29.9.07

Portas para lugar nenhum


Foto: Paulo Heuser


Portas para lugar nenhum


Por Paulo Heuser


Participo de alguns grupos virtuais de fotógrafos do Flickr – sítio de compartilhamento de fotos do Yahoo. Lá depositamos fotos das quais gostamos, e das quais eventualmente mais alguém goste, conforme certos atributos temáticos. Há grupos para quem gosta de quase que qualquer tema. Fazemos nossas exposições virtuais de fotos, compartilhando imagens com qualquer um que queira vê-las.

Um grupo que me chamou particularmente a atenção é o denominado doors to nowhere – portas para lugar nenhum. As regras do grupo definem o que são portas para lugar nenhum. São aquelas que não dão acesso a algum lugar. São portas em meio aos andares superiores, sem escadas de acesso. Não servem como portas, não realizam a função primordial das portas – dar acesso a algum lugar. Cruzamos por essas portas, não através delas, no dia a dia, sem nos darmos conta disso, a não ser que observemos o mundo através de um visor de câmera fotográfica. Então elas nos saltam aos olhos. Estão lá, possivelmente chaveadas, sem serem abertas há muito, algumas, nunca. Foram colocadas e continuam à espera de uma escada que lhes dê acesso. Outras viram suas escadas desaparecer, como uma que fotografei numa avenida que foi alargada, causando a mutilação de muitos imóveis. Não há como não vê-la. É vistosa e azul, destacando-se sobre as marcas na parede do segundo piso do que algum dia foi uma escada. Restou o corrimão, ninguém mais apoiando. Uma porta que não leva mais a lugar nenhum já provoca uma forte sensação de abandono. O que dizer de um corrimão onde ninguém mais se apoiará?

Por vezes fotografamos as portas que não levam a lugar nenhum sem notá-lo. As notamos nas fotos. Procurávamos fotografar um prédio como todo. Vendo o resultado, as encontramos. Pelo visto, mais gente fica impressionada com a imagem dessas portas, pois há 219 participantes no grupo, até agora. Há falsas portas que não levam a lugar nenhum. Elas poderiam ser usadas para levar a algum lugar, mas não são. Têm escada de acesso, mas permanecem fechadas, simplesmente porque não há interesse em cruzá-las. Foram úteis, algum dia, quando outras pessoas, com outros costumes, as cruzavam. Vão-se as pessoas, vão-se hábitos, ficam as portas, apenas como testemunhas de um passado nem sempre conhecido. Velhas fotos podem até desvendar os mistérios por trás de muitas portas. Aquela fora a entrada da casa, antes de alguma antiga reforma que lhe tirou a utilidade.

Após ver tantas fotos de portas que não levam a lugar nenhum, sei que não devo levar minha câmera à seção eleitoral. Receio poder compartilhar a foto da urna no grupo doors to nowhere, apesar de haver escada que lhe dá acesso.
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26.9.07

Problema de pressão

Esfigmomanômetro (ufa!)
Problema de pressão

Por Paulo Heuser


A figura do mal-entendido nos persegue pela vida toda. Quem nunca interpretou mal algo falado, escrito ou visto? Um mal-entendido que sempre me volta à memória ocorreu numa lanchonete, onde pedi uma água mineral. O atendente me olhou de modo estranho e me perguntou se eu também gostaria de um copo d’água. Foi um daqueles momentos em que precisamos parar tudo, rebobinar a fita e tocar novamente. A propósito, no auge da utilização dos videocassetes comprei um inutilíssimo rebobinador de fitas. Mais um traste para ocupar lugar, na estante e na tomada. De qualquer forma, o atendente da lanchonete havia (mal-)entendido que eu desejava um sonrisal. Mal-entendido pequeno, sem traumas ou seqüelas. Há os terríveis, que desfazem relacionamentos e amizades, causados pela interpretação errônea de frases, gestos, ou até, da ausência destes.

Grandes mal-entendidos derivam das receitas médicas manuscritas. Medicamentos já têm nomes estranhos. Conforme a letra do médico, quem vale é a interpretação do balconista da farmácia. Tangenciando a área médica, certa feita eu ouvia o relato de uma senhora que estaria com problemas de pressão (arterial, arterial!). Quando a conversa se tornou coisa de loucos, pois aparentemente falávamos de assuntos diferentes, descobri que o problema dela era depressão, não de pressão.

Os mal-entendidos sociais também eram muito comuns. Eram, pois hoje tudo é um mal-entendido social. Durante um baile de sociedade, faz muito tempo – muito mesmo! – me dirigi à copa do clube para buscar bebida, após tentar inutilmente chamar a atenção do único garçom daquele lado do salão. Os garçons apresentam uma tendência a atender apenas os clientes mais velhos. Deve ter algo a ver com a capacidade econômica de pagar gorjetas. Retornando da copa, com um copo em cada mão, achei melhor cruzar pela borda da pista de dança, pois os espaços entre as mesas não recomendavam o desfile com copos cheios. Bebia-se cuba libre, naquela época. Só não dava para gritar o nome da bebida, pois poderia ser interpretado como um ato de subversão. Minha namorada nova em folha estranhou muito a cena que se seguiu. Ao pedir licença à moça que impedia minha passagem, da pista à minha mesa, ela interpretou o pedido como um convite para dançar, levantando-se prontamente. Pareceu-me muito deselegante desfazer o mal-entendido. E a expectativa era visível nos olhares dos pais dela, sentados à mesa. Pesando as alternativas, optei pela que me pareceu mais diplomática. Depositei os copos sobre a mesa, dei um volta pelo salão, dançando com ela, agradeci, ao passarmos novamente pela mesa, peguei meus copos e, finalmente, voltei para a namorada. Tudo terminou bem, minha namorada riu, a moça dançou e os pais dela não beberam nossas cubas libres. Sem depressão, nem de pressão.

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25.9.07

Ele voltou


Foto: Paulo Heuser
Ele voltou

Por Paulo Heuser


As frutas sazonais tinham outro sabor. Bergamotas, laranjas, morangos, uvas, melancias, todas tinham época. Foi-se a época em que havia época. As temporadas estendem-se até não haver mais interrupção. Comem-se uvas e morango durante todo o ano. As bergamotas ainda resistem à perenidade. As verdadeiras caducam. A disponibilidade de quase que qualquer tipo de frutas, o ano todo, tirou a graça de comê-las no início das temporadas. Os primeiros morangos eram vistos como tesouros. Encontráveis em cada esquina de avenida, durante meses a fio, perderam seu encanto. Aliás, a grande oferta tira o valor de qualquer coisa. Enjoamos delas.

Quem me incomoda mesmo, pelo excesso de disponibilidade, é o Papai Noel. Ouvia-se falar nele no Advento. Antes disso, e depois, só no sonho. E naquelas frases que os adultos usavam para ameaçar as crianças que já não acreditavam nele. Pois o Natal voltou, em pleno setembro. E veio com as tradicionais previsões de recordes de vendas. Junto com ele virão eternas músicas que encherão nossos ouvidos, até a exaustão. Dos mercados aos celulares, Jingle Bells e Noite Feliz ecoarão por toda parte. O sino pequenino triturará os nervos de todos, em Belém e aqui. Ontem ouvi o papo de duas pessoas que falavam da necessidade de organizarem a primeira festa de Natal da temporada, com amigos secretos, ocultos e tudo mais. A primeira, bem entendido.

