30.10.07

Aipode


Foto: Wikipedia
Aipode

Por Paulo Heuser


Acredito piamente na evolução do homem, em tese. Há horas em que Charles Darwin – pai do evolucionismo – nos parece um idiota, graças às idiotices que o homem comete durante sua evolução. Faz parte do processo, com certeza. É caindo que se aprende, etc e tal.

Houve época em que o homem se distraía em guerras, conquistas, caçadas e outras atividades lúdicas, geralmente ao ar livre, em contato direto com o ambiente. Sujeitos de aparência saudável e vida curta. Então inventaram o teatro, forma de diversão mais segura, também mais monótona, porém distraía nas horas vagas, entre uma batalha e outra. Guerras deixaram de ser distração, passaram a modo de ganhar o pão de cada dia, após a invenção das padarias.

Os nobres passaram a ouvir música de orquestras, quartetos e outros etos. Com a música, veio a dança. Veio o rádio. A palavra foi levada aos mais distantes grotões. Famílias reuniam-se ao redor da maravilhosa caixa falante para ouvirem música e as novidades que corriam mundo. Do cinema e da televisão, desnecessário falar. Cinema é programa para dois. Há toda aquele atmosfera de aconchego, escurinho e centenas de pessoas comendo pipocas e abrindo latas. Ah, esqueci os celulares tocando. A televisão é mais democrática, permite qualquer coisa, por parte dos espectadores. Pipocas, cerveja, churrasco, vatapá, mocotó, cueca-virada e buchada de bode. O limite é a parede do vizinho.

A evolução tornou o homem mais individualista. Das atividades de lazer coletivas, evolui em direção ao individualismo. Prova disso é o tal de tocador de mp3, mp4, etc - os aipodes. É um aparelhinho para autistas, evolução dos radinhos de pilha, as populares caixas de abêia. O aipode não tem alto-falante. Só ouve quem tem fone – os brancos são mais cobiçados, pois denunciam em eventual iPod verdadeiro. A invenção do aipode é uma desgraça ainda maior do que a invenção da pipoca no cinema. Tenho a opção de não ir mais ao cinema. Porém, dos aipodes não posso fugir. Estão por toda parte. Chego ao balcão de informações e cumprimento com um sonoro bom-dia a pessoa que está sentada ouvindo alguma coisa no aipode. A resposta que recebo é: - Hein? Por toda parte há gente usando aipodes, enquanto ignoram telefones que tocam, não dão licença para quem pede e obrigam quem não usa aipodes a repetir todo início de conversação.

Faz algum tempo, observo pessoas que ficam sentadas de olhos fechados enquanto ouvem seus aipodes. Perecem dormir. Não acredito que isso possa ser uma evolução. Pode até ser, para os fabricantes daquelas caixinhas, mas para o homem, nunca. Creio que as engenhocas em geral têm bestificado o homem. O próximo passo poderá ser o aipode sem fio, implantado diretamente no cérebro. Aquelas pessoas que parecem dormir podem estar esperando um comando. Receio que os aipodes sejam apenas controles remotos dos Tamagoshis em que nos transformaram.

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29.10.07

Ah, Paris, Paris...



Foto: Paulo Heuser
Ah, Paris, Paris...

Por Paulo Heuser


Cheguei lá por acaso. Em outros tempos, eu ia muito à Zona Sul. Ia pedalando até Belém Novo. Por vezes, ao Lami. Acordava bem cedo, nos domingos, calibrava os pneus da magrela e seguia em direção ao Gasômetro, onde angariava algum outro suicida em potencial para a empreitada. A ida até que não era tão complicada, seguindo pela Wenceslau Escobar, Coronel Marcos, Tramandaí e Estrada Juca Batista. Com o vento de cauda, ia-se facilmente. Na volta, a coisa era outra. Já se sentia um pouco as pernas, especialmente com o vento de frente, ali pelo Aeroclube de Belém Novo. Porém, o maior desafio nos esperava lá pela encruzilhada da Juca Batista com a Edgar Pires de Castro, para cá do acesso a Restinga. Lá enfrentávamos o cheiro de carne assada que emanava da churrascaria. Com o meio-dia se aproximando, o café da manhã gasto há muito, aquilo era uma tortura terrível. Só vegetarianos passavam por ali incólumes.

Domingo cruzei defronte àquela churrascaria, desta vez de carro. O meio de transporte mudou, porém o cheiro é o mesmo, passados tantos anos. Não resisti, parei e entrei. Não me arrependi. É uma das ótimas alternativas aos pasteurizados rodízios sejam lá do quê. Xixo, salada, polenta e o melhor pão com alho que o dinheiro pode comprar.

Em meio ao almoço, a conversa da mesa ao lado se sobressaía em meio à zoeira de fundo comum aos almoços de domingo. Uma família típica sentava-se ao redor da mesa. A que parecia ser a sogra, suspirava longamente, enquanto dizia:

- Ah, Paris, Paris...

A que parecia ser a nora, uma loira baixinha e vivaz, quase saltou da cadeira para perguntar à sogra:

- O que tem Paris?

- Ah, Paris tem o Sena... – respondeu-lhe a sogra, enquanto recostava-se na cadeira, com o olhar perdido do outro lado do Atlântico.

- Nós temos o Dilúvio! – rebateu a baixinha.

Os que pareciam pai e filho entreolharam-se, pediram outra cerveja e mantiveram-se mudos, cada um olhando para seu prato.

- Ah, Paris tem o Moulin Rouge... – o olhar da sogra transbordava de romantismo. O marido continuava concentrado no prato.

- O que é que tem de mais num bordel cheio de mulheres padronizadas, caro prá burro, ainda por cima? Aqui temos bordéis baratos, com mulheres para qualquer gosto, altas, baixas, gordas ou magras.

- Ah, Paris tem a boemia do Montmartre...

- E nós temos a da Cidade Baixa. Nada no mundo é mais boêmio do que a Cidade Baixa!

Prudentes, pai e filho foram fumar do lado de fora, observando o movimento da Juca Batista. Levaram os copos e a garrafa. Do lado de dentro, fez-se um relativo silêncio, nas outras mesas. Ninguém queria perder nada daquela batalha sócio-geográfica, travada pela sogra sonhadora oposicionista e a nora militante de alguma facção situacionista não-bem identificável. Quando pediram a opinião do garçom, este prontamente respondeu que o doce de abóbora estava imperdível.

- Ah, Paris tem os Bois de Bolougne...- ela já parecia divertir-se com a batalha.

- E nós temos a Redenção! – mandou ver a baixinha espevitada.

- Ah, Paris tem aqueles prédios baixos, todos iguais, permitindo visão de toda a cidade...

- E nós temos o IAPI! Nada no mundo é mais igual do que o IAPI. Se largarem um francês lá dentro, ele nunca sairá!

- Ah, Paris não tem flanelinhas...

- E nós temos aos montes, por tudo... – a baixinha calou-se subitamente, enquanto a sogra sorria marotamente.

A conversa reiniciou nas outras mesas. Naquela, da sogra e da nora, reinou silêncio. Pai e filho retornaram, após terem se certificado de que a batalha cessara. O pai chegou a perguntar ao garçom sobre o doce de abóbora. Contudo, desistiu, ao sentir o clima que se instalara naquela mesa. Pediu a conta e seguiram seu caminho. Curiosamente, lá não havia flanelinhas.

