ele intercepta a curva que representa a função e, Aleluia, encontrar a posição correspondente nas ordenadas – o Y, o Y! Bem, ficaria meio chato encontrar o valor de Y, pois os números que representam o pânico do Presidente crescem meteoricamente, tendendo a mais-aquela coisinha torta. O que fazer se o homem já tem os olhos saltando das órbitas no quinto dia?

Nada de pânico, os logaritmos vieram salvá-los, mesmo os não nerds! Então os alunos pegariam a calculadora e obteriam os logaritmos – base 10 para não complicar. Os logaritmos de 0,0001, 1, 10000 e 100000000 são, respectivamente, -4, 0, 4 e 8, que colocariam nas ordenadas – eu já disse que é nos Y! Espanto, mesmo dos nerds! Teríamos uma reta! Para descobrir o grau de pânico do Presidente no sétimo dia – nenhuma referência à Criação – bastaria procurar o sete nas abssissas – eu já disse que é o X! – e verificar que o valor correspondente nas ordenadas – não falo mais! – é 20. Vinte o quê? Ora, os nerds saberiam que a base 10 elevada ao logaritmo – o 20 – daria 100000000000000000000, ou 1020, como talvez seu professor de Matemática preferisse ver. Ou seja, trocando em miúdos, no sétimo dia o grau de pânico do Presidente seria 1 com 20 zeros, coisa grande prá caramba! Isso explica os olhos saltando das órbitas. Aos que nada entenderam, restará o consolo de saberem que o Bom Velinho virou mendigo que fala inglês.

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27.10.08

482 - Pardon?


Foto: BBC
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Pardon?

Por Paulo Heuser


Os que têm a sorte de percorrer o sul da França certamente ficam impressionados com a beleza da costa mediterrânea, que se estende desde Garavan, na região provençal dos Alpes Marítimos franceses, na Costa Azul, até Cerbère, nos Pirineus Orientais, junto à fronteira catalã da Espanha, na Costa Vermelha. O mar sempre apresenta coloração azul impressionante, ao longo dessa costa, muito ressaltada pelas pedras brancas. O sol completa o espetáculo, desde as agitadas praias orientais, como Nice e Cap Ferrat, até as aldeias de pescadores do extremo ocidental, como Cerbère. Esta se localiza ao lado da região administrativa francesa de Languedoc-Roussillon, célebre berço do Catarismo, seita religiosa que enfrentou a Igreja Católica e teve seu auge no Século XI.

Os cátaros rejeitaram muitos dos dogmas católicos e se recusaram à conversão. Sua doutrina se fundamentava, entre outras coisas, na crença de que o homem surgia do mal, mas poderia salvar-se mediante uma vida de boas ações. Também rejeitaram o poder papal e a discriminação da mulher na religião. Algo de sua doutrina foi incorporada pela Reforma Protestante. O Papa Inocêncio III, de forma nada inocente, promoveu a Cruzada Albigense – de Albi – e logrou a eliminação da heresia cátara, ao longo de 40 anos de perseguições e queima de fiéis na fogueira.

A região de Languedoc produz, desde muito, boa parte dos vinhos de mesa franceses. São os vinhos que os operários franceses consumiam durante as refeições (Midi-vin), elaborados, em sua maioria, a partir das uvas Aramon e Carignan, consideradas viníferas pobres. Os apreciadores dos vinhos finos das regiões de Bordô e da Borgonha torcem o nariz só de ouvir falar dos vinhos de Languedoc. Estes não são vinhos para aqueles que conseguem identificar traços de cerejas silvestres torradas da Tanzânia, no retrogosto, e aroma de bucha do canhão Berta, no buquê. São vinhos menos sofisticados e bem mais baratos que seus vizinhos de Bordô e da Borgonha.

Nos últimos 30 anos, algo mudou naquela região francesa. Muitos produtores de vinhos passaram a apostar nas uvas Cabernet Sauvignon, Syrah, Chardonnay, Viogner e Grenache, consideradas as melhores viníferas. Os resultados logo apareceram, e hoje há grandes vinhos de Languedoc. Alguns receberam mais de 90 pontos na escala da prestigiosa publicação Wine Spectator, que vai de zero a 100. Esta classe de vinhos – com gradação acima de 90 - certamente agrada aos que sabem reconhecer o aroma da bucha do canhão Berta. Contudo, os apreciadores de bons vinhos continuaram a torcer o nariz para a designação de origem da região de Languedoc-Roussillon.

Alguns produtores de Languedoc apelaram para o bom-humor e a criatividade. Criaram um rótulo realmente inusitado, no qual se lê: Vin de Merde – isso mesmo: Vinho de Merda. Tem até uma mosca no rótulo. Foi um sucesso absoluto, ainda mais por apenas sete reais a garrafa. Os cátaros cometem nova heresia. Só que desta vez ninguém vai queimá-los na fogueira.




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26.10.08

481 - Chapéu-de-chuva



Foto: Wikipedia
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Chapéu-de-chuva

Por Paulo Heuser

Talvez não haja objeto tão amado e tão odiado como o guarda-chuva. O barômetro é quem dita a regra, e a regra é: sempre chove quando se deixa o guarda-chuva em casa e sempre faz sol quando se traz o maldito. Desde que o guarda-chuva deixou de ser bem durável, acontece um fenômeno. Surge um exército de vendedores de quarda-chuvas de “dérreal” – dez reais, em cameloniquês -, ao cair das primeiras gotas. Basta um ar-condicionado pingar, e já há alguém berrando para oferecer os modernos, minúsculos e descartáveis: “Tomático o guarda-chuva!” – guarda-chuva automático.

