15.10.08

476 - Um mundo melhor

Foto: Paulo Heuser
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Um mundo melhor

Por Paulo Heuser


Por que viajar? Por que conhecer outros lugares? Há um sem número de razões, com certeza. Alguns fogem de algo ou de alguém. Outros viajam porque fogem da rotina. Pode-se viajar também através das páginas de um bom livro. Por que não comprar o livro durante uma viagem? Ah, que saudade dos livros que eu lia na rede. Rede que balouçava entre árvores defronte a casa sem muros nem cercas. Os únicos invasores eventuais eram o vento e a chuva.

À pergunta sobre as razões que me levaram a viajar, respondo sem pestanejar: paz e segurança. Se eu não viajar a Bogotá, Caracas, Nova Orleans ou ao Rio de Janeiro, estarei mais seguro do que estou aqui. Isso torna muito fácil encontrar um destino mais seguro. Bagdá é um lugar a se considerar. Mais segura do que as anteriores, Bagdá apresenta muitas atrações, desde a tecelagem persa até a explosão da fila do pão. A sensação de caminhar sem preocupação extremada é impagável. Ver uma senhora idosa sacando dinheiro num caixa automático, em plena rua, durante a noite, é ainda mais impagável. Esquecemo-nos dessas coisas que deveriam parecer naturais.

Embarquei nesta viagem por acaso e não me arrependi. Há muito eu não experimentava sensações tão boas. No princípio permaneci cético, pois os anos de desconfiança remeteram-me à cautela. Senti-me como devem ter se sentido os habitantes das cidades européias no final das grandes guerras. Aos poucos saí à luz. Agora me deixo levar pela deliciosa sensação de andar à noite pela cidade limpa. Cruzo pelos passantes que me cumprimentam, apesar de não me conhecerem pessoalmente. É ótima a sensação de ser notado e poder notar os demais sem medo. Não se faz necessária muita cordialidade, basta o reconhecimento de que há outras pessoas. Adentro restaurante sob uma chuva de cumprimentos, não apenas dos garçons, mas também dos freqüentadores. Alguns até sorriem! O jardim do restaurante dá para a rua, sem cercas, sem telas e sem pedintes. Que mundo é este, que só agora reencontro? Eu vivi nele, faz muito. Porém faz tanto, que eu já havia me esquecido dele.

Atravesso a rua na faixa para pedestres, e os carros param! A noite vai, e os carros param no sinal, mesmo não havendo outros. Aliás, não há tantos carros assim, pois o pessoal volta para casa de metrô. O problema dessas viagens é que elas terminam, sejam curtas ou longas. Aproveito cada minuto desta viagem, enquanto não termina o horário de propaganda eleitoral gratuita. Quando ele terminar, eu voltarei ao miserável mundo real do hiato intereleitoral.

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24.9.08

467 - Um novo modelo mercadológico-eleitoral


Verona. Foto: Paulo Heuser
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Um novo modelo mercadológico-eleitoral

Por Paulo Heuser


As empresas arrendadoras de bens costumam registrar a parte imutável dos contratos de arrendamento mercantil (leasing) nos cartórios de notas. Essa prática permite a confecção de contratos bastante enxutos, pois o que é invariável apenas é referenciado na parte específica de cada negócio. Lembrei-me disso ao assistir ao programa eleitoral obrigatório.

Todos os candidatos a vereador repetem as mesmas coisas. Todos se posicionam contra a corrupção e a favor da segurança, da saúde e da educação. O problema é que lhes falta tempo após a ladainha imutável. Um partido nanico já adotou o jogral como forma de difundir suas idéias exclusivas. Cada candidato diz uma palavra. Lembra um pouco os jograis da Dona Camila, no jardim de infância. Só que no lugar dos versos há apenas uma palavra para cada candidato. Porém, ainda assim falta-lhes tempo, pois quando eles terminam a frase padrão, o tempo acabou.

A relação entre eleito e eleitor não deixa de ser um contrato, mesmo que celebrado de forma tão secreta. O termo “compra de votos” não está muito correto, pois o prazo é fixo: quatro anos. Mais correto seria chamá-lo de arrendamento mercantil do voto, pois há cláusula que permite renová-lo por mais períodos de quatro anos. Juntando nada com coisa nenhuma se poderia criar um novo modelo de propaganda eleitoral obrigatória, com evidentes vantagens mercadológico-eleitorais. Pactuadas e registradas as cláusulas pétreas da eterna ladainha, os candidatos poderiam exercer toda sua criatividade. Aqueles preciosos segundos poderiam servir para divulgar as propostas que diferenciariam aquele candidato de todos os outros.

Da Itália vêm belos exemplos da criatividade legislativa municipal. Proibiram o uso de tamancos na paradisíaca ilha de Capri. Nem pense em fazer castelos de areia nas praias de Eraclea. Dá multa. O pessoal deu asas às leis em Verona. Os flanelinhas veroneses são multados e perdem a féria. Os clientes das prostitutas da terra dos Montecchi e Capuleti levam pesadas multas. A sorte do Romeu de Shakespeare é que aquela Julieta era moça de família. A tragédia contemporânea será protagonizada pelo flanelinha descamisado Romeu que namora a prostituta Julieta que come sandubas junto aos monumentos históricos de Verona. Sim, comer junto aos monumentos e andar sem camisa em Verona também é proibido. Num recente episódio, os pais de um menino de quatro anos foram multados porque ele comia um sanduíche em área considerada histórica. Esse episódio gerou um comentário interessante por parte de um cidadão veronês: “boh, multare un bambino perché mangia un panino mi pare un’emerita cagata degna di un minorato mentale.. ma se la legge è cosi.. allora il minorato mentale non è solo chi la applica ma anche chi l’há fatta.” – “não sei, multar um menino porque come um sanduíche parece uma, digamos assim, mancada digna de um retardado mental.. mas se a lei é assim.. então o retardado mental não é apenas quem a aplica mas também quem a fez.”

Ao leste da Itália, na Romênia, há um mendigo de Bucareste que já acumula mais de um milhão de dólares em multas. Ele é multado diariamente por mendicância e perturbação da ordem. Será que ele hoje pede esmolas para tentar pagar as multas de ontem?

Fico a sonhar com as propostas que poderiam surgir no horário eleitoral obrigatório, se os candidatos não fossem obrigados a repetir aquela seqüência enfadonha de corrupção, educação, saúde e segurança. Poderiam propor a limitação do nível de ruído gerado pelos pernilongos, ou, quem sabe, um horário limitado para o canto dos sabiás.


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