Grundig
Foto: Paulo Heuser
Grundig
Por Paulo Heuser
Não sei até agora por que aceitei fazer uma hora feliz num mosquinha próximo da Volta do Mercado. Garantiram-me que lá serviriam um dos piores pastéis do Centro. Contudo, o pièce de résistance seria um exclusivo bauru de mocotó à senegalesa. O Brasil entraria com os ingredientes e o Senegal com o calor. Apertados ao redor daquela mesinha quadrada, com pés de cama de hotel de rodoviária do interior do Interior, procurávamos não grudar as mãos na toalha xadrez de plástico. Aquelas toalhas fazem as vezes de pega-moscas. Foi quando chegou o Grundig. Também pensei haver entendido mal, mas o homem chegou falando “grundig”, em meio a uma espécie de ranger de dentes. Fique tentado a chamá-lo de Telefunken, porém me avisaram que ele ficaria furioso, pois odiava concorrência. Pelo visto, Grundig era freguês contumaz, pois até as moscas o evitavam.
Antes que eu perguntasse, e criasse uma crise de relacionamento no mosquinha, me avisaram de que o Grundig falava daquele jeito estranho porque sua dentadura soltara-se há uns 20 anos. Ele falava ralando os dentes, para não perdê-los durante uma proparoxítona mais entusiasmada. Quase tudo que ele falava soava como “grundig”. O sujeito é famoso por saber das coisas dos bastidores. Ele sabe tudo que corre por baixo dos noticiários oficiais e das toalhas xadrezes de plástico. Grundig pediu um especial e uma fanta uva, antes de comentar, entre rangidos pavorosos dos dentes:
- Errr, grundig, vocês viram?
- Vimos o que, Grundig? O Calheiros?
- Err, não, isso foi ontem! Errr, grundig, falo da F1.
- Do quê?
- F1, McLaren, do escândalo com a Ferrari! Errr, grundig.
- Ah, esse escândalo.
- Sim, errr, já haviam eliminado a McLaren, deste e do próximo campeonato. Um inglês baixinho e barrigudo da Ferrari já ria, enquanto falava ao telefone, gritando:
- È finitto. Siamo campioni! – Terminou! Somos campeões.
Todos haviam ouvido a notícia, depois declarada falsa, sobre a eliminação da equipe inglesa. Grundig olhou para os lados, desconfiado, como se procurasse por agentes disfarçados do SNI. Olhava insistentemente para o cego que jogava videopôquer. Seria ele? O cachorro dele fornicava com a perna da máquina, o que era muito suspeito, em se tratando de uma cadela-guia de cego. Grundig baixou um pouco a cabeça e confidenciou:
- Errr... Outro sujeito da Ferrari gritou, em tom de chacota:
- Siamo salvati! Questo è il nostro ideale! – Estamos salvos! Este é o nosso objetivo!
- É isso! – gritou entusiasmado um gordão da McLaren, enquanto saía porta afora, sacando do celular. Ninguém entendeu nada, até o dia seguinte. Somente ele pescara as palavras grifadas: Ideale e Salvati.
- O avião chegou a Brasília ao cair da noite, e decolou antes das 22 horas, levando uma senhora a bordo. Quando a última sessão do julgamento da McLaren iniciou, ninguém contava com a entrada daquela mulher de olhos esbugalhados e dedo em riste, gritando palavras de ordem em todas as direções, avisando que todo mundo estaria liberado para votar em quem bem entendesse. Seja como for, o resultado do julgamento foi outro. A McLaren levou uma multa, mas continuará viva. Por via das dúvidas, levaram a mulher de volta, imediatamente. Havia mais a fazer em Brasília. Votariam a prorrogação da CPMF.
Grundig saboreou cada palavra, em meio ao ranger dos dentes de acrílico. Deliciou-se com o bauru, com cuidado, pois a mandíbula poderia conquistar autonomia. Bebeu a fanta uva no gargalo, enquanto o cego se metia na conversa:
- Bem, pelo menos venceu a democracia...
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Marcadores: calheiros, democracia, ética, Fórmula 1, julgamento
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