Os equipamentos de “dérreal”, e nada, são a mesma coisa, só que nada é de graça, enquanto aqueles custam – ou será custa? – “dérreal”. O preço varia conforme varia a quantidade de chuva. Um “dérreal” pode sair por “sete real”, se a chuva parar, ou até por “vinte real” se a chuva for muita e os clientes em potencial aparecerem no final do expediente. De qualquer forma, duas coisas permanecem invariáveis: real sempre fica no singular, e o guarda-chuva chama-se “dérreal”, seja qual for o preço pago.

Os “dérreal” devem ser fabricados no mesmo lugar, pois são idênticos, seja aqui, seja na China. Todos têm um botão dourado junto ao cabo que já vem solto de fábrica. O tal do botão serve, em tese, para abrir “tomaticamente” o guarda-chuva. O botão dourado é herança da origem do equipamento. Até bem pouco, acreditava-se que o guarda-chuva teve origem na Mesopotâmia, há 3400 anos. Porém, o Dr. Heinrich Sodbrennen-Brausetabletten, da Universidade da Eritréia, contesta essa versão da história. Ele alega, inicialmente, que na mesopotâmia a chuva é, e era, muito escassa. Assim, os mesopotâmios podem ter inventado o guarda-sol, não o guarda-chuva. Faz sentido. Além do mais, o Dr. Sodbrennen-Brausetabletten – ou Heinz, como prefere ser chamado – encontrou antigos escritos gregos que narram uma estranha história envolvendo um tal de Zeus, deus que costumava dar presentes de grego. Também faz sentido, pois ele era efetivamente grego, e ainda não havia lojas de 1,99 talentos que vendessem artigos chineses.

Os textos desenterrados pelo Heinz contam que Zeus mandou sua filha Pandora se casar com Epimeteu, irmão de Prometeu – aquele cujo fígado foi devorado pelo abutre Éton. Pandora trouxe uma caixa – as mulheres sempre as trazem –, e Epitemeu não resistiu à tentação de ver o que havia lá dentro. Apertou o botão dourado e abriu a caixa da Pandora, que continha toda sorte de desgraças, como o trabalho, a doença, a loucura, a mentira e a paixão. Espalhada a desgraça, restou apenas a esperança, no fundo da caixa.

O “tomático” e a caixa da Pandora têm algo em comum: o botão dourado. Melhor não pressioná-lo, pois nunca se sabe o que pode acontecer. Porém, há diferenças. Na caixa da Pandora restou a esperança. No “tomático” não há esperança. Mais, Pandora tentou livrar-se da caixa, e não teve sucesso. O “tomático” vai para o lixo, de onde nunca deveria ter saído.

Resta falar do chapéu-de-chuva. Um feio dia estive na Bahia. Sim, era um feio dia, pois chovia há dias. Descobri que na Bahia havia muito sol acima das nuvens. Entrei numa daquelas lojas que vendem desde o berimbau até o colchão de coco anão, e pedi um guarda-chuva. Acontecerem duas coisas. Primeiro, o Luis Antunes – o primeiro português a não se chamar Manuel – desatou a rir, pois os brasileiros vurros – burros? - chamavam o chapéu-de-chuva de guarda-chuva. Não preciso lembrar a reação dele quando embarcou comigo no autocarro, que eu desastradamente chamei de ônibus. Poderia ser pior, pois em Angola embarcaríamos no machimbombo. Segundo, o vendedor me dizia que não havia guarda-chuvas à venda na Bahia, pois lá sempre faria sol. Então descobri por que os turistas norte-americanos carregam berimbaus pela rua, quando chove. Tive que levar um berimbau para convencer o sujeito a me vender um dos guarda-chuvas que escondia em meio às carrancas esculpidas em madeira. O Luis Antunes continuava a rir. Restou a sorte de não embarcar no machimbombo.

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22.10.08

480 - A mais antiga irmandade

Os Imigrantes, Antonio Rocco, 1910
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A mais antiga das irmandades

Por Paulo Heuser


As irmandades secretas permeiam a sociedade desde muito tempo atrás. Algumas foram tão secretas, que delas nunca ouvimos falar e talvez nunca ouçamos, pois pereceram no anonimato. Foram-se sem deixar vestígio nem traço. Outras dessas irmandades vêm crescendo e, por vezes, deixam ver algo de si. É difícil estimar o número de sociedades secretas, pelo simples fato de serem secretas. Podem-se contar as mais proeminentes, ou seja, as não tão secretas. Mesmo assim é tarefa árdua, já que algumas irmandades são derivativas de outras. A AIAC - Antiga Irmandade dos Adoradores de Chucrute – surgiu de uma dissidência da AIAR – Antiga Irmandade dos Adoradores de Repolho.

Muito mais difícil do que quantificar essas irmandades é datá-las. Qual será a irmandade mais antiga? Esta é briga de foice. As irmandades secretas tendem a intitular-se a mais antiga. Muitas são antigas, por certo, perdendo-se sua origem na poeira dos tempos. A Grande Fraternidade Branca relaciona Buda e Jesus entre seus seguidores. Há sociedades secretas para qualquer tema e qualquer gosto. Muitas são voltadas às atividades socialmente aceitáveis, outras não. Nessas últimas inclui-se a sociedade racista Ku Klux Klan, cujos membros preferem o anonimato por razões óbvias.

Muitas irmandades secretas originaram-se da religião. Não foi o Cristianismo uma irmandade secreta? O anonimato de muitas irmandades deve-se à perseguição, seja religiosa, seja política. Daí vem algo da associação das irmandades secretas com a conspiração. O Círculo Petrashevski foi um grupo de discussão literária, de São Petersburgo, perseguido pelo czar Nicolau I, pelas suas idéias progressistas. Os membros que não foram fuzilados permaneceram incógnitos.