Talvez seja a hora de inovar. Li um artigo que anunciava as cores do próximo Natal. Tons cítricos. Quem sabe teremos Papais Noéis vestidos de verde limão? É uma boa forma para se obrigar os entusiastas dos bonecos de sacada a trocá-los por novos. Afinal, Papais Noéis vestidos de vermelho estarão definitivamente fora de moda. Coisas de outros Natais. Poderão até guardá-los, para uso futuro, pois a moda volta. Em 2013 poderão voltar, após os amarelos, azuis e lilases. Talvez barbeados e calvos. Nada de barriga, também. Os Papais Noéis serão sarados e trocarão aqueles antiquados óculos de aros redondos pelos novos modelos italianos com hastes retas, após as orelhas. Moda é moda, mas que parecem quitandeiros com lápis em cada orelha, isso parecem.

As árvores de Natal da nova estação serão despojadas, evitando-se o uso do plástico. Nas roupas dos festeiros aparecerão o cinza e o branco. Isso me dá idéias. Sabe-se que as lojas de um e 99 compram estoques de elementos de decoração em verde e vermelho, cujos excedentes são vendidos antes do Carnaval. O que era guirlanda de Natal vira adereço de Carnaval. È uma reciclagem alegórica. Daí talvez venha a idéia dos tons cítricos. Têm mais a ver com as festas pagãs. Como o Papai Noel já é elemento pagão mesmo, poderíamos unificá-lo com os pierrôs. Às canções de Natal juntar-se-iam quadrilhas de rodeio, axé dance, e outras manifestações regionais. A festa começaria em setembro e continuaria até março. Ou melhor, continuaria pelo resto do ano, com as micaretas. Os Papais Noéis de rua poderiam adotar trajes mais arejados, como bermudas e camisetas, ensinando performances de mararena às criancinhas que prometeram estudar com afinco. No fundo, Noeletes fariam as vezes de dançarinas de corpo de dança, executando a dança do siri. Em meio às palmeiras artificiais decoradas com cocos coloridos.

O coelho da Páscoa? Por que não? Adentraremos abril! O Papai Noel tradicional combina bem com a Oktoberfest. Basta vesti-lo de bávaro, mesmo que seja com um chapéu verde-limão. Perenizamos o clima de festa. Qual das festas? Ora, todas, pois realmente não dá para se engolir um Papai Noel em setembro. Nem em outubro.
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24.9.07

A viagem de bodas do Zé


A viagem de bodas do Zé


Por Paulo Heuser


O Zé e a Maria completaram 25 anos de casados. Bodas de prata. Nada mais justo do que fazerem uma viagem de comemoração. Quando ele me pediu sugestões de destinos, fiquei tentado a lhe indicar um daqueles países fáceis do Primeiro Mundo. Ele foi descartando um a um. França e Itália seriam óbvias demais. Na Inglaterra a cerveja seria morna demais. Na Alemanha haveria chucrute demais. Os Países Baixos seriam baixos demais, e assim por diante. Queriam algo diferente, com forte emoção.

Sugeri então que considerassem os países balcânicos. O Zé não gostou. A Sérvia não serviria, pois haveria açougueiros demais. Na Bósnia, matéria-prima demais, para os açougues do vizinho. A Croácia seria calma demais. O casal jubilado queria algo menos comum. Por fim, entendi. Perguntei-lhes se queriam viajar para um país de contrastes, que pouco tivesse a ver com o Primeiro Mundo. Varrendo a Barsa, encontrei a Maurilândia, entre a Mauritânia e a Suazilândia. África, cheia de mistérios, por que não? Aquele sim é um país de contrastes, onde a maioria da população é semi-analfabeta e vive de forma muito simples, na pobreza. Contentam-se com muito pouco. As ruas confusas da capital, Ardisebrega, estão repletas de gente esquálida, sentada daquele modo que somente os famélicos conseguem se sentar, coisa de faquir. Alegres, exibem sorrisos de quatro dentes sob olhos negros emoldurados por profundas olheiras, enquanto moscas grudentas os rodeiam. Gente sofrida, mas alegre. Mansos, até. Velhos calhambeques caindo aos pedaços atravessam as estradas poeirentas e esburacadas. As ruas estão repletas de sujeira, e os carros de tração animal estão por toda parte, disputando espaço com os mercadores de alimentos primitivos e bugigangas e estes, com os pedintes. A miséria contrasta com a alegria natural daquele povo. Esquecem-se rapidamente das desgraças e caem na festa. As belezas naturais são ímpares.

O problema maior da Maurilândia é a segurança. Todos roubam de todos. Não há ruas pavimentadas porque roubaram o pavimento para transformá-lo em malocas. Não há energia elétrica porque roubaram fios, postes, transformadores e as usinas, não necessariamente nesta ordem. A Maurilândia é um dos líderes no ranking da corrupção. Os políticos são muito malvistos pela população. O regime político é um estranho tipo de democracia, onde o povo é o único que não manda nada.

Ao recomendar uma viagem a Maurilândia, achei melhor preveni-los sobre os perigos apresentados pelo país. Se fosse emoção o que procuravam, aquele era o lugar certo. Porém, deveriam tomar certos cuidados. Nada de dar bandeira com câmeras fotográficas e bolsas de mão. Comida e água, só do hotel. Caso contrário, diarréia na certa. Após chamá-los, mostrei-lhes mapas e li as recomendações quanto aos cuidados com segurança e higiene. Foi Maria quem falou:
- Ora, para isso aí, basta ficarmos aqui, em casa!
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23.9.07

A maldita azeitona


Foto: Paulo Heuser
A maldita azeitona


Por Paulo Heuser


Lâmpadas de faróis de carros são fabricadas para durarem um tempo exato. Por isso, se uma queimar, troque a outra também, mesmo que esteja funcionando. É o que os vendedores de lâmpadas nos dizem. Melhor ainda, troque o carro, pensam os vendedores de carros. Afinal, se uma lâmpada queimou, o que mais poderá queimar? Resolvi contrariar ambos, e troquei apenas a lâmpada queimada, faz um ano, mais ou menos. Então ocorreu o que os vendedores de carros previam, queimou a lâmpada do outro farol.

Os supermercados vendem algumas peças de reposição para carros, como as lâmpadas de faróis. Por alguma razão que desconheço, eles vendem apenas as lâmpadas para faróis dos carros que eu não tenho. Pequenas, grandes, longas, curtas, mas nunca aquelas que procuro. Para encontrá-las devo ir ao hipermercado, a versão moderna do inferno de Dante Alighieri. Contrariando também todo e qualquer bom senso, fui ao hipermercado no sábado à tarde. Pensei ter sido esperto, quando fui logo após o almoço, horário no qual as pessoas costumam comer as coisas que compraram no hipermercado, antes de tirarem a sesta. Havia até vagas livres no estacionamento, e não eram poucas.

Encontrei a lâmpada, afinal. Contudo, encontrei mais algumas coisinhas, pelo caminho. Havia um irresistível CD de música árabe por apenas um e 99. Imperdível. E assim fui pegando uma coisinha aqui, outra ali. Descuidei-me do relógio e não percebi logo que a hora da invasão se aproximava. Refeitos pela sesta, os hunos voltariam para comprar o que comeriam à noite. E, pelo resto do ano, aparentemente. Casais com dois filhos arrastavam pares de carrinhos sobrecarregados de alimentos, encimados por vassouras coloridas. Vassouras roxas ou verde-limão, como estandartes da limpeza. Lembram aquelas bandeirinhas esquisitas que os guias turísticos conduzem, na tentativa de não perderem todos os seus japoneses. Vejo-me tentado a passear por Versailles, numa terça-feira, dia em que os museus de Paris fecham, carregando bandeirinhas coloridas. Superaria o Flautista de Hamelin, em versão que seqüestraria milhares de turistas de pacote.