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Rigatoni e biocombustível


Foto: Paulo Heuser
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Rigatoni e biocombustível


Por Paulo Heuser



A edição de 20 de outubro de 2007 do periódico La Repubblica, da Itália, publicou entrevista com o empresário Guido Barilla, da empresa de mesmo nome, sobre os motivos da alta de preços das massas, que teriam subido 15% desde dezembro de 2006. Barilla menciona os dois maiores culpados: a mudança climática e o presidente George Bush, dos EUA. O empresário apontou o aumento do preço da sêmola, devido às quebras nas últimas duas safras, como um dos fatores para explicar o aumento do preço da massa. Outro fator seria a utilização dos grãos para produção de biocombustíveis, seguindo a política de incentivos do presidente norte-americano.

Encontrei citação à essa reportagem num sítio italiano chamado
ecoblog. Além de reproduzirem a entrevista com Guido Barilla, alinham a política de Bush, Lula e Massimo D’Alema, Ministro de Negócios Estrangeiros da Itália, em oposição às opiniões do empresário e de Fidel Castro, que condenam o uso de grãos para produzirem combustíveis. Depois de razões e contra-razões, o que me chamou a atenção, no blog, foi a foto que adornava o artigo. Uma maravilhosa foto de três pedaços de rigatoni, sobre fundo vermelho. A foto é de minha autoria. Eu havia postado aquela foto na minha página de compartilhamento de fotografias no Flickr , apenas 36 horas antes. Quem a copiou, incluiu os créditos, é verdade, porém a utilizou para fins comerciais, já que aquele blog está forrado com publicidade.

Já posso imaginar a confusão enfrentada pelos consumidores de combustíveis, no futuro. O sujeito chegará ao posto de serviços e poderá escolher entre muitos tipos diferentes. Haverá diesel alla matriciana, diesel ai funghi, para carros antigos e gasolina all’arrabbiata, para quem quiser um desempenho mais quente do motor. Para os mais ecológicos, diesel all pesto, opção de combustível verde. Não abrirão mão da gasolina di grano duro, para os carros manterem desempenho al dente. E o empurrol de aditivos também se adaptará aos novos tempos e aos novos combustíveis. Motores que utilizarem aditivo de parmigiano reggiano, rodarão mais, no caso dos combustíveis vermelhos. Para o diesel all pesto, será indicado um aditivo pecorino. Os óleos minerais e sintéticos estarão com os dias contados. Os motores que utilizarão os biocombustíveis di grano duro usarão azeite de oliva. Da cozinha ao motor, ou vice-versa. Carros sofisticados exigirão lubrificante virgem extra, de baixíssima acidez. Já os um ponto zero, poderão levar um semi-oliva, batizado com óleo de soja. A oferta de marcas de lubrificantes saltará, da atual meia-dúzia, para aquele monte de marcas que há nos supermercados, em garrafas ou latas. Haverá degustação de lubrificantes para motores.

Fiquei meio chateado, já que o blog italiano utilizou minha foto para fins diversos daqueles a que a página no
Flickr se destina. Por isso não fiquei nem um pouco constrangido, quando acrescentei um comentário naquela postagem do blog italiano. Não só Guido Barilla constatou que a massa dele subiu 15%. Eu também. Quando comprei os rigatoni para fazer a foto, concordei com Guido, pois achei os rigatoni Barilla muito caros. Conforme postei comentário no ecoblog, a marca daquela massa da foto não é Barilla, é Zara.


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26.10.07

Os pés

Foto: Paulo Heuser
Os pés

Por Paulo Heuser


Quem escreve, externando opiniões, sabe que algum dia voltará uma pedrada. É difícil dizer que a primeira pedrada dói mais. Todas doem, pois incomodamos alguém. Indo à chuva, nos molhamos. Contudo, de alguma forma aprendemos a conviver com as pedradas. Fizemos por merecer, portanto devemos achar uma saída, que geralmente gira em torno de escrever à pessoa ofendida e expor nossa posição de forma mais aceitável, se é que isto é possível.

Imagens podem chocar tanto ou mais que palavras. Há filmes famosos que trilharam o avesso da história usual. São os filmes que geram romances escritos, contrariando a ordem natural, onde romances inspiram cineastas. Hoje talvez esteja esquecida nos arquivos do tempo, mas havia uma foto que recheou todos os jornais e periódicos do mundo. Em 8 de junho de 1972, o fotógrafo Nick Ut tirou uma foto da menina vietnamita Kim Phuc, na época com nove anos de idade, correndo nua, completamente queimada, após sua aldeia ter sido bombardeada com napalm. Quem viveu aquela época, lembra-se dela.

Eu caminhava, como de hábito, levando a câmera a tiracolo, quando me deparei com dois pés descalços que se projetavam sobre o passeio, entre floreiras. Estou habituado com qualquer tipo de cena envolvendo gente, pois caminho muito pelo Centro. Porém, não é comum ver apenas pés. As pessoas tendem a abrigar os pés, seja por questões térmicas, seja pelo instinto. Sei lá por que, mas tendemos a proteger mais os pés. Dificilmente alguém deixa de fora apenas os pés. Pés juvenis, o que piorava a cena. Cena que fiz questão de registrar, talvez egoisticamente. Publiquei a cena em sítios de compartilhamento de fotografias. Alguém que as viu, me desafiou a escrever sobre aquela cena. Bem feito, levei nos dedos. Conheço um sujeito que defende a informalidade de todos os contratos, já que o que está escrito não pode ser apagado. Fiquei com vontade de apagar aquela foto, em vão, pois já estava impressa atrás da retina de quem a viu.

Ao lado dos pés havia um saco de salgadinhos, estilo esterquitos. Acabei editando a foto, retirando a cor de tudo que cercava aqueles pés. Não faço a mínima idéia de quem era o dono, ou dona, daqueles pés. Na verdade, não tentei descobrir. Melhor assim, eram apenas dois pés, sem rosto, sem corpo e sem alma. Ainda assim, os pés de alguém, presumidamente. De alguém que já não se importava com os próprios pés, que poderiam ser fotografados ou não. Será que o dono daqueles pés imaginou que eles poderiam se tornar objeto da curiosidade alheia? Ninguém reparou naqueles pés, enquanto cena real do cotidiano. Revelaram-se pela foto, quando passaram a chocar os eventuais espectadores. A cena faz parte do mundo externo, aquele que devemos evitar a todo custo. A foto nos mantém na redoma, longe da desgraça alheia. Lá somos todos cúmplices, por clicar, por observar.


