13.9.07

Raízes

Foto: Paulo Heuser
Raízes

Por Paulo Heuser


O norte-americano Alex Haley escreveu o grande sucesso literário Negras Raízes (Roots, 1976), romanceando a saga da sua família, desde a Gâmbia, África Ocidental, até os dias de então, nos EUA. O personagem principal era um ancestral do autor, Kunta Kinte, que deve estar na memória de muita gente, após a longa série apresentada pela Rede Globo na década de 80. Alex Haley teve uma trabalheira enorme para localizar as raízes da sua família, pois não havia registros escritos. Teve de percorrer cidades e aldeias, ouvindo histórias de anciãos, à procura de elos que o ligassem ao passado.

Raízes não se movem, via de regra. Nós nos movemos, nos mudamos, somos mudados e escolhemos trilhas diversas como parreiras. Escolhemos caminhos conforme alternativas que surgem pela frente. Se parece haver mais luz à direita, vamos à direita. Cedo perdemos de vista as raízes. Mesmo estas, podem ter se originado de planta mais antiga, de outro lugar. Procurar nossas raízes, portanto, é apenas um ato simbólico, até porque necessitamos estabelecer referenciais de tempo e de ramos de família, já que somos a síntese genética de tribos diversas. Porém, por alguma razão, a procura de origens conforta o espírito, algo como um retorno à casa. Quando a casa não mais existe, restam o solo, a paisagem e o rio. Materializamos a busca às raízes. Faz bem, psicologicamente, encontrar raízes, mesmo que simbólicas.

Não tive o mesmo trabalho que Kunta Kinte teve, para procurar raízes. Vali-me de coisas às quais ele não teve acesso. Primeiro, há uma excelente base de dados genealógica da família, perfeitamente documentada. Não precisei ouvir dezenas de relatos de anciãos. Segundo, até o Google Earth sabia onde ficava aquela minúscula cidade às margens do Rio Mosela (Mosel, em alemão ou Moselle, em francês). Esse afluente do Reno serpenteia através da região do Hunsrück, no estado da Renânia-Palatinado (Rheinland-Pfalz), localizado no sudoeste da Alemanha. Serpenteia através de um vale pontilhado por pequenas e belas cidades medievais, às margens do rio, cercadas de parreirais de uva Riesling e caracterizadas pelas igrejas de torres pontudas. Pequenas cantinas familiares, onde predominam os vinhos brancos, espalham-se por toda parte.

Cheguei a Enkirch, na margem direita do Mosela, cidade de 1650 habitantes, sem saber o que procurar, já que tinha em mente a inexistência de parentes, nos dias de hoje. Um bombardeio durante a Segunda Grande Guerra destruíra o cemitério, resumindo as lápides ao pós-guerra. Descobri, no entanto, que a memória genética existe, pelo menos psicologicamente. Bebi da água e do vinho da região, dormi na casa da Frau Haussmann-Kanski, que me fez sentir em casa, conversei com pessoas alegres e amáveis. Provei do schnitzel com batatas, das geléias da região e até de uma curiosa e xaropenta aguardente de morangos. Curiosos, perguntavam-nos sobre a presença de brasileiros por lá, fora da rota turística convencional. Descobri também que o idioma do bisavô Philipp estava guardado, mas não morto. Consegui me comunicar razoavelmente bem, apesar de uma sutil diferença na pronúncia do “ch” como “sch”, que tornava os locais uma espécie de alemães cariocas, chiando. Pequena diferença do dialeto Hunsrückisch. Lá, o estrangeiro que consegue soletrar isso de olhos fechados, em menos de cinco minutos, ganha uma garrafa de aguardente de morangos. Havia um baile de sábado à noite, defronte ao Biergarten onde jantamos. As Polkas e marchas lá tocadas eram as mesmas tocadas nas nossas Oktoberfest. Também lá, o tempo parou.

Deixei Enkirch com a sensação de haver encontrado as raízes de alguma coisa. As raízes de um povo feliz, talvez. Materializei as lembranças, em forma de uma pedra e uma folha de parreira Riesling, que trouxemos na volta. Lembrei-me de Enkirch ao assistir ao programa Menu Confiança, da GNT, no qual o apresentador explora os vinhos de Bernkastel-Kues, apenas uma serpenteada abaixo, no Mosela.

Resta-me descobrir por que são tão felizes, já que eles também têm uma espécie de Senado, a Câmara-Alta.
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