Na hoje Itália, Giuseppe Mazzini (1805-1872) integrou irmandades como a Carbonária, sociedade secreta de origem napolitana que combateu o domínio napoleônico e lutou pela unificação italiana. As idéias republicanas levaram Mazzini a fundar a Jovem Itália, outra irmandade política. Outro Giuseppe, o Garibaldi, também integrou a Carbonária. O “herói de dois mundos – Brasil e Itália” - lutou ao lado de Mazzini pela unificação italiana.

Qual será a irmandade mais antiga? Muitas dessas sociedades têm algo em comum: teriam se originado no antigo Egito. Se forem secretas, como sabê-lo? No entanto, há uma sociedade que transcende tempo, religião e política. Ela se fez presente ao longo da história da humanidade e exerce enorme poder. Vem sofrendo ataques de toda sorte. Seus membros reúnem-se sem alarde - pelo menos fora da Itália -, razão pela qual se pode considerá-la secreta. Essa sociedade é a família.


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21.10.08

479 - Trancas para quebra-vento

Foto: Paulo Heuser
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Trancas para quebra-vento

Por Paulo Heuser


Pobre do Torto. Não sei se ele já nasceu torto ou foi entortando aos poucos. Mas, desde que eu me lembro por gente, o Torto anda torto. Ele marcha pela rua num estranho passo de ganso unilateral. O resultado é muito curioso. A meninada corria atrás dele, em outros tempos, imitando o passo. Vinha o Torro, na frente, capitaneando aquele séquito de falsos tortinhos. Hoje o Torto anda sozinho. A meninada não faz mais esse tipo de traquinagem, talvez por medo, talvez por não acharem mais graça. O Torto anda bem-vestido, sempre usando gravata sobre camisa impecavelmente branca. As calças sociais e os sapatos remetem aos executivos dos anos 60. Dizem que o Torto mora com uma tia velha. Alguém precisa cuidar dele, pois não é somente o andar dele que é torto. Algo também não funciona bem na cachola dele. Ele é diferente. Não sei o que o Torto fazia antigamente, mas sei que hoje ele vende trancas para quebra-vento dos carros. Fuscas, Brasílias e Opalas. Passa o dia marchando pela rua com o mostruário de trancas. Não consegue vendê-las, porém se ocupa. O pensamento do Torto é alternativo, digamos assim, mas ninguém pode chamá-lo de pouco inteligente. Ele é apenas diferente, torto.

Pois o Torto vinha marchando torto quando viu uma multidão parada em frente a uma vitrina. Assistiam pela TV ao discurso do Presidente, que informava ao povo da necessidade de compra de parte das empresas em dificuldades econômicas devido à crise da bolsa. O Torto parou e esticou o pescoço, tentando ver algo sobre aquela massa. Um a um foram dando lugar, quando viram que era o Torto. Os tortos têm certos privilégios. Logo o Torto se viu cara a cara com o Presidente.

- Essa crise é momentânea e em nada afetará nosso País, pois fizemos a lição de casa. Não há o menor motivo para preocupação, já que nada temos a ver com a turbulência dos mercados externos. Porém, apenas como medida de extrema precaução contra uma muito pouco provável interferência externa na nossa economia, vamos comprar parte das empresas em dificuldades. A platéia dividiu-se como sempre. Metade do pessoal protestou contra o uso do dinheiro público para salvar empresas privadas, e o restante apoiou o que consideraram medida imprescindível para preservar a economia nacional. Uma mulher mais exaltada distribuía bolsadas nos adversários ideológicos. Foi a bolsa digladiando no eterno conflito entre o capital e o trabalho.

O Torto permaneceu lá. Desligou-se do que ocorria ao redor. Não chegou a perceber a chegada do choque, que dispersou a multidão. Ninguém bateu no Torto porque torto tem certos privilégios. Então, do nada, o Torto falou a primeira frase da sua vida:

- Ah, que pena! Assim o Governo não poderá mais se dedicar tanto àquilo que sabe fazer tão bem: cuidar de saúde, segurança e educação.


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19.10.08

478 - O Enigma de Mesquita-Medeiros

Kaspar Hauser
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O enigma de Mesquita-Medeiros

Por Paulo Heuser


Ansbach e Nuremberg são cidades da Baviera, Alemanha, que têm mais em comum do que pertencerem à região da Média Francônia. Uma pequena, outra maior, elas estão recheadas com muralhas e prédios em arquitetura enxaimel (Fachwerk). Ao andar pelas suas ruas estreitas tem-se a impressão de percorrer as vias de um conto de fadas. O que as liga mais é o fato de serem berço e túmulo de Kaspar Hauser. Quem é ele? Bem, isso não interessa. O que interessa é que lá surgiu o Enigma de Kaspar Hauser. Um enigma que leva um nome sonoro e composto, como convém a qualquer enigma.

Lá no início da Rua da Praia fica a Praça Brigadeiro Sampaio. Quem foi o Brigadeiro Sampaio? Ora, ao pesquisar sobre Kaspar Hauser aproveite para descobrir quem foi o Brigadeiro Sampaio. Naquela praça há uma árvore enorme, ao lado do quartel da Marinha, que apresenta raízes aéreas de mais de dois metros de altura. Creio que é um Ficus qualquer-coisa. Há uma irmã dela, porém menor, ao lado da passarela do Parcão de Moinhos de Vento. Eu já havia ouvido falar de um enigma envolvendo a tal da árvore da Brigadeiro Sampaio. O folclore local relata a ocorrência de estranhas aparições junto à árvore. Um homem desapareceria, ocasionalmente, em meio às raízes. Há também relatos de um vulto que surge do meio das raízes e se perde em meio aos freqüentadores da praça. Alguns freqüentadores contumazes do lugar dizem que alguém mora entre as raízes do Ficus qualquer-coisa.