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25.10.07

Roda do Ano



Figura: Wikipedia

Roda do Ano


Por Paulo Heuser


A irmã do Zé me fez voltar à juventude. Em memória, bem entendido. Enquanto me contava casos ocorridos na escola, viajei até 1973. Naquele ano troquei de colégio. Deixei o Colégio Mauá, em Santa Cruz do Sul, e fui cursar o então Terceiro Científico no Colégio Farroupilha, em Porto Alegre. Novo prédio, novos colegas, nova cidade, tudo era novo, inclusive os costumes. Cada colégio cultuava rituais próprios, principalmente aqueles de despedida da vida escolar secundária, hoje Ensino Médio. Os terceiranistas mantêm as tradições, por mais estranhas e peculiares que estas possam parecer. No Colégio Farroupilha, havia a guerra das bexigas cheias d’água, travada entre as duas turmas de terceiranistas, com inevitáveis respingos nos demais alunos. Para desespero do então diretor, Professor Thys, desde o final de outubro, até tornarem-se ex-alunos, os anjos travavam batalhas realmente molhadas. Melhor do que bombas ou ovos, dizia o mestre de Física, Professor Rasia.

A irmã do Zé queixava-se de mais uma efeméride importada – Halloween. Uma mãe teria feito um escândalo ao descobrir que a escola não preparara atividades especiais para esses dias tão importantes - na opinião dela -, já que gastara uma quantia substancial na aquisição de capa, abóbora laser com MP4 e uma vassoura biturbo. A irmã do Zé tentara argumentar que o Halloween era uma efeméride de origem irlandesa, dos descendentes dos celtas, que a única coisa celta que havia ali era o carro dela, e assim por diante. Outras queixas seguiram-se, inclusive com ameaças de retirarem os filhos daquela escola que não honrava as tradições, mesmo que irlandesas. Novamente, de nada adiantaram os argumentos de que o Halloween seria a deturpação de uma festa pagã conhecida como Samhain que fazia parte da Roda do Ano – calendário das oito grandes festividades celtas. Muito exaltado, um pai argumentava que a origem não importava. O importante era a moda. Sua filha ganhara uma bolsa porta-guloseima Luis Vitão recheada com chocolates italianos Amedei Porcelana. Foi o mesmo pai que sugeriu a troca da comemoração da Revolução Farroupilha pela realização de uma festa de peões boiadeiros, na própria escola. Ele já havia comprado para o filho um autêntico chapéu Stetson da 25 de Março.

Lembrei-me da professora de Geografia, cujo nome não lembro. Ela ciceroneava uma professora norte-americana que veio conhecer alguns colégios brasileiros. Quiseram o destino e a mira do colega Galinhão, que as duas professoras saíssem porta afora no momento exato em que a bexiga esturricada d’água lá entrava. Encontraram-se na soleira, bexiga e professoras. A pobre mestra visitante ainda tentou segurar, instintivamente, aquele petardo aquoso. Ela ainda gotejava, quando observou que os alunos brasileiros comemoravam o Halloween de uma forma diferente. Assustadoramente molhada, porém limpa. Melhor do que jogarem abóboras uns nos outros – diria o Professor Rasia.


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22.10.07

Fontana Rossa


Foto: Wikipedia
Fontana Rossa

Por Paulo Heuser


Olho para meu prato e vejo que algo realmente vai mal. Não é de hoje, por sinal. Em Pisa, na Itália, assisti à manifestação pacífica de um grupo de idosos que exigia a Itália para os italianos. – Fora com os estrangeiros! – gritavam eles. Tocavam tambores e discursavam contra a globalização. Referiam-se aos imigrantes, não aos turistas. Quase todo mundo gosta dos turistas que chegam, consomem e partem. Deixam o dinheiro, levam as tralhas. Desconfio que em Veneza, também na Itália, não há mais venezianos. Há apenas turistas e imigrantes. Tornou-se difícil encontrar lá alguém que fale italiano. Ouve-se inglês, japonês, chinês, somali, albanês, árabe, amárico, tigrinya e português. Há duas formas básicas de se diferenciarem os imigrantes dos turistas em Veneza. A primeira diz respeito à bandeira. Tome uma pequena bandeira colorida presa num pedaço de madeira e ande. Todos aqueles que seguirem atrás, são turistas. Não é um teste muito preciso, pois há os turistas independentes, não aderentes aos grupos, e há de se repetir o teste negativo com outras cores de bandeiras. O teste mais preciso é o da cadeia de consumo. É simples: quem consome é turista, quem provê é imigrante. Há um terceiro teste, ainda não homologado. É o teste do olhar abobalhado. Quem olha abobalhado, em todas as direções, é turista. Quem olha fixamente para o bolso do turista, é imigrante. Fácil assim. Câmeras fotográficas também dão alguns indícios quanto à natureza da estada. Ridículos chapéus em forma de guarda-sol com cata-vento também podem identificar, ou um turista japonês, ou um imigrante vendedor de chapéus ridículos. Agora, se alguém não consome nem provê, poderá ser um veneziano autêntico. O último foi visto em 1946.

Já na França, país que torpedeou a constituição européia unificada, há autênticos franceses natos. As mulheres francesas são as de mais fácil identificação. Andam com um cachorro e enfiam os sapatos dentro de sacos plásticos que protegem-nos contra os cocos dos cachorros dos outros franceses natos. Turistas e imigrantes não têm cachorros, salvo raras exceções. A forma como carregam o pão - a baghette – também trai os franceses natos. Eles carregam aquilo com pompa e circunstância. Os imigrantes não comem baghettes. Os turistas carregam baghettes como se carregassem bastões de líderes de torcidas norte-americanas. Há também na França um forte movimento contra os estrangeiros. Os imigrantes ameaçam os empregos inexistentes que pertenceriam aos franceses, caso existissem. Assim, se ainda houvesse emprego de cobrador – substituído pelas máquinas – provavelmente contratariam um imigrante, por salário menor do que aquele percebido por um francês. Coisas da automação e da globalização. Porém, na França há um certo horror dos turistas, também. Pudera, além dos bárbaros germânicos e anglo-saxônicos que pedem cerveja nos cafés, há outros que pedem rodízio de pizza e coca-cola para um autêntico maître francês. Este, por sua vez, transmitirá o pedido ao chef de cuisine – formado pela escola Cordon Bleu –, que mandará os turistas à invenção do Dr. Joseph Ignace Guillotin, respeitado cientista e médico da saúde pública francesa. O aparelho apelidado guilhotina, em sua homenagem, socializou as execuções promovidas durante a revolução francesa. Nada mais de forca para os pobres e machado para os ricos. O chef de cuisine fará uma pequena corruptela da Prece Revolucionária, de 1792: “Repleta teu cesto divino com a cabeça de turistas que bebem coca-cola... Santa Guilhotina, protetora dos patriotas, Rogai por nós. Santa Guilhotina, calafrio dos turistas, Protegei-nos!”.

Da Itália vem agora o protesto da desconhecidíssimo movimento revolucionário anarquista FTM Azionefuturista 2007. Isso parece nome de festival de música de San Remo televisionado pela tv do Berlusconi. O presidente, secretário geral, militante e terrorista de plantão da organização jogou corante vermelho na Fontana di Trevi, uma das principais atrações turísticas de Roma. Fico a imaginar o que aconteceria se alguém jogasse uma daquelas bandeirinhas coloridas, dos guias de turismo, dentro da fonte. Um banho coletivo, com certeza. Fico também a imaginar como um grupo anarquista escolhe seu líder, já que é anarquista. Repudiam toda a hierarquia que não é naturalmente aceita. E qual é? Por isso, os grupos anarquistas tendem a abrigar apenas um militante, o chefe, naturalmente aceito por ele mesmo.