A maldita azeitona. Esqueci-me dela. Já estava pronto para entrar numa das inevitáveis filas dos caixas, quando percebi que me esquecera daquele item que não constava da minha lista de apenas um item, a lâmpada. Fazer o quê, voltei um sem número de corredores, apanhei as azeitonas e fui aos caixas. Então, os hunos já estavam tentando sair, como eu. Preparei-me para uns 45 minutos de espera na fila. Procurando algo para passar o tempo, observei duas mulheres que liam revistas e discutiam sobre a má educação de muitos dos clientes do hipermercado, que deixariam carrinhos atravessados por toda parte, atrapalhando quem quisesse passar. A mais velha, e mais irada, uma senhora baixinha e roliça que lia a revista Boa Forma, sugeria que o governo incluísse aulas de cidadania, nos currículos escolares. Assim poderiam ensinar às pessoas a não deixarem seus carrinhos espalhados. A mais nova e mais alta, que lia a revista Gula, gostou da idéia. Um sujeito que lia as notícias do dia seguinte meteu-se na conversa para sugerir que lhes ensinassem também a não estacionarem seus carros em fila dupla, quando crescessem.

Um a um os carrinhos com seus estandartes de vassouras coloridas foram engolidos pelos caixas, ressurgindo no outro lado, em direção ao estacionamento, onde foram abandonados por toda parte. Ouvindo aquela conversa toda, nem notei a passagem dos 45 minutos. Saí dali com minha lâmpada, meu CD de música árabe e uma certeza: não há farol que ilumine o caminho daqueles que acreditam que os bons modos se ensinam na escola.
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20.9.07

Universos paralelos


Foto: Paulo Heuser
Universos paralelos

Por Paulo Heuser


Faz 50 anos, Hugh Everett, estudante da Universidade de Princeton, sugeriu, à luz da Mecânica Quântica, que haveria universos paralelos. David Deutsch, da Universidade de Oxford, e Andy Albrecht, da Universidade da Califórnia, seguem caminhos semelhantes, hoje, nas suas pesquisas. É assunto de destaque na edição eletrônica da NewScientist de 19 de setembro.

Alheios à Mecânica Quântica e à Matemática complexa que a rege, José e Renan vivem seus universos paralelos, sem estabelecer contato um com o outro, sem interfaces compatíveis, sem sequer saberem da existência um do outro. Seus universos simulam um choque entre galáxias com imensos vazios, onde a matéria não se choca. Nem a luz que irradiam é percebida, pois emitem radiações em freqüências tão diferentes que não se detectam mutuamente. Um é matéria escura para o outro. Podem até saber da existência do outro, através da Estatística, mas não se comunicam.

Renan anda no balanço do poder, descendo por vezes, mas sempre acabando por atingir o topo. Ele vê o mundo de cima, e sempre há quem lhe empurre. Quando tudo indica que lhe faltará impulso, alguém empurra seu balanço. Acaba embalado por aqueles que não o confessam. Passam por ali, com quem não quer nada, e dão um bom empurrão. Querem vê-lo no alto, hoje, para se verem no alto, amanhã. Aparentemente, ninguém nota que já passou faz muito da fase de andar de balanço. Ou não nota, ou finge que não vê.

José anda no balanço da praça, como se fosse criança. Seu estado de demência lhe dá esse direito. Ninguém reclamará que, aos trinta, anda de balanço. José nunca atinge o topo, pois lhe falta impulso. Não há quem lhe dê um empurrão. Cleide, aos quinze, não pode. Dança um funk imaginário, sacudindo a barriga de oito meses. Eles nunca ouviram falar do Renan, nem ele, deles. Seus balanços se cruzam nos vazios dos átomos que os compõem. Suas matérias não obedecem às Leis de Newton e suas energias não obedecem às Equações de Maxwell. São massas que não geram campos gravitacionais e são partículas em movimento que não geram campos. Renan é não-matéria para José, que não apresenta carga para Renan.

Renan ri pela soberba. José ri da desgraça. Perdeu qualquer resquício de contato com a realidade do país do Renan. Para José, país é um conceito abstrato. Sabe da existência de uma bandeira, que nada significa, na sua praça. Sua pátria é a sua praça, onde vive e dorme. José não lê, não ouve e não vê. Para quê? Trabalha e se alimenta com o lixo. Diverte-se do balanço real da praça. Renan se alimenta dos restos morais da sociedade. Dos que empurram seu balanço virtual, em direção ao topo, ao céu que o balanço do José nunca atingirá.

Renan sorri de soberba. José sorri, pois será pai, mesmo que não faça a mínima idéia de como sustentar um filho, já que não sustentou os outros oito. Isso é problema para daqui a um mês. Renan sorri porque sabe que a probabilidade de que cruze pelo balanço de José é estatisticamente mínima. E José sorri infantilmente, enquanto observa a dança de Cleide.
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19.9.07

Voar

Um Neiva
Voar

Por Paulo Heuser


Outro dia descobri que um avião, com a matrícula PP-GTN, anda voando por aí. Deve ser um clone do Neiva que pilotei na década de 70. O GTN apresentava uma leve queda de asa para a esquerda, quando levado ao stall, mas era um bravo Paulistinha. Devo ter voado umas 20 horas nele. Faz mais de 30 anos, mas ainda me lembro de como decolar com ele.

Após a rolagem, o cheque de cabeceira. Ar-quente fechado, magnetos ligados, mistura rica, tanque inferior aberto, pressão do óleo, temperatura, bússola e bola de nível soltas, comandos livres e dou manete, até alinhar com a pista, após contornar o saco do fim da pista. Manete à frente, manche à frente, a pista começa a rolar sob as asas. Um toque no pedal direito resolve a guinada à esquerda devida ao efeito giroscópico provocado pela hélice. O motor Continental ronca confiavelmente. Após uns 50 metros a bequilha levanta, permitindo uma visão plena da pista. Chegamos próximo aos 100 km/h, e o trem de pouso começa a querer saltar na pista. Motor a 2600 RPM, hora de aliviar o manche, quase neutro. Decolamos, o chão se afasta rápido, enquanto reduzimos para 2300 RPM e damos um peteleco no estabilizador, para aliviar a pressão no manche.

A pista fica para trás, enquanto sacudimos um pouco com a pequena turbulência da serra ao final da pista. Hora de sair do tráfego, à esquerda, 150 metros de altitude da pista. Quando atingimos 300 metros, saímos do tráfego pela direita. Hora de estabilizar. O motor ronca gostoso nos 2150 RPM, velocidade do ar em 160 km/h.

O sol bate no plexiglass, deixando uma miríade de pontos de luz. O velho Neiva treme daquele modo familiar. Seu ventre transmite uma sensação de aconchego. O vento de través nos faz caranguejar levemente. A sombra no solo voa em diagonal. Após uma hora e meia de paisagens de fim de tarde, a vareta do pirulito indica que devemos seguir a proa de casa.

Entramos no tráfego a 45 graus e 300 metros. Na perna do vento, passamos pelo fim da pista e fazemos a aproximação. Hora de cortar o Continental, que passa a girar em marcha lenta. Noventa graus e deixamos a pista à esquerda. Mais 90 graus e estamos na reta final. Se estivermos curtos, damos motor. Se entramos longo, glissamos. A cabeceira da pista se aproxima a 100 km/h. Pequenos movimentos nos pedais e no manche garantem que o leme e os ailerons manterão a proa. Deixamos a velocidade cair, para o pouso de três pontos. O manche se move nervoso, para compensar o arredondamento final. As três rodas tocam a pista ao mesmo tempo, a 60 km/h.