Na verdade, isso nunca foi problema meu, pois não moro nem na Baviera, nem na Rua da Praia. Porém, hoje deixei o carro na Siqueira Campos, entre os quartéis da marinha e do exército, e fui caminhar na orla do Guaiba. Não pude deixar de reparar na tal da Ficus qualquer-coisa. O conjunto de raízes ocupa vários metros quadrados. Tudo teria terminado como termina qualquer domingo maravilhoso e ensolarado, não fosse pela aparição do homem do Ficus qualquer-coisa. Eu retornava ao carro quando percebi o vulto de um homem que entrava em meio às raízes da árvore. Eu não resisti à tentação e dei a volta em torno das raízes. Nada do homem. Teria ele saído pelo outro lado? Tentei pegá-lo no contrapé e dei a volta pelo outro lado. Nada, ninguém, apenas raízes, Perplexo dei mais duas voltas na árvore, nada encontrando.

- Senhor... – disse uma voz atrás de mim.

Percebi um senhor de idade que levava um cão a passear. Ele parecia divertir-se com minha perplexidade.

- Aquele que sumiu em meio às raízes é o Seu João. Ele deve caminhar meia hora ao redor da praça, por recomendação médica, mas tem a bexiga meio frouxa. Como mora no terceiro andar de um edifício cujo elevador não funciona desde 1948, ele deságua na praça. Some no meio das raízes.

De fato, quando o homem terminou de falar, Seu João saiu do meio das raízes, visivelmente aliviado, e retomou sua marcha. O Enigma do Seu João seria muito comum, muito coisa nenhuma. Não sei o sobrenome dele, portanto resolvi batizá-lo Mesquita-Medeiros, nome sonoro e composto, como convém a qualquer enigma.

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16.10.08

477 - A classe média XV - Um minuto

Foto: Wikipedia
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A classe média XV – Um minuto

Por Paulo Heuser


A chuva constante não dava trégua a Linoberto, e ele passou boa parte da manhã desatolando o crescido terneiro, que insistia em voltar ao brejo. Por outro lado, não havia como trabalhar na roça, pois estava tudo empapado. Nesses dias havia uma quietude anormal no emergente município do Lado de Cá do Cinamomo – o último bastião da classe média não-estatística do IBGE. Os únicos sons que eventualmente quebravam o silêncio vinham do sino da igreja, do veloz Renault Dauphine da beata Dona Clotilde ou dos mugidos extemporâneos do atolado e crescido terneiro. Os habitantes dedicavam-se às lides da casa e ao trato dos animais. Com aquela chuva, tanto os animais quanto as pessoas recolhiam-se ao aconchego de casa. Das chaminés saíam rolos de fumo, indicando que, ou acederam o fogão à lenha, ou alguém acendeu o palheiro de fumo em corda.

Linoberto largou o teimoso e crescido terneiro e foi até o Bar, Churrascaria e Borracharia 12 Irmãos, onde já se encontravam o Padre Antão e os 11 irmãos vivos do 12 Irmãos. O Sétimo – o prefeito – recebera ligação da Capital informando da chegada iminente do Estranho – o único representante do Governo capaz de encontrar o Lado de Cá do Cinamomo. A chegada estava prevista para as 11 horas, porém já era meio-dia e nada do homem, que certamente ficara preso em algum atoleiro na estrada infame. O grupo almoçou por ali mesmo. Foi somente às 14h27 que o jipe do MinCaC – Ministério dos Call Centers apareceu espalhando barro. Não só o jipe estava embarrado, condição estendida aos tripulantes. O Estranho veio acompanhado do Secretário Nacional de Temporização do Atendimento – Sr. Fernando Orlando.

Após as apresentações iniciais, o Sétimo serviu o resto do almoço aos visitantes. O Fernando Orlando olhava desconfiado para o prato e perguntou sobre aquele cilindro recoberto com pequenas pastilhas amarelas.

- É milho. – respondeu-lhe o Sétimo.

- Ah, bem que achei estas coisinhas amarelas familiares, mas o que é o cilindro do meio?

- É um sabugo! –respondeu-lhe Linoberto, enquanto o Sétimo tentava descobrir o que seria um cilindro.

- E para que serve?

O Sétimo já ia discorrer sobre as múltiplas utilidades do sabugo, mas foi interrompido pelo Linoberto.

- Dá suporte ao milho, digamos assim.

- Oh, que coisa inteligente! – assombrou-se Fernando Orlando.

Após mais algumas singelas explicações a respeito daqueles grãos pretos servidos com o arroz, o homem usou o enorme guardanapo xadrez que cobria a mesa e revelou o motivo da sua visita:

- O Ministro assinou portaria limitando o tempo de acesso aos call centers em um minuto! Estamos fazendo a divulgação da portaria porque soubemos que o Diário Oficial não chega aqui.

- Chega, trazido pelo rapaz que leva o leite à Capital. – disse o Sétimo, e completou: - Mas é muito chato. Está cheio de coisas miúdas que sempre dizem a mesma coisa.

- Bem, de qualquer forma, vocês terão de estar adaptando seus call centers à nova realidade. Além do tempo, deverão estar observando outras normativas sobre os menus de opções e o atendimento humano!

- Isso é um refrigerante? – perguntou o Sétimo.

Do brejo veio um longo mugido do crescido e atolado terneiro, talvez de frustração, talvez de imobilização.

Linoberto esperou o fim do longo mugido e falou:

- Não temos call centers do Lado de Cá do Cinamomo.

- Percebo. Vocês estão chamando os call centers de CACs. – disse Fernando Orlando.

- Não, nós não temos nenhum tipo de atendimento por telefone.

- Impossível! Como vocês estão pedindo pizzas? – o homem não cabia no seu gerúndico espanto.

- Nós não pedimos pizzas, as fazemos em casa.

- Como vocês movimentam seus cartões de crédito?

- Aqui não tem cartão de crédito. – disse o Sétimo – Aqui chamamos de caderneta do armazém. Como o único armazém é este, o caderno é meu. Quando querem movimentar, eu escrevo.