Paciência. Olho para o prato e resolvo comer, antes que o joelho de porco e a polenta brustolata esfriem. Ou que o sushi esquente. Começo a entender o que leva à xenofobia, antes mesmo de derramarem o molho chimichurri sobre tudo.


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21.10.07

Dona Cotinha e o Pavoroso


Foto: Wikipedia
Dona Cotinha e o Pavoroso

Por Paulo Heuser


Há segredos mais bem guardados do que o terceiro de Fátima. Um deles é a idade da Dona Cotinha. Sabe-se apenas que ela não era mais moçoila quando um cabo austríaco dava palestras nas cervejarias de Munique. Guerras vieram, guerras foram, e a Dona Cotinha manteve uma rotina de vida inabalável. Dela faz parte a ida à missa. Perdeu apenas sete, em toda a vida, nos dias dos nascimentos dos filhos. Mesmo assim, o padre deu uma passadinha pelo hospital, para não deixar a fiel número um desamparada espiritualmente. Chova sapos, canivetes, ou mesmo chuva, Dona Cotinha percorre diariamente o mesmo caminho entre a sua casa e a igreja. Todos a conhecem. Chama a atenção a exatidão com que mantém o percurso. Ela não se desvia um milímetro daquele caminho planejado em algum momento do passado. Nem mesmo depois da chegada do Pavoroso.

Foi numa terça-feira de sol. Dona Cotinha passava pelo sobrado do número 128 da rua em que mora, quando levou o maior susto da sua vida, até então. O Pavoroso jogou-se contra o portão emitindo rugidos pavorosos, no momento exato em que Dona Cotinha cruzava rumo à missa. Ela chegou a sentir o hálito quente da fera, um enorme Rottweiler com ares de mascote do demo. Dona Chiquinha do 142 veio em socorro e deu água de melissa à pobre fiel. Uma hora e cinco depois, novo susto. Era hora da volta. Apesar dos sustos, Dona Cotinha não alterou o percurso, concebido em outro século e outro milênio. Continuou passando defronte ao portão do 128, para o encanto do Pavoroso. Ele recebeu o nome na Apocalypse Beast, fornecedora de feras assassinas para segurança patrimonial. Os Souza não agüentaram mais a imensa socialização a qual foram submetidos, em sete ocasiões, e encomendaram o modelo mais avançado de fera assassina à disposição. Compraram o Pavoroso.

Os filhos da Dona Cotinha tentaram convencê-la a trocar o itinerário de casa até a missa, sem sucesso. Ela encarava o encontro com o Pavoroso como uma espécie de prova da fé. Mesmo sabendo que o susto ocorreria, Dona Cotinha assustava-se como da primeira vez. Os filhos da viúva tentaram falar com os Souza, que se mantiveram irredutíveis. Até o padre tentou convencer, tanto Dona Cotinha a alterar o percurso, como os Souza a prender o Pavoroso. Apesar das costas quentes, não obteve sucesso. Os sustos bidiários não passaram despercebidos nas consultas com o cardiologista que atende Dona Cotinha. Sem solução amigável à vista, os filhos dela entraram na justiça contra os Souza e o Pavoroso. Depois de subidas e descidas nas varas da lei, a demanda da Dona Cotinha não prosperou. Venceu a tese de que os Souza não poderiam ser culpados se as ondas sonoras emitidas pelo Pavoroso cruzassem o portão. Dona Cotinha que alterasse o itinerário.

Foi também numa terça-feira. Tudo começou igual. Dona Cotinha saiu de casa, amparada pela sombrinha preta, e passou defronte o portão da casa dos Souza. A meninada não interrompia mais as brincadeiras para assistir ao “cagaço da velha”. Pavoroso ouviu o som familiar dos saltos dos sapatos da fiel e arremessou-se na direção do portão. O que se seguiu, quebrou qualquer rotina imaginável. O pavoroso rugido do Pavoroso transformou-se em uivo dolorido - um profundo e desesperado ganido, daqueles que gelam a espinha de qualquer alma penada. Um lobisomem não faria melhor. Pavoroso não se limitou ao ganido, partindo numa louca carreira de destruição de tudo que encontrou pelo caminho. Estraçalhou a caixa do correio, atacou três anões de jardim – um escapou subindo na árvore, era o jardineiro -, rasgou o sofá novo dos Souza, arrancou parte do corrimão da escada e, finalmente, jogou-se de cabeça dentro do vaso sanitário. Seguindo o rastro de destruição, os Souza encontraram a fera ferida que não parava de ganir. Levado ao pronto socorro de feras, atenderam-no logo, antes que devorasse bichanos e cães em consulta. O veredito veio logo: jogaram substância irritante nos olhos do Pavoroso. – Foi a velha! – gritavam os moleques.

Dona Cotinha safou-se ilesa, depois de subidas e descidas nas varas da lei. Venceu a tese de que Dona Cotinha não poderia ser culpada se o vento levou o spray de pimenta para dentro do portão dos Souza, exatamente na direção dos olhos do Pavoroso. Onde ela conseguira aquele spray? – perguntavam-se os filhos. O padre dizia que, por vezes, são estranhos os esguicho... desígnios do Senhor. Há de se ter fé e um spray de pimenta, por via das dúvidas. Pavoroso passou a ganir quando ouve sons de sapatos de velhas, escondendo-se debaixo de uma mesa.
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18.10.07

Apocalipse 13:18


Apocalipse 13:18


Por Paulo Heuser




Não que eu dirija bem, mas há muita gente que dirige muito mal, não respeitam as mínimas regras de trânsito. Também não gosto de dirigir, nem na cidade, nem na freeway – BR-290. Porém, ocasionalmente não tenho opção. Uma das coisas mais irritantes do nosso trânsito é a distância que os motoristas mantém do carro à frente, que por vezes passa a fazer parte do próprio. Não há mais distância perceptível, a fila de carros forma um contínuo. Até que alguém aperta no pedal de freio. Aí se vê o strike – carros para todos os lados, como pinos de boliche. O que mais irrita mesmo, é que, se você mantiver uma distância prudente e regulamentar do veículo à frente, alguém surgirá pelo lado, ocupando o espaço.


Os infelizes que ultrapassam pela direita, apenas para ocupar o espaço que mantemos, por questão de norma e segurança, entre nosso carro e o da frente, provocam repetidas reduções de velocidade, para que se mantenha novo espaço livre. Provocam uma sucessão de frenagens que acaba eventualmente em colisão. Quem se dedica à Estatística sabe que muitos congestionamentos surgem, ou são agravados, pelas constantes trocas de pista.


Ontem havia um motorista de lotação que dirigia exatamente dessa forma. Andava grudado na traseira dos carros, em zigue-zague, ultrapassando-os tanto pela esquerda como pela direita. Não entendi logo a razão de tanta pressa. Sei que eles devem respeitar horários, mas aquilo parecia exagerado. Até que li o nome da linha: Hospital Conceição. O homem levava pacientes ao hospital, pelo modo de dirigir. Casos gravíssimos, com certeza.


Quando aquele monstro ultrapassou-me pela direita, dando uma fechada no carro que vinha à direita, já previ que faria o mesmo comigo, acertadamente. Refeito da fechada que levei, lembrei-me do Livro do Apocalipse, Capítulo 13, Versículo 18. Por alguma razão, o número do coletivo está escrito na Bíblia. Quando a lotação cruzou o sinal vermelho, na esquina da Farrapos com a Visconde de Rio Branco, tive a certeza.


Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.” Apocalipse 13:18


Pois esse era exatamente o número gravado em grandes números pretos, na traseira da lotação: 666. Havia também um pedido para que informem como o motorista estava dirigindo, ligando para o número 118. Melhor não arriscar. De onde atenderão?



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16.10.07

A vó do Mestre Yoda

Foto: Comitê Revolucionário. Fonte: Wikimédia
A avó do Mestre Yoda


Por Paulo Heuser


Mary-Joe Santos acordou subitamente, após 43 anos de coma profundo. Milagre? Provavelmente, pois nenhum médico apostaria nem uma ficha de um centavo na recuperação dela. Em épocas de menos aparelhos e mais sensatez, deixaram que a natureza seguisse seu curso. Porém, o corpo de Mary-Joe não se deu por vencido, como ela nunca se dera por vencida nas suas convicções políticas extremadas. Ela não foi vítima da repressão. Foi vítima daquela sandália fajuta. Avessa aos produtos de marca, fabricados pelos burgueses imperialistas, comprou um par de sandálias que soltaram as tiras. No momento em que ela galgava o monumento, para dar início ao protesto da UIES – a proscrita União Internacional dos Estudantes Stalinistas –, temida até na Albânia, pela incomum radicalização das idéias comunistas.

A tira da sandália fabricada pelo camarada João das Tiras soltou-se, bem no momento em que Mary-Joe galgava o bigode do homenageado no monumento. Seguiram-se cenas de comoção, quando os sete congressistas socorreram sua até então líder, mártir viva a partir de então. João das Tiras imolou-se em Saigon, em protesto contra os fabricantes de estátuas bigodudas imperialistas. Com Mary-Joe em coma e João das Tiras tombado em ação, os seis membros restantes da sigla revolucionária desistiram da militância. Um virou cirurgião plástico de militantes enrustidos, quatro estudaram direito e dedicaram-se ao direito trabalhista sindical – patronal. Um virou escritor e dedicou-se à biografia não autorizada – em coma – de Mary-Joe. Esse não era seu nome, na verdade. Chamava-se Maria Euzébia, na certidão de nascimento. Utilizava o codinome Mary-Joe para confundir os serviços de informações.

Mary-Joe acordou numa manhã de sábado, num hospital de uma nação amiga da causa revolucionária, para onde fora levada de carona, junto com uma turma de expatriados voluntários. Após aquele papo de praxe – onde estou, que dia é hoje, o que aconteceu, cadê o desgraçado do João das Tiras? – Mary-Joe começou a assimilar todas as novidades. Teve de ser ressuscitada, após olhar-se no espelho pela primeira vez, depois de 43 anos de coma profundo. Há coma raso? Aquela bela morena fogosa dos tempos da UIES se transformara na avó do Mestre Yoda. Não havia milímetro sem rugas naquele corpo encolhido e curvado pelos anos e pela doença. Recuperava-se rapidamente, após ouvir a boa nova: a Revolução vencera na pátria amada. Os imperialistas militaristas foram vencidos pelo voto e pelo clamor das massas estudantis de caras pintadas. Milhões foram às ruas, entoando frases de efeito. Os operários finalmente assumiram o poder, pelo voto. A flor, como maior refrão, venceu o canhão, conforme a previsão nos versos do poeta. Mary-Joe quase enfartou de alegria. Até perdoaria João das Tiras, se ele ainda estivesse vivo.

O que se seguiu, não deixou de ser triste. Buscaram Mary-Joe de jatinho executivo, emprestado por um rico empresário e fizeram-na visitar duas repúblicas nas escalas da volta. Andou em carro aberto, ao lado do sujeito que só vestia camisas vermelhas, única coisa vermelha por lá. Na chagada em casa, recepcionaram-na ministros e mandatários em finos ternos produzidos pela elite imperialista da moda. Operários de limusine conduziram-na à suíte presidencial do Decadent Luxury Pharaonic Towers Hotel, com vista para toda a capital. Mary-Joe não pregou o olho, naquela noite, entre lençóis egípcios de 2400 fios – contando apenas os do lado avesso. Beliscou-se para verificar se não acordara de um sono profundo para um pesadelo político. Que diabos de revolução comunista era aquela? Onde estavam os antigos camponeses, operários e estudantes? Onde foram parar as idéias? Ela via apenas os neojanotas enfiados em trajes decadentes. Até então, ficara apenas desesperada. O telefonema do ministro foi a pipa d’água no seu já transbordante dedal. Ele lhe comunicou que o governo lhe brindara com uma polpuda pensão vitalícia, como heroína da revolução, e que ela, de inhapa, fizera jus a um milhão de luvas, ou fosse lá o nome que dessem àquilo.

Mary-Joe imolou-se moralmente. Passou a ser a Euzébia Louca, representante da Associação Americana dos Caçadores de Veados, Bisões e Assemelhados. Veste Prada.


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15.10.07

O processo do Anacleto

O processo do Anacleto


Por Paulo Heuser



Anacleto assistia ao documentário sobre a procriação dos dinossauros, quando a porta veio abaixo. Quatro homens vestindo longas capas pretas e chapéus da mesma cor vieram atrás da porta que desabou. Petrificado no sofá, Anacleto foi incapaz de qualquer reação. Sequer conseguiu balbuciar algo. Foi o sujeito da direita quem se aproximou, exibindo rapidamente uma carteira funcional com um vistoso brasão dourado.

- Sr. Antenor?
- Sim...
- Acompanhe-nos, por favor!
- Mas, quem são vocês?
- O senhor não está em condições de perguntar nada!
- Mas...

Anacleto desistiu de argumentar quando se viu arrastado para um furgão preto que os esperava defronte a porta. Rodaram em silêncio durante uns 20 minutos, encerrando a pequena viagem depois que o furgão adentrou o pátio de um prédio de aparência sinistra.

Ainda em silêncio, conduziram-no até uma sala completamente vazia, sem janelas e iluminada por uma lâmpada que não produzia mais do que 25W. Ele perdeu a noção do tempo que ficou ali parado, fitando aquela porta lisa. Não sabe se foram minutos, horas ou dias. Após o fim da eternidade a porta abriu-se sem aviso prévio. Recebeu um copo d’água, permitiram-lhe ir ao toalete, impecavelmente branco, e conduziram-no à sala onde havia uma pequena mesa retangular e duas cadeiras de madeira, de espaldar reto. Numa delas sentava-se um dos sujeitos, que o fitava sem expressão aparente. Anacleto sentou-se na cadeira vazia e, ante o silêncio do outro, puxou a conversa:

- O que foi que eu fiz de errado?

Após um silêncio aparentemente interminável, o outro respondeu:

- Isso é o que nós queremos ouvir do senhor.
- Mas, eu não fiz nada...
- Certo, talvez esse seja o ponto, o senhor não fez nada...
- Mas, eu não entendo o que... o que eu deveria fazer?
- Bem, vemos um progresso aqui. O senhor admite nada ter feito?
- Sim, mas eu não... de que sou acusado?
- Serei franco, senhor! Não deveria dizer-lhe, porém o senhor é suspeito de não-aderência. É uma acusação muito séria.
- Não-aderência a quê? – Anacleto sentia-se atordoado, impotente.