O Neiva rola até o pátio de estacionamento, onde receberá os calços nas rodas e a capa no tubo de pitot. Piloto que não é besta passará a mão pelo montante da asa, ao deixá-lo, numa espécie de carinho pós-vôo. Amanhã poderá decolar novamente. Quem voou um Neiva, sabe.
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Postagem no. 300: O Contrato



Foto: Paulo Heuser

Esta é a tricentésima postagem

O Contrato

Por Paulo Heuser


Raimundo preza sua intimidade e seus hábitos simples. Não é afeito a modismos. Prefere assistir às novelas B da Croácia, ou da Mauritânia, aos filmes AAA da indústria cinematográfica que distribui troféus para si mesma. Por isso, muito lhe incomodam os telefonemas de venda de qualquer coisa, especialmente enquanto assiste ao capítulo da novela das oito da Kabelska Televizja Kprivnika. No último telefonema, travou-se curioso diálogo:

- Alô!

- Boa noite, Sr. Raimundo, para sua segurança esta ligação esta sendo gravada.

Silêncio desanimado.

- Sr. Raimundo, o senhor poderia confirmar alguns dados, para sua segurança?

- Não.

- É necessário conformarmos alguns dados pessoais para podermos lhe disponibilizar seu cartão de crédito com limite ilimitado, limitado em 19 reais, apenas para sua segurança.

Mais silêncio desanimado.

- Sr. Raimundo, qual seria o motivo que o levaria a sonegar informações imprescindíveis para a validação da sua identidade como parte do contrato que estamos firmando?

- Não tenho interesse.

- Devo lembrá-lo que esta ligação está sendo gravada, para sua segurança. Qual seria a razão para o senhor não demonstrar interesse?

- Não tenho interesse.

- Essa não é uma resposta aceitável, conforme o kaput da cláusula 432 do contrato que estaremos firmando através desta ligação, que está sendo gravada, para sua segurança.

- Não tenho interesse em nenhum contrato.

- Devo preveni-lo que o parágrafo quarto da cláusula 745, do contrato supra, veda manifestações de desinteresse antes de decorridos 30 dias da comunicação por escrito do referido desinteresse, havendo anuência das partes. Naturalmente, sem prejuízo às salvaguardas do artigo 917 do contrato.

- Onde está esse contrato?

- Então, Sr. Raimundo. Para sua segurança, estaremos lhe enviando uma cópia do contrato tão logo o senhor confirme alguns dados pessoais.

- Não tenho interesse.

- Devo avisá-lo, enfaticamente, que estaremos mandando seu CPF para cadastramento nos órgãos competentes.

- Quais órgãos?

- Não estaremos disponibilizando essa informação sem que o senhor nos confirme alguns dados pessoais para autenticação da parte B do contrato.

- Não tenho interesse em nenhum contrato...

O telefone emudeceu, repentinamente. Mudo mesmo, nem chiado. Raimundo viu-se no escuro, sentado defronte à tv que se desligara. Ele resolveu tomar um chá, para se acalmar. Foi quando descobriu que não havia água nem gás. Não no apartamento dele, pelo menos. Pela janela, a vida parecia continuar. Tentou conseguir um pouco de água quente com a Dona Erothildes, vizinha do 34. Pode ouvir um cochicho abafado que avisava para ninguém abrir a porta, pois seria aquele que rompera O Contrato.

Raimundo pulou de susto na poltrona, quando o telefone mudo tocou, em volume surpreendentemente alto.

- Alô! – disse ele, em meio à escuridão.
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- Boa noite, Sr. Raimundo, para sua segurança esta ligação esta sendo gravada.
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17.9.07

Terebentex H12

Terebentex H12

Por Paulo Heuser

Como a maioria dos seres humanos, eu pego alguns resfriados. Não há como fugir dos resfriados. De quando em quando eles vêm. E vão, felizmente. Um dos piores aspectos do resfriado, além da fungação, é responder à pergunta inevitável sobre o que estou tomando. A maioria das pessoas crê que a evolução darwiniana se fez à base de medicamentos contra resfriados. Até há pouco tempo, eu respondia simplesmente que não estava tomando medicamento algum contra resfriados. Causava alvoroço entre os paladinos da farmacologia. Muitos ficavam indignados com minha deliberada refratariedade às maravilhas que a ciência encapsulou naquelas lindas embalagens coloridas. Minha insubmissão se deve em parte às dimensões dos comprimidos, se é que fazem jus a esse nome. Poderiam comprimir aquilo um pouco mais. O último que ingeri apresentava as dimensões de uma bolacha Maria. E devemos ingeri-los aos pares, não sei por quê. Talvez fossem ainda maiores, se bastasse ingerir apenas um. Algo como engolir um alfajor inteiro, sem mastigá-lo. O fato é que, tomando ou não aquelas coisas, sinto-me mal, quando resfriado.

Ainda não encontrei remédio para combater os sintomas do resfriado, apesar das inúmeras prescrições leigas que recebo por toda parte. Se exercício ilegal da Medicina realmente desse cadeia, a maioria da população estaria enjaulada, logo depois dos balconistas de farmácias. Da polêmica sobre as vacinas contra a gripe, então, melhor nem falar. Já ouvi relatos terríveis, por um lado, e maravilhosos, por outro. Conheço um sujeito que jura que essas vacinas são esporos de seres extraterrestres que preparam uma invasão do planeta. Utilizariam os corpos humanos como casulos. Seria a volta dos incas venusianos. Valha-nos, National Kid! Para outro, um pouco menos paranóico, as vacinas seriam obra de uma agência secreta do governo de uma potência estrangeira, tentando influenciar nosso voto. Na dúvida, não fiquei imune. Porém, encontrei remédio para responder às perguntas dos pseudomédicos de plantão. Primeiro, passei a procurar os nomes dos medicamentos da moda, para combate aos sintomas das gripes e dos resfriados. Estou tomando tal coisa, dizia eu. Invariavelmente, alguém me recriminava, alegando que essa coisa não funcionava mais. Alguns desses medicamentos teriam causado efeitos colaterais estranhos, como o aparecimento de pêlos no nariz e fungos sob as axilas. Agora se tomaria o novo qualquer-coisa-grip, com cores personalizáveis. Haveria até um preto, para o pessoal das tribos chegadas em percevejos e tachinhas.
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Acuado, tive de inovar. Agora digo que estou tomando Terebentex H12, cujo princípio ativo é a aguarrás bisurada. Não tente pedi-lo, muito menos nas boas casas do ramo, pois ele não existe – espero que não, pelo menos. Podem tê-lo desenvolvido enquanto escrevo este texto. A grande vantagem apresentada pelo Terebentex H12 é exatamente esta, a sua inexistência. Como alguém pode dizer que algo que não existe está superado? Na verdade, não pode, apesar de alguns tentarem com muito empenho. Sei que terei de mudar de medicamento em breve, pois o Terebentex H12 já estará na boca do povo. Estou pensando no Gryprostracin B. Vou registrar a marca, pois o Terebentex teria sido um sucesso de vendas, especialmente o H12.
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14.9.07

Grundig


Foto: Paulo Heuser
Grundig

Por Paulo Heuser


Não sei até agora por que aceitei fazer uma hora feliz num mosquinha próximo da Volta do Mercado. Garantiram-me que lá serviriam um dos piores pastéis do Centro. Contudo, o pièce de résistance seria um exclusivo bauru de mocotó à senegalesa. O Brasil entraria com os ingredientes e o Senegal com o calor. Apertados ao redor daquela mesinha quadrada, com pés de cama de hotel de rodoviária do interior do Interior, procurávamos não grudar as mãos na toalha xadrez de plástico. Aquelas toalhas fazem as vezes de pega-moscas. Foi quando chegou o Grundig. Também pensei haver entendido mal, mas o homem chegou falando “grundig”, em meio a uma espécie de ranger de dentes. Fique tentado a chamá-lo de Telefunken, porém me avisaram que ele ficaria furioso, pois odiava concorrência. Pelo visto, Grundig era freguês contumaz, pois até as moscas o evitavam.