- E os serviços das operadoras de telefonia? – o homem já demonstrava nervosismo.

- Aqui só há esse telefone do balcão do 12 Irmãos. Quando estraga, o que acontece o tempo todo, o rapaz do leite pede o conserto lá na Capital. – disse o Sétimo.

Fernando já estava demonstrando irritação por não conseguir finalizar sua missão de enquadramento do Lado de Cá do Cinamomo na nova portaria ministerial.

- Devo lembrá-los de que a multa para quem ultrapassar o minuto poderá chegar a um milhão de reais!

- Certo, porém não há o que enquadrar nessa portaria. – alegou Linoberto.

- Lamento, mas uma portaria é uma portaria e deve ser aplicada!

- Entendi. A portaria é besta, mas é uma portaria. – disse Linoberto.

Maria ouvia o mugido ao longe, quando Linoberto chegou a casa. Ela ouvira falar da reunião no 12 Irmãos e esperava notícias.

- E então, Lino? Corremos algum risco com a tal de portaria?

- Corríamos. Agora, não mais.

- O que houve?

- Eu perguntei ao sujeito do Ministério e ao Estranho sobre a fiscalização da nova portaria. Ele disse que qualquer cidadão poderá denunciar a violação da portaria ao SNDC, ao MP, ao Procon ou à DP.

- Nossa, quanta sigla! E daí, Lino?

- Eu lhes perguntei sobre as penalidades aplicáveis àqueles órgãos, caso não atendam em um minuto.

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15.10.08

476 - Um mundo melhor

Foto: Paulo Heuser
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Um mundo melhor

Por Paulo Heuser


Por que viajar? Por que conhecer outros lugares? Há um sem número de razões, com certeza. Alguns fogem de algo ou de alguém. Outros viajam porque fogem da rotina. Pode-se viajar também através das páginas de um bom livro. Por que não comprar o livro durante uma viagem? Ah, que saudade dos livros que eu lia na rede. Rede que balouçava entre árvores defronte a casa sem muros nem cercas. Os únicos invasores eventuais eram o vento e a chuva.

À pergunta sobre as razões que me levaram a viajar, respondo sem pestanejar: paz e segurança. Se eu não viajar a Bogotá, Caracas, Nova Orleans ou ao Rio de Janeiro, estarei mais seguro do que estou aqui. Isso torna muito fácil encontrar um destino mais seguro. Bagdá é um lugar a se considerar. Mais segura do que as anteriores, Bagdá apresenta muitas atrações, desde a tecelagem persa até a explosão da fila do pão. A sensação de caminhar sem preocupação extremada é impagável. Ver uma senhora idosa sacando dinheiro num caixa automático, em plena rua, durante a noite, é ainda mais impagável. Esquecemo-nos dessas coisas que deveriam parecer naturais.

Embarquei nesta viagem por acaso e não me arrependi. Há muito eu não experimentava sensações tão boas. No princípio permaneci cético, pois os anos de desconfiança remeteram-me à cautela. Senti-me como devem ter se sentido os habitantes das cidades européias no final das grandes guerras. Aos poucos saí à luz. Agora me deixo levar pela deliciosa sensação de andar à noite pela cidade limpa. Cruzo pelos passantes que me cumprimentam, apesar de não me conhecerem pessoalmente. É ótima a sensação de ser notado e poder notar os demais sem medo. Não se faz necessária muita cordialidade, basta o reconhecimento de que há outras pessoas. Adentro restaurante sob uma chuva de cumprimentos, não apenas dos garçons, mas também dos freqüentadores. Alguns até sorriem! O jardim do restaurante dá para a rua, sem cercas, sem telas e sem pedintes. Que mundo é este, que só agora reencontro? Eu vivi nele, faz muito. Porém faz tanto, que eu já havia me esquecido dele.

Atravesso a rua na faixa para pedestres, e os carros param! A noite vai, e os carros param no sinal, mesmo não havendo outros. Aliás, não há tantos carros assim, pois o pessoal volta para casa de metrô. O problema dessas viagens é que elas terminam, sejam curtas ou longas. Aproveito cada minuto desta viagem, enquanto não termina o horário de propaganda eleitoral gratuita. Quando ele terminar, eu voltarei ao miserável mundo real do hiato intereleitoral.

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13.10.08

475 - Gritos no silêncio



Foto: Wikipedia
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Gritos no silêncio

Por Paulo Heuser


As salas de espera são seu habitat. Eles ou elas atacam nos locais onde reina algum silêncio. São os gritadores. Eles não têm controle sobre o volume da voz. Só têm duas intensidades: estupidamente alto ou espantosamente alto.

Eu tenho azar, no que diz respeito às salas de espera. Chego lá, dez minutos antes do horário marcado e espero, espero e espero. Salas de espera servem para isso, senão seriam salas de recepção ou de atendimento. O único que não espera na sala de espera é o homem dos brindes do laboratório farmacêutico. Ele chega e vai entrando, após um rápido papo com a recepcionista. Os extintos vendedores de enciclopédia gozavam do mesmo privilégio, pois eram confundidos com os homens do laboratório, pois usavam pastas muito semelhantes.

Se eu ficasse esperando com pessoas normais, tudo bem. O problema é que sempre surge um gritador. Os mais experientes chegam com pelo menos uma hora de antecedência, pois gostam da companhia das outras pessoas: os ouvintes. Na semana passada foi a mesma coisa de sempre. Cheguei um pouco antes do horário marcado e me sentei numa poltrona que pareceu confortável. O silêncio já fazia efeito, pois minha cabeça começou a pender para o lado. Eu passava de beta para alfa, quando a gritadora entrou na sala de espera. O boa tarde ecoou pelo prédio todo. Uma criança que acompanhava a mãe escondeu-se sob um banco e pôs-se a chorar. Se houvesse cães, teriam ganido e fugido. O grito me arrancou do quase-alfa e me trouxe a pavorosa realidade. Ela não era vendedora de remédios e deveria esperar como todos os demais.