O homem de preto pensou um pouco, como que ponderando a conveniência da continuação daquele diálogo, olhou desconfiado para os lados e respondeu:

- Ao Patrocinador.
- Quem? – Anacleto nada entendia. – Isto é um programa de pegadinhas?
- Não, senhor. É o Patrocinador, o senhor sabe muito bem. Não se finja de rogado!
- Mas, o que foi que eu fiz?
- Ok, comecemos pelo telefonema que o senhor deu à emissora!
- Ora, eu apenas me queixei do pouco espaço que restou na tela para se ver o filme. Eles encheram tudo com logotipos e frases! Aquilo me incomoda...
- Não é apenas esse o ponto, há outras suspeitas contra o senhor...
- Quais?
- Responda, quem é a bonita sulista que faz exames de balística em C.S.I. Miami?
- O que é isso?

O sujeito deixou a prancheta de anotações cair ruidosamente sobre a mesa, parecendo exasperado:

- O senhor quer que eu acredite que não assiste aos melhores seriados da tv?
- Ora, não gosto de seriados. Gostava de Guerra, sombra e água fresca, mas desses modernos, não gosto.
- Pois esse é o ponto, como o senhor espera que o Patrocinador possa ajudá-lo, se o senhor não se ajuda? Nós colecionamos evidências do seu modo errado de viver!
- Quais? – disse Anacleto, atônito.
- O senhor come comida orgânica ou fast food?
- Nem uma, nem outra, como apenas comida comum...
O sujeito balançava a cabeça, em reprovação, enquanto anotava algo na prancheta.
- O senhor assiste aos filmes comerciais de Hollywood ou prefere os filmes de arte nacionais?
- Na verdade, gosto do cinema europeu...

Nova atitude de reprovação, enquanto o homem de preto rabiscava raivosamente.

- O senhor é tucano ou petista?
- Bem, nem um, nem outro...
- O senhor não assiste a nenhum comercial??? – gritou o homem de preto, exasperado – não sabe como exercer a cidadania? O senhor faz alguma idéia do quanto gastamos com publicidade? Para quê? Para que um biltre pusilânime como o senhor ponha tudo a perder?
- Afinal, quem é esse tal de Patrocinador?
- Ora, é o homem que manda, o que diz o que você deve consumir, o que está certo hoje e o que estará, amanhã!
- É um ministro, o Presidente?
- Não, esses são apenas consumidores, como você e eu.
- O que devo fazer para poder sair daqui?

O homem de preto abriu um amplo sorriso, colocando a mão no ombro do Anacleto, em evidente sinal de aprovação.

- Agora sim, o senhor mostra sinais de aderência, de pleno exercício da cidadania. Bem, a partir de hoje o senhor comerá, ou churros sabor pizza de strogonoff de frango, ou alpiste orgânico. Votará de acordo com as pesquisas. Ouvirá todos os sucessos das duplas Pulguêncio/Piorrécio e Vacâncio/Ternécio. Assistirá à maratona C.S.I. Miami. Também comerá caranguejo ao martelo na sessão de cinema, enquanto toca a buzina de nevoeiro para torcer pelo herói bonitinho. Então o senhor se tornará um aderente, um Cidadão, com cê maiúsculo.

- A minha vida se transformará num inferno! – gritou Anacleto, desesperado.
- Bem, essa é exatamente a idéia do Patrocinador...


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10.10.07

A ira



A ira

Por Paulo Heuser



O Zé nunca havia pensado em dormir em Kranjska Gora. Tampouco sabia que Kranjska Gora existia na face da Terra. Porém, essa linda cidadezinha dos Alpes Julianos eslovênios surgiu pelo seu caminho, num início de noite. O letreiro luminoso vermelho, que anunciava Supermarket, veio bem a calhar, pois era hora de reforçar o estoque de farofa. Além do pão, alimento aparentemente universal, o atum enlatado é o prato número um da farofa do Zé. O atum enlatado apresenta a mesma cara em qualquer lugar. É barato, não costuma causar problemas gástricos e é facilmente reconhecível, pois as latas não mudam. Chamado de atum, tono, tuna ou outras variações, é o refúgio dos viajantes que não conseguem ler os rótulos dos demais alimentos. Quem comeria grotsnya uhrbun, sem saber o que é? Viva o atum, portanto. Ou melhor, morra o atum. Em água ou em óleo.

Feliz por encontrar aquela fonte de farofa, Zé entrou meio sem jeito no mercado, por nada entender daquela língua cheia de jotas com som de is, como em alemão. Não tardou a achar as latas do salvador atum. Cheio de jotas, mas ainda assim, atum. Queijo, pão de jotas e o vinho italiano, sem jotas, completaram a farofa para o jantar. Ele nunca havia pensado com tantos jotas.

Como todo turista fora de época entrando no mercado de terras estranhas, Zé acabou fazendo as compras num ritmo que destoava daquele dos locais que sabiam de cor com quantos jotas se faz um jantar. Pegavam rapidamente suas coisas com jotas e dirigiam-se ao caixa. Zé ainda pegou alguns artigos de higiene, mais pelo formato revelador do que pelos estranhos dizeres das embalagens. Eventualmente atrapalhou algum morador local, na sua indecisão do vai e volta entre as prateleiras. Escolheu ainda uma sobremesa, que depois descobriu ser um sachê para perfumar o banheiro. Porém, pelo desenho na embalagem, parecia muito apetitoso. Algo como um qujndjm.

Satisfeito por constatar que os carrinhos de supermercado dos eslovenos funcionavam da mesma forma que os do resto do mundo – os rodízios também eram redondos -, Zé dirigiu-se ao caixa, com suas preciosas aquisições. A caixa era uma sorridente senhora de meia-idade e um quarto, roliça e exuberante, que, aparentemente, narrava tudo que passava pela tela do equipamento, em esloveno. Sem nada entender, Zé apenas observava. Pagou a conta sem problemas, pois foi apresentada em Euros. Enquanto empacotava suas compras, sentiu um calor na nuca. Virando-se, percebeu aquela mulher que o fitava com um olhar capaz de derreter a porta de um cofre de banco. Uma mulher elegante, num traje azul claro, cabelos pretos presos atrás e olhos azuis que deixavam transparecer uma enorme carga de ódio. Suas narinas estavam dilatadas como as de um touro enfurecido. Da sua boca partiam aparentes impropérios incompreensíveis, devido à barreira lingüística. Os jotas que recheavam suas imprecações apresentavam uma curva mais acentuada do que as dos jotas normais. Percebia-se ódio, ali. E, o pior, ela olhava diretamente para os olhos do Zé, enquanto jogava suas compras furiosamente dentro de uma sacola e o atropelava na saída.

Constrangido, Zé tentava entender o que acontecera, já que aquela mulher parecia a única pessoa incomodada com a sua presença. Arranhando em alemão, perguntou à mulher do caixa dos motivos da ira da morena dos olhos faiscantes. Ela respondeu-lhe algo sobre o Zé ter levado a última Paloma. Ela ficara sem Paloma. Paloma, pomba? – Já, já! – Sim, sim! – respondeu-lhe a senhora roliça, sempre sorrindo e carregando bem nos jotas com som de is.