Antes que eu perguntasse, e criasse uma crise de relacionamento no mosquinha, me avisaram de que o Grundig falava daquele jeito estranho porque sua dentadura soltara-se há uns 20 anos. Ele falava ralando os dentes, para não perdê-los durante uma proparoxítona mais entusiasmada. Quase tudo que ele falava soava como “grundig”. O sujeito é famoso por saber das coisas dos bastidores. Ele sabe tudo que corre por baixo dos noticiários oficiais e das toalhas xadrezes de plástico. Grundig pediu um especial e uma fanta uva, antes de comentar, entre rangidos pavorosos dos dentes:

- Errr, grundig, vocês viram?

- Vimos o que, Grundig? O Calheiros?

- Err, não, isso foi ontem! Errr, grundig, falo da F1.

- Do quê?

- F1, McLaren, do escândalo com a Ferrari! Errr, grundig.

- Ah, esse escândalo.

- Sim, errr, já haviam eliminado a McLaren, deste e do próximo campeonato. Um inglês baixinho e barrigudo da Ferrari já ria, enquanto falava ao telefone, gritando:

- È finitto. Siamo campioni! – Terminou! Somos campeões.

Todos haviam ouvido a notícia, depois declarada falsa, sobre a eliminação da equipe inglesa. Grundig olhou para os lados, desconfiado, como se procurasse por agentes disfarçados do SNI. Olhava insistentemente para o cego que jogava videopôquer. Seria ele? O cachorro dele fornicava com a perna da máquina, o que era muito suspeito, em se tratando de uma cadela-guia de cego. Grundig baixou um pouco a cabeça e confidenciou:

- Errr... Outro sujeito da Ferrari gritou, em tom de chacota:

- Siamo salvati! Questo è il nostro ideale! – Estamos salvos! Este é o nosso objetivo!

- É isso! – gritou entusiasmado um gordão da McLaren, enquanto saía porta afora, sacando do celular. Ninguém entendeu nada, até o dia seguinte. Somente ele pescara as palavras grifadas: Ideale e Salvati.

- O avião chegou a Brasília ao cair da noite, e decolou antes das 22 horas, levando uma senhora a bordo. Quando a última sessão do julgamento da McLaren iniciou, ninguém contava com a entrada daquela mulher de olhos esbugalhados e dedo em riste, gritando palavras de ordem em todas as direções, avisando que todo mundo estaria liberado para votar em quem bem entendesse. Seja como for, o resultado do julgamento foi outro. A McLaren levou uma multa, mas continuará viva. Por via das dúvidas, levaram a mulher de volta, imediatamente. Havia mais a fazer em Brasília. Votariam a prorrogação da CPMF.

Grundig saboreou cada palavra, em meio ao ranger dos dentes de acrílico. Deliciou-se com o bauru, com cuidado, pois a mandíbula poderia conquistar autonomia. Bebeu a fanta uva no gargalo, enquanto o cego se metia na conversa:

- Bem, pelo menos venceu a democracia...
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13.9.07

Raízes

Foto: Paulo Heuser
Raízes

Por Paulo Heuser


O norte-americano Alex Haley escreveu o grande sucesso literário Negras Raízes (Roots, 1976), romanceando a saga da sua família, desde a Gâmbia, África Ocidental, até os dias de então, nos EUA. O personagem principal era um ancestral do autor, Kunta Kinte, que deve estar na memória de muita gente, após a longa série apresentada pela Rede Globo na década de 80. Alex Haley teve uma trabalheira enorme para localizar as raízes da sua família, pois não havia registros escritos. Teve de percorrer cidades e aldeias, ouvindo histórias de anciãos, à procura de elos que o ligassem ao passado.

Raízes não se movem, via de regra. Nós nos movemos, nos mudamos, somos mudados e escolhemos trilhas diversas como parreiras. Escolhemos caminhos conforme alternativas que surgem pela frente. Se parece haver mais luz à direita, vamos à direita. Cedo perdemos de vista as raízes. Mesmo estas, podem ter se originado de planta mais antiga, de outro lugar. Procurar nossas raízes, portanto, é apenas um ato simbólico, até porque necessitamos estabelecer referenciais de tempo e de ramos de família, já que somos a síntese genética de tribos diversas. Porém, por alguma razão, a procura de origens conforta o espírito, algo como um retorno à casa. Quando a casa não mais existe, restam o solo, a paisagem e o rio. Materializamos a busca às raízes. Faz bem, psicologicamente, encontrar raízes, mesmo que simbólicas.

Não tive o mesmo trabalho que Kunta Kinte teve, para procurar raízes. Vali-me de coisas às quais ele não teve acesso. Primeiro, há uma excelente base de dados genealógica da família, perfeitamente documentada. Não precisei ouvir dezenas de relatos de anciãos. Segundo, até o Google Earth sabia onde ficava aquela minúscula cidade às margens do Rio Mosela (Mosel, em alemão ou Moselle, em francês). Esse afluente do Reno serpenteia através da região do Hunsrück, no estado da Renânia-Palatinado (Rheinland-Pfalz), localizado no sudoeste da Alemanha. Serpenteia através de um vale pontilhado por pequenas e belas cidades medievais, às margens do rio, cercadas de parreirais de uva Riesling e caracterizadas pelas igrejas de torres pontudas. Pequenas cantinas familiares, onde predominam os vinhos brancos, espalham-se por toda parte.

Cheguei a Enkirch, na margem direita do Mosela, cidade de 1650 habitantes, sem saber o que procurar, já que tinha em mente a inexistência de parentes, nos dias de hoje. Um bombardeio durante a Segunda Grande Guerra destruíra o cemitério, resumindo as lápides ao pós-guerra. Descobri, no entanto, que a memória genética existe, pelo menos psicologicamente. Bebi da água e do vinho da região, dormi na casa da Frau Haussmann-Kanski, que me fez sentir em casa, conversei com pessoas alegres e amáveis. Provei do schnitzel com batatas, das geléias da região e até de uma curiosa e xaropenta aguardente de morangos. Curiosos, perguntavam-nos sobre a presença de brasileiros por lá, fora da rota turística convencional. Descobri também que o idioma do bisavô Philipp estava guardado, mas não morto. Consegui me comunicar razoavelmente bem, apesar de uma sutil diferença na pronúncia do “ch” como “sch”, que tornava os locais uma espécie de alemães cariocas, chiando. Pequena diferença do dialeto Hunsrückisch. Lá, o estrangeiro que consegue soletrar isso de olhos fechados, em menos de cinco minutos, ganha uma garrafa de aguardente de morangos. Havia um baile de sábado à noite, defronte ao Biergarten onde jantamos. As Polkas e marchas lá tocadas eram as mesmas tocadas nas nossas Oktoberfest. Também lá, o tempo parou.

Deixei Enkirch com a sensação de haver encontrado as raízes de alguma coisa. As raízes de um povo feliz, talvez. Materializei as lembranças, em forma de uma pedra e uma folha de parreira Riesling, que trouxemos na volta. Lembrei-me de Enkirch ao assistir ao programa Menu Confiança, da GNT, no qual o apresentador explora os vinhos de Bernkastel-Kues, apenas uma serpenteada abaixo, no Mosela.

Resta-me descobrir por que são tão felizes, já que eles também têm uma espécie de Senado, a Câmara-Alta.
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11.9.07

Das baganas

Desenho: Kamil Yavuz
Das baganas

Por Paulo Heuser


Há três tipos de lixo, o lixo comum, o lixo perigoso e a bagana. Lixo comum é aquele que se joga no lixo e é recolhido pelos milhares de catadores espalhados por aí. Quando, e se sobra algo, é recolhido pelos lixeiros oficiais, que alardeiam sua passagem, durante as madrugadas. Dos recolhedores informais, ouve-se o som dos cascos dos cavalos, no início das manhãs. Dos oficiais, ronco do motor de caminhão, assovios, gritos, uivos e berros, no meio das madrugadas. O lixo parece ser comprimido aos berros. Faz sentido, berros são ondas mecânicas.