- Vim tentar um horário mais cedo, queridinha! – trovejou a gritadora – Se não tiver, não faz mal. Eu espero!

A gritadora mergulhou numa Caras velha e sebenta. O hino de um time de futebol anunciou que alguém queria falar com a gritadora ao celular.

- Fala mocréia! – novo trovão oral.

- Quem fala? – ou seria quem ruge?

- É a Telminha, cê tá brincando, não tá?

- Engano? – a gritadora olhou para o aparelho enquanto gritou:

- Mal-amada! Desligou, só porque foi engano!

Refeita da ligação ela olhou em torno à procura de uma vítima. Fingi que dormia. Com o canto do olho fechado consegui ver que a gritadora voltou à Caras. Foi passando as páginas enquanto molhava os dedos na língua. Novo rugido:

- O quê? A Mulher Rabanete se casou novamente? Cê viu só? – dando um cutucão com o cotovelo na mulher sentada ao lado. Esta ignorou a provocação. A gritadora ignorou a indiferença e voltou à carga com seu assunto preferido: doença.

- Menina, eu vim da casa da comadre que pegou frieira na boca. Coisa feia! Ela não pode nem falar. Eu falei para ela chupar abacaxi.

A sala de espera continuou em silêncio. Ninguém mordeu a isca. Porém, ela não desistiu, já que um gritador nunca desiste, nem com o sugador de saliva colocado na boca. A Telminha só reduziu o volume uma vez na vida, quando o dentista colocou uma forma com molde de gesso na boca. Não que ele precisasse do molde. Precisava de alguns segundos de silêncio. Telminha continuou virando as páginas enquanto narrava a revista:

- Aqui não diz, mas eu soube de fonte segura que a Narinha pegou lúpus. Cê sabe o que é lúpus? – novo cutucão na vizinha de banco. Como não obteve resposta, mudou de assunto.

- Amanhã estou embarcando para Macapá. Tem um sujeito lá que quer que eu case com ele. Ele só funciona com aqueles remédios, mas se ele pode comprá-los, que mal faz?

Os gritos da mulher tornaram-se insuportáveis. Ora narrava a Caras, ora complementava com as doenças sei lá de quem. Todos que ela conhecia estavam doentes. Foi demais para mim. Eu não agüentava mais aquela gritaria. Com um megafone na mão essa mulher poderia se tornar uma arma sindical de dobrar qualquer patrão. Resolvi desistir da consulta e voltar noutro dia.

- Será que o Dr. Sérgio teria horário disponível amanhã? – perguntei à recepcionista.

A gritadora reagiu de pronto:

- Dr. Sérgio? Aqui não é o instituto de beleza da Ilse?

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12.10.08

474 - A torta de morangos

Foto: frenteeverso.blogspot.com
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A torta de morangos

Por Paulo Heuser


Parei de fumar faz uns 12 anos, talvez mais. Nos primeiros anos se contam horas, dias, semanas, meses e anos. Depois dos dez, se perde a conta. O gosto do último cigarro permanece na lembrança, mas a data se vai. O fumante de hoje, ou é um destemido, ou é um europeu. Os d’além mar ignoram toda e qualquer associação do fumo com as doenças relacionadas a ele. Tem-se a impressão de que os bebês já nascem fumando na Espanha. O cigarro é o companheiro inseparável dos espanhóis, desde antes do café da manhã. Eles fumam dormindo.

Algo que causa espanto é a proibição do fumo nos pubs ingleses. Os ilhéus adoram aquela atmosfera de fumaça de cigarros com cerveja ale morna. Eles são obrigados a fumar na rua, o que pode esfriar a cerveja. Pior do que cerveja ale fria, só mesmo a cerveja ale com espuma - Argh! O clima lá não ajuda em nada. Fica difícil fumar no frio.

Os chineses salvaram os ingleses. A colônia salva o dominador. Bem, parece mais um tipo de vingança, mas vá lá, que seja uma salvação. Os chineses inventaram o cigarro eletrônico, uma maravilha tecnológica que permite aos ingleses fumarem em locais fechados sem serem sentenciados à Torre de Londres. Essa é a parte boa. Se há uma ruim, não sei, porém não há como não ficarem preocupados com o uso do tal do cigarro chinês. O kit básico do cigarro eletrônico traz duas baterias recarregáveis, um cabo de alimentação, um carregador de baterias e cinco cartuchos de nicotina, além do próprio cigarro, é claro. Tudo isso por apenas 340 reais. Barbadinha entregue em casa. O kit dá outro prazer ao ato de fumar. Basta carregar as baterias, montá-las no chassi do cigarro, colocar o cartucho de nicotina e, bang, fumar. A parafernália elétrica dá cargas de nicotina à vitima, digo, ao fumante, sem poluir o ambiente. O chupador eletrônico de nicotina não precisa mais refugiar-se nos fumódromos dos aeroportos. O de Barajas, em Madri, dá dó. Agora, graças aos fabulosos cigarros eletrônicos chineses, os fumantes podem desfilar por todo aeroporto, sem serem presos, enquanto chupam suas canetas bic cibernéticas. Uma maravilha. Os fumantes reinserem-se no convívio social.

Hoje, em meio a toda essa onda de simulacros de produtos, como a margarina sabor manteiga, o cigarro sabor sabe-se lá do que, e tantas outras coisas, tive uma enorme surpresa. Bandeei-me na direção do Triunfo. Caí numa churrascaria que servia carne sabor carne e polenta sabor polenta. Tudo muito bom. Havia uma salada de um feijão olho de cabra que causou espanto. O tal do feijão apresenta grãos que lembram azeitonas pretas. Entre as sobremesas havia uma torta de morangos, nata e merengue que convidava à repetição.

