O agourento
Foto: Sei lá de quem.
O agourento
Por Paulo Heuser
Quem nunca fingiu não estar em casa que jogue a primeira pedra. Morei numa república de estudantes, na Cidade Baixa, no tempo que porteiro eletrônico era coisa de filme de ficção científica e vendiam refrigerante de cola de porta em porta. Portanto, sábado era dia de atender à porta o tempo todo. Os vendedores de refrigerantes grudentos revezavam-se com vendedores de qualquer coisa, principalmente os almanaques e revistas que ninguém ouvira falar. Azar mesmo era pegar uma vizinha que vendia algum tipo de santo para alguma igreja. Não dava para enxotá-las. Dava apenas para tentar esconder a Playboy e a Ele e Ela em baixo do tapete, torcendo para que a corola não tropeçasse nele. Em compensação, não havia vendedores de gás o tempo todo. Quem perdia o dia, se danava. Só buscando no depósito e arrastando a coisa por quatro andares.
Por algum motivo qualquer, éramos os únicos estudantes naquele prédio. Éramos também os únicos que não estavam na reta final para o pouso nos campos do Senhor. Êta eufemismo bonito! O pessoal ali tinha ouvido as notícias da guerra, ao vivo, nos rádios Grundig. Da primeira, bem entendido. Havia uma vizinha de andar que ficava à espreita, esperando que passássemos. As portas dos seis apartamentos do andar do edifício da década de 40 tinham aquelas portinholas de vidro, impensáveis hoje em dia. O negócio era meio funesto e muito aterrador. Quando alguém vinha pelo corredor, distraído, uma velha com enorme nariz e olhos profundos abria repentinamente a portinhola e passava a nos observar. Assisti ao Exorcista (1973), de William Friedkin, no Cine Center, e voltei para casa, fugindo de qualquer sombra. Percorri o corredor do edifício no escuro, já que o minuteiro dificilmente funcionava. A sensação de sentir os olhos da velha crivados em mim, na escuridão, após assistir àquele filme, era de deixar o esfíncter abalado em suas mais firmes convicções.
O prédio contava com os inestimáveis serviços de um zelador que havia entrado na justiça trabalhista em 1944. Cardíaco, não podia fazer nada, nem sair do apartamento reservado para ele, no quarto andar. Não o conheci, nos dez anos que morei lá. Ele só podia sair aí pelas 11 da noite, em direção aos bares da José do Patrocínio. Para fazer seu exercício fisioterápico diário, é claro. Mas, segundo os que o conheceram na década de 30, era um homem muito prestativo. No dia em que nos mudamos do prédio houve choradeira coletiva. Foi comovente, pois alguns moradores tinham a firme esperança de que alguém ainda nasceria naquele prédio, após sei lá quantas décadas. Ao deixarmos o prédio enterramos com a esperança. Ficaram os pijamas listrados, as pantufas e os tricôs bolorentos. A velha da janelinha, não. Morreu. Morreu numa noite tempestuosa em que os vizinhos chamaram o nosso republicano que estava no primeiro semestre de Medicina. Ele usou seu reluzente estetoscópio zero quilômetro para descobrir que não seríamos mais assombrados pela velha do 26. Ela fora abrir janelinhas em outro local. Triste, aquilo.
Faz alguns anos, na praia, repeti aquelas situações em que fingimos não estar em casa. Ocorre que Ominoso, o Agourento, foi veranear na mesma praia que eu. Foi muito azar. O sujeito se alternava entre a cidade e a praia. Ia para garimpar más notícias para trazer na volta. Imagine, você está naquele ritmo de segunda semana de praia, quando o sistema nervoso central descobriu que tudo é gandaia, e recebe uma visita que veio lhe relatar tudo que houve de errado durante a semana, trazendo de brinde todos boatos agourentos e todas fofocas insidiosas. É a visita de Ominoso. Ele chega, apenas para cumprimentá-lo, mas aproveita para avisar que a Zélia roubou a poupança da nação, o Fernando vai mandar prender quem urinar em público e que estão roubando rins dos clientes do shopping que aceitam sair com a loira estupenda que os leva ao hotel da banheira cheia de gelo em Buenos Aires. Sem direito à dedução do Imposto de Renda. Entre um copo e outro de cerveja, que recusara veementemente, Ominoso se curva em sua direção e lhe segreda que aquele é o último veraneio, já que no dia 12 o eixo da Terra virará 180 graus, provocando o amendoamento dos olhos dos chineses e a transformação da bolsa de Tókio em cópias da 25 de Março.
Desde então, escondo-me atrás da porta. Quando alguém bate, digo apenas que o pai não está, ou que ninguém mora ali.
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