O segundo tipo de lixo é o lixo perigoso. Difere do anterior por ser perigoso, apenas isso. O que nos leva às baganas, o terceiro tipo de lixo. São as baganas de cigarro. Bitucas, biútis ou seja lá que nomes lhes dão. Uma bagana padrão ABNT apresenta um elemento filtrante cilíndrico e um resto de fumo, parcialmente queimado, recoberto por papel, conforme a avidez do usuário. A bagana padrão mede aproximadamente dois centímetros. As baganas diferem dos tipos de lixos anteriores pelo fato de não serem jogadas no lixo. As baganas vão parar na rua, e não são coletadas pelos catadores. As baganas são socialmente justas, pois são produzidas por todas as classes sociais, em iguais quantidades. Podem-se ver mendigos e madames jogando cigarros na rua.

Eu já havia notado que as ruas estão repletas de baganas. Conta o folclore que quando escalaram o Pico da Neblina, pela primeira vez, encontraram – adivinhe o quê – uma bagana. Não teriam conseguido ler a marca do cigarro, devido à ação do tempo. Contam também que havia uma pequena depressão, em meio à pegada de um dinossauro, descoberta em um sítio arqueológico. Após sete anos os paleontólogos concluíram tratar-se de uma bagana de cigarro jurássico. Nenhum lugar escapa das baganas. Quem mergulha, sabe. Ilha deserta, paraíso em meio ao oceano e fundo cheio de baganas. Só há uma certeza. Você nunca será o primeiro a chegar. Algum fumante sempre chegará antes, deixando uma bagana. Imagino a cara do Neil Armstrong ao descer aquela escadinha, no Mar da Tranqüilidade, e pisar na bagana que alguém jogara na Lua. A bagana é atemporal, ela sempre está lá, seja aonde for.

Quem ficou impressionado mesmo com isso, foi o Teozinho, o Contador. Dedicou boa parte da sua vida a contar baganas. Ia ao trabalho, voltava dele, sempre contando baganas. Percebeu que tentava realizar o impossível quando seus acumuladores numéricos internos estouraram. Zeraram, Teozinho foi impiedosamente resetado. Ele pensou no suicídio, pois lhe parecia impossível partir novamente do zero. Esquecera-se de fazer backup em algum pedaço de papel. Esquecera-se também do número em que andava.

Foi o analista quem salvou a vida do Teozinho, ao sugerir que ele transformasse o evento em algo construtivo. Teozinho logo descobriu que havia 23 milhões de fumantes no Brasil. A partir de então, a mente que contava passou a multiplicar. Vinte e três milhões de fumantes vezes 10 cigarros por dia vezes 0,02 metros por bagana produziria – ruídos de cálculos – 4.600.000 de metros de baganas lineares por dia! Quatro mil e seiscentos quilômetros de baganas por dia! Em apenas 8,6956521739130434782608695652174 dias seria possível se dar um volta no planeta, unindo baganas. Em 83 dias e meio, para não ser tão exato, daria para ir da Terra à Lua, apenas unindo baganas. Teozinho ficou empolgadíssimo quando descobriu que havia 1,2 bilhões de fumantes na Terra. Doze bilhões de baganas alinhadas perfazem 240.000 km por dia! Dá para ir à Lua em um dia, 14 horas e alguns minutos! Teozinho voará mais alto, queria ir ao Sol, em um ano, oito meses e 20 dias! O que encontrará, ao chegar lá? Ora, uma bagana queimada.
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10.9.07

Fuga da rotina


Foto: Paulo Heuser
Fuga da rotina


Por Paulo Heuser


Naninha e João Vitório riscavam a freeway a mais de 17 km/h, uns 18, para ser mais preciso, a bordo da sua Hightower Skyscraper quádruplo turbo diesel HKCDPI-2, no retorno do Litoral. Esparramados nos assentos traseiros, Nanininha e Vitinho conversavam alegremente, através do MSN. Naninha largou a Vogue, por um instante, e perdeu-se em pensamentos, enquanto olhava para os belos reflexos de fim de tarde na lagoa.

- Vito?

- Hum.

- Cê lembra?

- Quê, Nani?

- Como era.

- Era o quê, bem?

- Que horror era ir à praia fora de época...

- Verdade, bem.

- Não havia viva alma. Não havia salão, supermercado, sushi bar, promoter, tv a cabo, pet shop, coluna social, golfe, estilista. Nada!

- Verdade, bem.

- Céus, não havia paradouro, o pessoal tinha de pisar na areia. Éca!

- Não se encontrava ninguém digno de ser encontrado, não dava para trocar uma idéia sobre as festas, no corredor do mercado lotado...

- Verdade, bem.

- Quando alguém queria fazer uma festa tinha de fazê-la, mesmo! Tinha de entrar na cozinha!

- Verdade, bem.

- Não havia fila na confeitaria. Como faziam para se relacionar socialmente?

- Verdade, bem.

- Havia rãs, fora do prato!

- Verdade, bem.

O que faziam, sem filas?

- Verdade, bem.

- Cê tá me ouvindo, João Vito?

- Verdade, bem.

- Quando chegarmos em casa, dá uma passada na fila da confeitaria?

- Verdade, bem.

- Bem, o que a gente fazia antigamente na praia?

- Verdade, bem.

- Vitô!!! Cê tá me ouvindo?

- Verdade, bem.

Mentira, na verdade. João Vitório voltara 40 anos no tempo. Corria pela beira da praia deserta empinando uma pipa mofada, resto de alguma compra no Super Longo, durante a temporada. No Longo, o cheiro de palha misturava-se ao cheiro da maresia. No fim de tarde riscaria a zero-trinta, a 60 km/h, sentado no banco traseiro da Vemaguete, enquanto falava com a irmã através de um telefone feito com duas latas de ervilhas e um pedaço de barbante encerado da pipa. Logo parariam para comer sonhos.

De volta ao tempo atual, parado em meio ao congestionamento, nem chegou a ouvir quando Nina comentou:

- Bem, como é bom fugir da rotina, não é?


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6.9.07

Por que rimos?

Juizo Final, Michelangelo, Capela Sistina
Por que rimos?

Por Paulo Heuser


Por que rimos? Esta não é uma pergunta nova. Provavelmente sem resposta, apesar dos inúmeros estudos científicos realizados sobre o riso. A fisiologia do riso é um assunto meio indefinido, indo da fisiologia, na acepção da palavra, até os esquemas esotéricos das auto-ajudas. O mais provável é que ninguém sabe por que rimos. Sabemos que o hipotálamo libera endorfinas que propiciam o bem estar. Nada mais relaxante do que uma boa gargalhada. Ou, como já dizia aquela seção das Seleções do Reader’s Digest, rir é o melhor remédio. A risada relaxa, anestesia e desarma. Se provocarem riso no maior turrão, ele provavelmente mudará a atitude beligerante.

O que me intriga no riso não é a sua fisiologia. É por que rimos de algumas coisas e de outras não. Por que alguns se debulham em gargalhadas, frente a uma situação qualquer, enquanto outros no máximo sorriem. Alguns, nem isso. Há o riso provocado pelo nervosismo. Graças a ele ocorrem insuperáveis constrangimentos em cerimônias fúnebres. Alguém desata a rir em meio à consternação geral. Alguns praticam o riso da ignorância, rindo de tudo que desconhecem. Outros praticam o riso do escárnio, forma especialmente desprezível do riso, conforme a situação. Uns poucos felizes riem de si e dos outros, de tudo, da fortuna e da desgraça. Riem sem maldade, riem para comemorar e riem para suportar. E tem o Jacó.