A menina que servia bebidas às mesas deve ter notado nossa satisfação ao provarmos da torta. Parou ao lado da nossa mesa e nos perguntou, meio tímida:

- Vocês gostaram da torta?

- Adoramos! – respondemos.

- Eu fiz essa torta... – disse ela, constrangida.

Que dia! Provei da torta feita por alguém, em carne e osso. Uma pessoa fez aquela torta!

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7.10.08

473 - Vocês mantêm convênios?



Foto: Wikipedia
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Vocês mantêm convênios?

Por Paulo Heuser


Zé acordou cedo, como de hábito, para descobrir que não havia luz, nem do dia, nem das lâmpadas que teimavam em continuar apagadas. Ele tivera a brilhante idéia de comprar um moderno aquecedor de água a gás que apresentava uma peculiaridade: utilizava energia elétrica para controlar o fluxo de gás. Sempre havia o vestiário do clube para oferecer um bom banho quente. Aquela primavera começou de forma estranha, pois geava nos campos que deveriam estar floridos. O joão-de-barro veio dar uma olhada na casa, levou um pito da joana-de-barro, e desistiu da reforma do que sobrou da casa.

Chegar ao banheiro, para fazer a barba, não seria muito problema, pois ele sabia o número exato de passos que o separavam da porta. Só não sabia que aquela gaveta ficara aberta na altura exata da sua canela. Ele só conseguiu gritar um palavrão abafado. O interessante em se tropeçar em algo no escuro é a sensação de total desamparo que isso provoca. Mais interessante ainda é observar alguém tentando agarrar-se a algo que não está lá. Para sorte dele estava escuro, assim ninguém viu. Com a canela latejando, ele chegou ao banheiro. Fazer a barba no escuro não seria tão difícil, mesmo sem a água quente. Ele não notou logo que aquele não era um creme de barba. Tampouco era creme dental, pois seu rosto passou a arder. Mas, como tinha forma de creme de barba e tampa de creme de barba, foi. A ardência começava a sumir quando ele passou a lâmina no rosto. Algo de muito ruim acontecera com ela, pois literalmente tosquiava seu rosto. Bem que ele achou, na noite anterior, que o cachorro pareceu recém-tosado. Só conseguiu gritar outro palavrão abafado. Ele sentia que algum sangue escorria no rosto, mas de certo pararia em seguida. Grudou um pedaço de lenço de papel no rosto e desistiu da barba. Quando o sangue coagulasse, o papel cairia. Era sempre assim. Lembrou-se do celular, a lanterna de plantão. À luz pálida do visor permitiu que ele escolhesse e vestisse a roupa.

Descer as escadas no escuro foi tranqüilo, pois havia iluminação de emergência que durou até o terceiro andar. Depois, tirando aquela tropeçada na caixa que alguém esqueceu no segundo andar, foi tudo bem. Encontrou o carro com facilidade. Após acordar o porteiro, e conseguir que ele abrisse o portão, Zé partiu em direção ao clube. Lá descobriu que haviam interditado os vestiários para troca do sistema de aquecimento d’água. Poderia utilizá-los para tudo, menos para banho quente. Zé não suportava a Idéia de chegar ao trabalho sem haver tomado banho. Portanto, foi ao banho frio. A água gelada doeu no corpo. Porém, ele saiu de lá revigorado, pronto para enfrentar o restante daquele dia que começara tão ruim. Nada que começasse tão ruim poderia piorar.

Ninguém havia lhe avisado da Marcha dos Cem – 100 entidades de classe se reuniam na avenida, representando os Sem Qualquer Coisa, para marcharem em direção a qualquer lugar, pois pareciam vir de qualquer direção e ir a qualquer direção. Parado em meio ao congestionamento ele lembrou-se de algo que poderia ter feito no escuro, mas não fez. E não como fazê-lo no interior do carro. Como o trânsito não andava mesmo, ele correu para o interior de uma lanchonete onde fritavam os primeiros croquetes da manhã. Foi direto à porta que ostentava uma bengala e uma luva. O sujeito que fritava croquetes bem que tentou avisá-lo, mas ele passou célere na direção do toalete em reforma. Do lugar onde ficava o vaso sanitário, restou um pedaço de cano solitário. Claro, restou também a pia. Do que se passou ali, melhor não saber. Antes de retornar ao carro ele teve de se esconder atrás de uma banca de revistas. Havia um sujeito de escumadeira na mão querendo pegá-lo. O homem gritava palavrões nada abafados em alto em bom som, se é que isso pode ser bom. Zé já atravessara o canteiro central daquela avenida várias vezes, porém nunca perseguido pelo ensandecido homem da escumadeira. Por isso ele não percebeu a corrente estendida ao longo do canteiro central adotado pela clínica de traumatologia. Foi demais para a canela direita e para a mão esquerda. A atendente da clínica olhou para a figura cambaleante que adentrou portas e disse:

- É para não pisarem nos canteiros, mas mantemos convênios!

Ele só conseguiu balbuciar um palavrão resignado.

A manhã já seguia longe quando Zé chegou à rua do trabalho. Ressabiado, atravessou na faixa. Bem na hora que o carro preto de vidros pretos vinha de ré pela contramão. Ele sentiu algo elevá-lo do solo enquanto tentava apoiar-se com a única mão livre de tipóias. O carro preto não parou nem para ver a cor de quem havia atropelado.

Aquele dia foi longo, muito longo, excessivamente e extraordinariamente longo. A moça de plantão na funerária pintava as unhas, quando ele entrou e perguntou:

- Vocês mantêm convênios?

- Sim, certamente, seria para algum parente?

- Não, é para mim!