Naquela noite, na pousada de nome impronunciável, o atum parecia não ter gosto. Seria carne de pomba enlatada? Não, parecia-se com atum e tinha cheiro de atum enlatado. Zé continuava preocupado com a história da Paloma. O que fizera ele, para gerar tanto ódio? Sentia-se mal com o ocorrido. Chamariam o atum de Paloma? Não, restaram muitas latas na prateleira de onde ele retirou aquela. O vinho, o pão? Não, também não. O lampejo veio no banheiro, enquanto, sentado no vaso, Zé olhava para o pacote onde havia uma pomba impressa sobre a inscrição: Soft toutch - Toaletni Papir – Toque macio – Papel Higiênico. O Zé sentiu-se ainda pior, pois enquanto experimentava o toque macio da Paloma, aquela pobre mulher experimentava o toque sabe lá do quê.

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8.10.07

Fauna exótica



Foto: Wikipedia

Fauna exótica


Por Paulo Heuser



Volto à rotina. Acordo, me levanto, apanho o jornal e tomo café. Meu café da manhã leva tudo, menos café. É um café da manhã descafezado. Folheando o jornal, concluo que tudo segue seu seguimento normal. Senão vejamos, hoje abrirão novo processo contra o Renan, o Renan prenderá o rabo de alguém, explode novo escândalo envolvendo ONGs e verbas parlamentares, furacão no Oriente, o bispo ataca a emissora concorrente e o Mangabeira ganha outro ministério. CPMF agora é a Contribuição Para o Mangabeira Ficar. Reclamam que o art. 84 da Constituição proíbe a criação de ministério por decreto. Esqueceram de lê-la, por certo. Crie-se outro, ora. Um Ministério das Borboletas, quem sabe. São bonitinhas, não incomodam ninguém e são efêmeras.

Segue tudo igual, aquela mulher estacionou novamente aquele Clio exatamente no lugar que impede o retorno, os pedestres atravessam a avenida fora da faixa e o eterno caminhão de verduras tranca a Riachuelo. Manhã típica, se não fosse o urso. Sim, um enorme urso marrom. Consigo desviar do humano e do crocodilo que atravessam a rua correndo, na companhia do infeliz urso, porém deste, não consigo. Atravessam a rua correndo, com sinal para pedestres fechado. E o ursídeo resta estatelado no asfalto molhado, com os olhos vítreos esbugalhados. Cena chocante que atrai grande público, ainda mais nesta hora da manhã. Temo ser detido, apesar de não haver presunção de culpa. Sabe como é, o pessoal normalmente tira o partido dos mais fracos. Do urso, no caso. Uma senhora idosa vestindo uma daquelas capas antigas de nylon, de cor bordô, tenta me tranqüilizar, lembrando o fato de que os ursídeos fazem parte da fauna exótica. Pelo menos não me prenderão em flagrante, sem fiança. O crocodilo continua rindo de tudo. Olhando com mais calma, os três se parecem com fauna exótica. Aqui, há apenas jacarés, e o humano, a julgar pelo seu sotaque, não parecem ter vindo destas paragens.

Antes que alguém possa esboçar qualquer tipo de reação, o humano recolhe aquele urso de pelúcia maior do que ele e parte em disparada, atravessando a rua em meio aos carros. O crocodilo continua rindo, sacudindo a cauda freneticamente, agarrado pelo outro braço do humano que corre rua abaixo. Desfeita a cena do incidente, pela fuga das vítimas, sigo meu caminho.

Já razoavelmente refeito do susto causado pelo atropelamento daquela enorme criatura de pelúcia, fico a imaginar o que aquele trio fazia ali. Teriam dormido na viagem e perdido a escala em Brasília? Acordaram aqui, dois mil quilômetros depois?

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7.10.07

A história reescrita

Foto: Wikipedia
A história reescrita


Por Paulo Heuser



Lembrei-me de uma aula de Psicologia da Educação B, ao ler o jornal que mencionava um artigo publicado na revista francesa L’Express da semana passada. Aquela aula foi prática. Grupos de alunos, de cada área, davam aulas aos colegas. Os alunos da Licenciatura em História prepararam uma aula sobre exatamente isso: História. Mostraram como se observa a história, as fontes, etc. Ficou bem claro que ao falarmos de história, falamos de eventos no tempo, protagonizados por alguém e observados por alguém. Não há história sem o homem.

Parece bem evidente que os mesmos eventos podem ser vistos com olhos diferentes, conforme o tempo. Reescrevemos a história, conforme caem barreiras, pudores, preconceitos e medos. Vilões de hoje poderão ser os heróis de amanhã, e vice-versa. Adolf Hitler foi de ídolo a vilão, para não se dizer monstro. Entre os heróis de ontem e vilões de hoje, incluía-se Josef Stalin, o Paisinho dos Povos, aquela figura com cara de vovô bondoso e hábitos genocidas. Pois o Painho soviético mandou matar entre três milhões de pessoas, na estatística mais otimista, e nove milhões de pessoas. Outros falam de números ainda maiores. Stalin disputa o troféu do genocídio com Hitler, com o cambojano Pol Pot e outros não tão bem – ou mal – sucedidos, alguns bem atuais.

Stalin passou de herói a vilão. Até há pouco. O governo russo mandou seus historiadores reescreverem a história russa, materializando o livro História Contemporânea da Rússia – 1945-2006. E o Painho soviético brilhou novamente como herói. Esqueceram-se da época em que o homem esteve mais ocupado, exterminando gente, antes de 1945. Em abril de 1940, na floresta polonesa de Katyn, 22.500 oficiais poloneses foram mortos pelas tropas russas, comandas por Beria, braço direito (e esquerdo?) de Stalin. Hitler acabou levando a culpa pelo episódio, somente esclarecida oficialmente em 1992.
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Na nova releitura da história russa, Stalin aparece como o homem que transformou a Rússia na superpotência do pós-guerra, o que não deixa de ser verdade. Porém, esquecer as purgas políticas é um grande erro histórico. Os Gulags, as Katyns, os expurgos e as deportações foram esquecidos. Restou o bom homem. Muitos historiadores reclamaram. O governo russo, no entanto, alega que os historiadores que estudaram História, pagos pelo estado, devem escrever aquilo que o povo (governo?) quer ler. Ou seja, mandam reescrever a história conforme lhes convêm. Sabe-se que a história muito recente pode ser relatada de modo muito diferente pelos periódicos, conforme seus alinhamentos políticos. Contudo, um estado moderno mandar reescrever a história não tão recente, dessa forma, é bizarro. O que descobriremos a seguir? Tenho medo das releituras que farão por aqui.
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O selo passado pelo Zé


Pois o Zé Alfredo premiou este blog com o selo “Este blog vale a pena conferir”. Fico muito honrado e agradeço ao Zé pela lembrança. Bem, conforme as regras estabelecidas, devo nomear cinco blogs que receberão o selo:

Sem querer parecer suspeito, incluo na lista dois dos blogs do Zé Alfredo:

http://www.voltasnoporto.blogspot.com/
http://www.aindaamoscaazul.blogspot.com/

Outros dois são:

Mau Humor – www.gardenal.org/mauhumor
Alto Volta – http://www.altovolta.apostos.com/

And the winner is....