O Jacó é um sujeito que nunca ri, não em público, ao menos. Convidado a participar daquelas rodadas de piadas infames, no bar, Jacó ficava lá, sentado com cara de quem não entendeu por que, nem de que, os outros riam. As piadas se sucediam, e alguns já não conseguiam mais nem falar, engasgados pelas sucessivas gargalhadas. E nada do Jacó rir. O máximo que ousava fazer era perguntar sobre a veracidade dos espantosos absurdos contidos nas piadas. As piadas e o escárnio andam lado a lado, de mãos dadas. Os alvos das piadas mais risíveis são os diferentes, os limitados de alguma forma. O normal e o comum não causam riso. Jacó não conseguia achar graça nas pavorosas histórias que o pessoal contava. Ele era famoso por acreditar em tudo que lhe diziam. Por isso foi apelidado Jacó, o Credo.

Certa feita, Jacó surpreendeu a todos. Anunciou, naquela voz monótona, porém convincente, que contaria uma piada. E passou a contar uma estranha história sobre o fim do mundo. Apresentou-se como um dos anjos do apocalipse, usando um tom de voz que perturbou todos. Riam cada vez menos, à medida que ele avançava na história. Mesmo o Chicão, que se comportava como uma galinha histérica nessas ocasiões, passou a ouvir, sério. Havia algo de perturbador no modo que Jacó relatava o fim do mundo. Parecia ter tanta certeza e, o que era pior, não demonstrava emoção alguma. Não havia, a princípio, qualquer razão para acreditarem naquilo. Porém, a cada nova palavra proferida, Jacó os convencia mais. Suas palavras penetraram nas mentes de todos. Uma hora depois não sobrava mais dúvida. Jacó viera para fazer a triagem do juízo final. Segundo ele próprio, fora incumbido de organizar a fila. Por uma questão de ordem, todos seriam levados ao purgatório especial, enquanto esperavam a chamada para o julgamento das suas almas. Alguns já gritavam que queriam prioridade, pois eram amigos de alguém ou pagariam pelos primeiros lugares na fila.

- Adotei o sistema de marcação de consultas da rede de saúde pública.

- O que faremos enquanto esperamos?

- Haverá reprise de todas as sessões das tvs câmara e senado. – Jacó anunciou.

- Mas, assim morreremos esperando! – exclamou um mais exaltado.

- Essa é a idéia...

- Quero ir direto ao inferno! Assim fugirei da fila. – gritou o gerente do bar.

- Não, há gente com prioridade, Hitler, Stalin, Milosevic – o Açougueiro dos Bálcãs -, Idi Amin Dada, Vlad – o empalador...

- Assim não sairemos nunca de lá!

- Essa é a idéia...

Repentinamente, Jacó deu a piada, da qual ninguém rira, por encerrada e anunciou que precisava sair mais cedo para organizar a fila. Deixou para trás uma turba confusa e desesperada. Alguns tentavam ligar para o deputado amigo, para o lobista, para o advogado e até para o padre. Este deveria ter alguma influência lá.

- E dizem que sou eu que acredito em qualquer asneira que me contam! – disse Jacó para si mesmo, enquanto iniciava uma imensa gargalhada. Chegou às lágrimas, de tanto rir, imediatamente antes de alçar vôo.
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5.9.07

O agourento


Foto: Sei lá de quem.
O agourento

Por Paulo Heuser


Quem nunca fingiu não estar em casa que jogue a primeira pedra. Morei numa república de estudantes, na Cidade Baixa, no tempo que porteiro eletrônico era coisa de filme de ficção científica e vendiam refrigerante de cola de porta em porta. Portanto, sábado era dia de atender à porta o tempo todo. Os vendedores de refrigerantes grudentos revezavam-se com vendedores de qualquer coisa, principalmente os almanaques e revistas que ninguém ouvira falar. Azar mesmo era pegar uma vizinha que vendia algum tipo de santo para alguma igreja. Não dava para enxotá-las. Dava apenas para tentar esconder a Playboy e a Ele e Ela em baixo do tapete, torcendo para que a corola não tropeçasse nele. Em compensação, não havia vendedores de gás o tempo todo. Quem perdia o dia, se danava. Só buscando no depósito e arrastando a coisa por quatro andares.

Por algum motivo qualquer, éramos os únicos estudantes naquele prédio. Éramos também os únicos que não estavam na reta final para o pouso nos campos do Senhor. Êta eufemismo bonito! O pessoal ali tinha ouvido as notícias da guerra, ao vivo, nos rádios Grundig. Da primeira, bem entendido. Havia uma vizinha de andar que ficava à espreita, esperando que passássemos. As portas dos seis apartamentos do andar do edifício da década de 40 tinham aquelas portinholas de vidro, impensáveis hoje em dia. O negócio era meio funesto e muito aterrador. Quando alguém vinha pelo corredor, distraído, uma velha com enorme nariz e olhos profundos abria repentinamente a portinhola e passava a nos observar. Assisti ao Exorcista (1973), de William Friedkin, no Cine Center, e voltei para casa, fugindo de qualquer sombra. Percorri o corredor do edifício no escuro, já que o minuteiro dificilmente funcionava. A sensação de sentir os olhos da velha crivados em mim, na escuridão, após assistir àquele filme, era de deixar o esfíncter abalado em suas mais firmes convicções.

O prédio contava com os inestimáveis serviços de um zelador que havia entrado na justiça trabalhista em 1944. Cardíaco, não podia fazer nada, nem sair do apartamento reservado para ele, no quarto andar. Não o conheci, nos dez anos que morei lá. Ele só podia sair aí pelas 11 da noite, em direção aos bares da José do Patrocínio. Para fazer seu exercício fisioterápico diário, é claro. Mas, segundo os que o conheceram na década de 30, era um homem muito prestativo. No dia em que nos mudamos do prédio houve choradeira coletiva. Foi comovente, pois alguns moradores tinham a firme esperança de que alguém ainda nasceria naquele prédio, após sei lá quantas décadas. Ao deixarmos o prédio enterramos com a esperança. Ficaram os pijamas listrados, as pantufas e os tricôs bolorentos. A velha da janelinha, não. Morreu. Morreu numa noite tempestuosa em que os vizinhos chamaram o nosso republicano que estava no primeiro semestre de Medicina. Ele usou seu reluzente estetoscópio zero quilômetro para descobrir que não seríamos mais assombrados pela velha do 26. Ela fora abrir janelinhas em outro local. Triste, aquilo.

Faz alguns anos, na praia, repeti aquelas situações em que fingimos não estar em casa. Ocorre que Ominoso, o Agourento, foi veranear na mesma praia que eu. Foi muito azar. O sujeito se alternava entre a cidade e a praia. Ia para garimpar más notícias para trazer na volta. Imagine, você está naquele ritmo de segunda semana de praia, quando o sistema nervoso central descobriu que tudo é gandaia, e recebe uma visita que veio lhe relatar tudo que houve de errado durante a semana, trazendo de brinde todos boatos agourentos e todas fofocas insidiosas. É a visita de Ominoso. Ele chega, apenas para cumprimentá-lo, mas aproveita para avisar que a Zélia roubou a poupança da nação, o Fernando vai mandar prender quem urinar em público e que estão roubando rins dos clientes do shopping que aceitam sair com a loira estupenda que os leva ao hotel da banheira cheia de gelo em Buenos Aires. Sem direito à dedução do Imposto de Renda. Entre um copo e outro de cerveja, que recusara veementemente, Ominoso se curva em sua direção e lhe segreda que aquele é o último veraneio, já que no dia 12 o eixo da Terra virará 180 graus, provocando o amendoamento dos olhos dos chineses e a transformação da bolsa de Tókio em cópias da 25 de Março.