Aquele realmente não foi um bom dia.

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2.10.08

472 - Parada de ônibus


Foto: Wikipedia
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Parada de ônibus

Por Paulo Heuser


Tento definir uma parada de ônibus e não consigo. O mais próximo que eu consegui chegar de uma definição foi a de escaninho de entrada e saída. As pessoas param na parada de ônibus porque desejam embarcar no dito cujo. Os que desembarcaram nem param, ou melhor, só param quando chove. Então a parada de ônibus vira lugar. De outro modo ela é apenas ponto de passagem, pois ninguém vai à parada de ônibus, vai através dela. Ela é o elevador sem paredes nem botões. Na parada ao menos não há o constrangimento causado pela clausura do elevador. A parada também é arejada, ao contrário daquele.

Se no elevador todo mundo observa quem entra e quem sai, na parada há uma impessoalidade quebrada apenas pela presença de mendigos, vendedores ambulantes e bandidos. Ou seja, sempre. O achaque funciona na parada porque os passantes não têm opção: ou agüentam, ou vão a pé. Quanto mais pestilento for o achacador, melhor funciona. Todos querem se livrar logo dele. É também na parada que os fumantes se arrependem do vício. Se não lhes pedirem cigarros, lhes pedirão fogo. Aquele pode também ser um local um tanto perigoso. É nas paradas de ônibus que muitos assaltantes procuram suas vítimas. É lá que o trabalhador perde marmita e dentadura. Noutro dia ouvi da ascensorista do elevador que ela fica em casa, às seis horas, com o ouvido colado na janela. Quando ouve o barulho do ônibus sai em disparada, para chegar à parada no mesmo instante que ele chega. Assim ela dribla o exército de assaltantes, correndo agarrada à bolsa, feito atacante de futebol americano. Quando ela volta, faz o caminho contrário, na mesma louca disparada.

Na Cidade Baixa há um mendigo que manteve seu status de sem-teto mesmo morando na parada de ônibus com teto. Ocorre que o sem-teto fez do teto o seu chão e se tornou um com-chão sem-teto. Explico: ele mora sobre o teto da parada de ônibus, alcançando-o através dos galhos da árvore vizinha que também faz as vezes de cabide e armário. Do que ocorre sob seu chão ele nada quer saber. Ele é o único que chega a algum lugar ao chegar à parada. E tem transporte na porta, coisa muito valorizada hoje em dia. Quanta correria a ascensorista evitaria se tivesse transporte na porta. A vantagem de correr atrás do ônibus é o condicionamento físico resultante disso. A mulher já mete medo na atleta russa Yelena Isinbayeva, de tanto correr, e saltar sobre bêbados caídos e desviar de assaltantes. Aliás, as duas têm aqueles enormes olhos verdes. Ambas sobem, uma com a vara, outra com o elevador.

O pessoal fala muito. Comentam que a ascensorista será convidada para substituir o lesionado quarterback – atacante - Tom Brady do New England Patriots – time de futebol americano. A dor ensina a gemer, e o bandido ensina a correr.

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1.10.08

471 - As gêmeas do pudim


Foto: Comuna di Fara Veronese
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As gêmeas do pudim

Por Paulo Heuser


Vicenza e Viterba Arrabiate são gêmeas idênticas e foram criadas como tal. Andam aí pela casa dos pré-setenta. Elas se vestem da mesma maneira e cultivam não só os mesmos hábitos, como também o mesmo marido. O corte do cabelo à Chanel combina com o queixo inusitadamente pontudo. As vi numa festa do interior do Interior. Elas se deliciavam comendo pudim de laranja. A semelhança entre elas era tamanha que se estendia aos gestos e à postura. Havia perfeito sincronismo nos seus movimentos, como se fossem atletas do nado sincronizado no seco. Ambas levavam a colher ao prato, ajudavam na pescaria com o polegar direito e levavam a colher à boca. Mastigavam sete vezes e engoliam. Tudo igualzinho, nos menores detalhes. Sorriam o tempo todo.

Enzio vive na Comuna de Fara, nas Colline Novarese – Colinas de Novara - da região italiana do Piemonte. Ele vem de uma linhagem de produtores de vinho que remonta aos tempos do Império Romano. A história conta que o Cônsul Silla venceu uma grande batalha naquela região e distribuiu as terras conquistadas entre os legionários que mais se destacaram no combate. Dentre eles estava o ancestral de Giuseppe – avô de Enzio -, que fundou a vinícola no final do Século XIX. Muito antes disso, gerações da família já produziam vinhos artesanais na região. A família orgulha-se muito do Gattinara Reserva, tinto feito com as uvas nebbiolo, vespolina e bonarda. Enzio sabe que cada safra é uma criança que deve ser concebida, cuidada e tratada de acordo com suas características próprias de solo, videira e clima. Nenhuma safra é igual à outra, o que aumento o desafio para obter a melhor mistura – assemblage – entre os vinhos resultantes de cada uva. Uma safra especialmente destacada do Gattinara Reserva foi a de 1997 - orgulho de Enzio.

Algumas caixas do Gattinara Reserva de 1997 cruzaram o Atlântico e chegaram ao Brasil. Domenico Tassa é um grande empresário que gosta de presentear seus clientes como brindes da terra do seu papai. O vinho italiano é um dos seus presentes prediletos. Ele arrematou cinco caixas do Gattinara Reserva de 1997 e as distribuiu entre seus clientes mais importantes. Uma delas coube a Vittorio Arrabiate.

Vicenza e Viterba pescaram o último pedaço de pudim do prato, com o auxílio dos polegares, em perfeito sincronismo.

- Bom! – disse Vicenza.

- Bom! – ecoou Viterba.

Entreolharam-se e disseram em uníssono:

- Bem melhor do que o sagu que fizemos com o vinho que o Vittorio ganhou!


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