Desde então, escondo-me atrás da porta. Quando alguém bate, digo apenas que o pai não está, ou que ninguém mora ali.
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4.9.07

Maravilhas do mundo moderno



Foto: Wikimedia

As maravilhas do mundo moderno

Por Paulo Heuser



A escolha das maravilhas do mundo moderno deu o que falar. Como era esperado, o bairrismo falou mais alto e as acusações sobre pretensas irregularidades pipocaram daqui e dali. É claro que o Cristo Redentor é mais importante que qualquer candidato estrangeiro, devido ao bairrismo, mas temos de reconhecer que a tal Grande Muralha da China é um capítulo à parte. A obra se estende desde o Mar Amarelo, no nordeste da China, até a Mongólia, a noroeste, por 6.350 quilômetros. Se não bastasse tal comprimento, ela ainda apresenta altura média de 16 metros e largura da base da ordem de sete metros. É o sonho de consumo de qualquer empreiteira moderna. Já pensou no edital que daria hoje em dia? Países entrariam em guerra na disputa pela obra. Hoje as coisas mudaram. Não se consegue mais construir um muro desse tamanho. Não há orçamento de ministério da defesa que agüente. O muro do EUA x México teria apenas 1,1 mil km, e foi encolhido pelo congresso de lá.


Houve uma tendência à descentralização da segurança. Os imperadores chineses queriam proteger suas terras da invasão dos mongóis e outros vizinhos belicosos do norte. Hoje constatamos que aqui os vizinhos belicosos podem vir de qualquer direção, contemplando toda Rosa dos Ventos. Não é paranóia. É realidade. Não há mais apenas a fronteira de fato, com outros países. A fronteira estreitou-se ao redor das pessoas e das famílias. Erguemos muros, materiais e simbólicos, ao nosso redor. Uma muralha virtual cerca nossos computadores, pois há milhões de invasores virtuais pretendendo nos causar prejuízo real.


A Muralha da China apresenta uma área lateral de 102 milhões de metros quadrados, aproximadamente. Seria o paraíso dos pichadores, se houvesse pichadores na China. Se fizermos algumas continhas, mesmo as de açougueiro, chegaremos a uma conclusão interessante. Segundo o IBGE, em 2001 havia 45 milhões de domicílios no País. Tomemos apenas a metade deles como sendo casas, são 22,5 milhões, portanto. Destes, consideremos que apenas cinco por cento têm dinheiro para construir um muro de – digamos - dois metros de altura ao redor de um terreno hipotético de 150 metros quadrados. Chegamos à conta de 123,8 milhões de metros quadrados de muros. Somando outros metros de muros das empresas, colégios, igrejas e edifícios residenciais, certamente ultrapassamos a Muralha da China, com folga. Portanto, temos uma maravilha moderna pulverizada, sem sabê-lo. E aqui há pichadores em profusão. Nossa tendência a erguer muros só aumenta, pois a noção de propriedade virou apenas isso, uma noção, muito vaga, proporcional ao tamanho do cão de guarda. Quem não se lembra daquela saudosa tranqüilidade oferecida pelas casas de praia, serra ou campo? As famílias deixavam os muros para trás e partiam em direção ao espaço livre, às fronteiras simbólicas de sebes e flores. Saudosa lembrança, que se foi, levada pela ação dos nossos falsos mongóis. Hoje as famílias vão de muro a muro, do muro da cidade para o muro da casa de fim de semana. Nas praias badaladas os chiqueirinhos protegem os turistas.


Proliferam os condomínios fechados, para residência permanente ou de lazer. Se alguns vizinhos intramuros se tornarem belicosos, sempre se pode construir muro dentro dos muros. Com piranhas e crocodilos nos fossos, quem sabe. Qual será a ordem do American Pit Bull Terrier, do crocodilo e da piranha na escala alimentar? Do homem, eu sei, é inferior a todos.


A Muralha da China se tornou uma das principais atrações turísticas daquele país. E os nossos muros, para que servirão? Para o festival internacional dos grafiteiros, se neles restar algum espaço vago. Mostre-me teu muro e te direi como vives.

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3.9.07

O mundo sumiu

Poster: Disney / Pixar
O mundo sumiu

Por Paulo Heuser


O teu, o seu, o vosso, podem não ter sumido, mas o meu sumiu sob meus pés no domingo. Eu estava caminhando, em pé, por mais pleonásmico que isto possa parecer, quando algo reduziu repentinamente o coeficiente de atrito estático sob meus pés, transformando um movimento retilíneo uniforme (MRU) em um movimento caótico profundamente desordenado (MCPD). Não sei quanto tempo decorreu entre as atitudes vertical e horizontal. Horizontal dolorida, diga-se de passagem. Mas pareceu decorrer uma eternidade.

Um tombo é algo deselegante, desde o início até o fim. Perdemos a elegância, ao tentarmos inutilmente manter a verticalidade, cuja estrutura fica irremediavelmente abalada. Se apenas caíssemos, tipo estava em pé, está deitado, a coisa seria mais palatável, se é que se pode comer um tombo. O nome que se dá a esse processo é tombo. O tombo difere da queda simples pela alegoria. Quem apenas cai, não merece nota, pois realiza o ato com base em princípios físicos bem conhecidos. Nove vírgula oito por segundo ao quadrado, um quarto de volta e tapuf! Está deitado. Dá até para se estimar onde vai cair, em quanto tempo, etc. Se fosse um tombo, seria chamado de tombo linear de primeira ordem. Falta-lhe o estardalhaço. Para tê-lo, necessitamos acrescentar outras variáveis que conferem o caos ao movimento antes de queda. Aí entra a deselegância, pois tal improviso nos movimentos não pode ser elegante, nunca.

Creio que busquei inspiração num ex-proprietário e maitre de um ex-restaurante do Centro. O homem era um prodígio do desastre. Nunca caiu, sempre tombou com maestria e desenvoltura. Se houvesse júri para isso, levaria 10 em tudo, originalidade, alegoria, execução e sei lá o que mais pontuam num tombo. Antes de atingir o chão, ele era capaz de bater em mais de uma mesa, na tentativa de se equilibrar, o que alongava a cena e envolvia os clientes. O Francisco não se contentava em deixar cair uma garrafa de refrigerante, ao servi-la. Ele iniciava a performance quando retirava a garrafa de uma geladeira alta. Retirava apenas uma garrafa, as outras desabavam, sabe-se lá por quê. Em meio à tentativa de segurar todas as 27, ele perdia o equilíbrio e esbarrava nas mesas dos clientes, derrubando algumas, segurando-se na toalha de outras, enquanto as garrafas espatifavam-se no chão. Quem viu, nunca esqueceu. Assim, no passado, pois me parece que o Francisco mudou de ramo, agora anda trabalhando com demolições. A gota d’água foi o dia em que desceu a escada que levava da cozinha, no segundo piso, ao salão inferior. Não contente em descer a escada rolando, junto com uma panela cheia de molho vermelho, inovou, levando uma cliente de roldão, na carona. Esse tombo foi ouvido da Floresta ao Menino Deus. Francisco gostava de performances interativas, pois envolvia a platéia. Servia coca-cola no cinzeiro e pimenta no sagu. O pessoal voltava lá pela emoção. Nem se falava ainda em reality shows. Como a maioria destes, aquilo parecia encenação, coisa forçada. Mas não era. O homem era naturalmente desastrado. Sempre, em tudo.

Descobri ter superado o Francisco, no domingo. Escorreguei no piso de uma cozinha e levei um autêntico tombo, com tudo que tinha direito, o balé pré-tombo, um quase espacato, por mais inverossímil que pareça, e o longo desabamento. Superei o Francisco, ao manter a panela que eu carregava na posição vertical. Quem viu, não esquecerá, pois não passou fome.
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