O Barnabé - http://www.obarnabe.blogspot.com/


Paulo Heuser

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4.10.07

O sofá do Prometeu



Foto: Paulo Heuser

O sofá do Prometeu


Por Paulo Heuser



Há dias em que fixamos o pensamento em coisas tão inúteis que não nos lembramos delas enquanto nelas pensamos. São pensamentos para matar o tempo. Ficamos tão absortos, que andamos automaticamente, apenas desviando dos obstáculos à frente, sem determos a atenção em nada especial. Nesse estado de catalepsia acordada, quase tropecei no sofá do Pometeu. As moscas me alertaram sobre a presença daquele improvável sofá de tecido xadrez preto e amarelo sobre o passeio. Um mosquedo consistente, estilo tornado, com insetos voando em círculos, formando um cone. Lembrei-me de ter estudado o Efeito Coriolis, que supostamente faria as moscas voarem em círculos de direções opostas, conforme o hemisfério em que se encontrariam. Lenda urbana, tão consistente cientificamente como a geodeterminação da direção em que as porcas torcem o rabo.

Eu não adivinhei que o nome daquele sujeito estarrado no sofá xadrez era Prometeu, o titã grego. Saberia, se houvesse estudado literatura, pois o homem adorado pelo mosquedo declamava trechos da poesia Prometheus de Goethe. Como não a estudei, fiquei sem sabê-lo. Isto pouco importava, pois as moscas pareciam saber com quem tratavam. Elas formavam um cone a partir seu pescoço, abrindo-o à medida que subiam. Esse sim, poderia ser chamado de Senhor das Moscas. Feita ou não a identificação do habitante do sofá xadrez, restou a questão primordial. Por que Prometeu estaria ali, deitado naquele sofá, tendo apenas o céu por teto, às 13h30 de uma terça-feira? Se eu estudasse mitologia grega, saberia que Zeus puniu Prometeu - porque este entregou o fogo aos homens -, amarrando-o no topo do Monte Cáucaso. Durante o dia, abutres comiam seu fígado. À noite, se regenerava. A entrega do fogo simbolizaria o ensino. O resto é aquilo que se aprende no ensino fundamental: Hércules, por não ter mais o que fazer, libertou Prometeu. Num supremo acesso de fúria, Zeus condenou Prometeu a ser professor, durante 30 mil anos, mesmo período da pena inicial no Monte Cáucaso.

Prometeu gostou, a princípio. Ensinar era seu destino. Contudo, não contava com a Reforma do Ensino, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a soberba dos pais deuses primordiais – ele é apenas um titã -, os alunos ciclópicos e a falta de verbas para a educação e os salários. Hércules já não mostrava a mesma disposição para libertá-lo do novo calvário, pois estava envolvido com a questão tributária. Conseguiu, afinal, mas o único lugar que restou a Prometeu foi o sofá xadrez. E a companhia do mosquedo. Apesar de abatido, ainda brada conselhos aos seus sucessores, nas palavras de Goethe:

“(...)
Por acaso imaginaste, num delírio,
que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo
por alguns dos meus sonhos se haverem
frustrado?
Pois não: aqui me tens
e homens farei segundo minha própria imagem:
homens que logo serão meus iguais
que irão padecer e chorar, gozar e sofrer
e, mesmo que forem parias,
não se renderão a ti como eu fiz"

Ainda bem que me esqueço do que penso, enquanto caminho pensando. Senão, me lembraria dos pensamentos doidos de quem não pensa nada em especial. Apenas desvio do sofá, deixando Prometeu e seu fiel mosquedo seguidor para trás. Espero que não chova, pelo menos nos próximos 30 mil anos.

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Banda larga, porém curta




Banda larga, porém curta


Por Paulo Heuser


Meu blog anda prejudicado, pois aparentemente assinei um serviço de acesso a Internet que somente provê acesso durante o dia. À noite, o modem se transforma em uma abóbora sem sinal. Algumas luzes se apagam, enquanto uma pisca. O horário em que a Cinderela se vê sem sapatinho de cristal varia. Em alguns dias, ocorre às 19, em outros às 21 horas. Só há uma certeza: ficarei fora da Internet. O ritual que se segue é sempre o mesmo, aumenta apenas minha raiva. Ligo para o 4004 qualquer coisa e sou atendido pela gravação que pede aquele número de um monte de dígitos que desconheço. Entro com meu CPF, teclo dois, seguido de dois, e uma gravação me avisa que estou sendo transferido para o atendimento preferencial. Um paciente atendente atende mecanicamente, solicitando CPF, endereço, telefone para contato e todas aquelas coisas que eles já estão carecas de saber. No que poderá me ajudar? Tentando conter a vontade de esganar alguém, nem que seja um ativo de rede, comunico-lhe que estou NOVAMENTE sem Internet. Ele pede que eu desligue o modem, para iniciar uma monitoração que aponta falta de sincronismo no modem. Aviso-lhe que isso ocorre TODAS as noites, variando apenas o horário. Algumas vezes ele me comunica que há uma falta de sinal no meu bairro, outras que virá um técnico para verificar o problema in loco. Naturalmente, se for identificado problema na minha rede interna, a visita será cobrada. Só que a visita não vem. Perde-se em algum lugar, em meio ao emaranhado de fios, cabos e ativos que compõem a grande rede. Fico até meio aliviado, porque abaterão R$ 2,15 na minha fatura do próximo mês, pela indisponibilidade. Poderei comprar uma coca-cola de dois litros!

O ritual repete-se, feito pesadelo de quem sempre se remete atrás no tempo. Quando resolvi ameaçá-los, com o rompimento do contrato, o atendente mostrou-se muito solícito, colocando-se à disposição para me transferir para o setor de cancelamentos dos contratos. Pergunto-lhe se esse é o desejo da sua empresa. Novamente muito solícito e empático, ele informa que aquele é apenas um departamento técnico. Os cancelamentos devem ser providenciados pelo outro. Faz parte da extrema especialização e segmentação do negócio moderno. Se não conseguirem efetuar download do cliente, o setor de cancelamento de contratos fará um offload dele. Aí o problema estará solucionado. Cliente morto, cliente que não incomoda.

Começo a ficar em dúvida. Para que serve um computador que não está em rede? Jogar paciência, Arachnid ou Freecell? Será um complô conspiratório contra meus escritos? Terei ofendido alguém que tem o poder de silenciar meu modem? Ou será apenas obra de um provedor que não sabe exatamente como prover? A tv até que funciona, mas tenho medo de ir às festas. Poderei chegar lá apenas com meio download feito, apesar de ser um daqueles que são aceitos na festa, como é mesmo? Pelo menos, me resta um poder, o poder da pena. Não da pena da comiseração, mas da pena da escrita. Posso me revoltar escrevendo este texto. Se você for um de nós, tema. Se não for, não seja, pois correrá o risco de chegar numa festa sem as pernas, apesar de ser um deles. Minha banda é larga, porém curta.


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1.10.07

Lar doce lar




Lar doce lar



Por Paulo Heuser


Omaha Beach foi o codinome da praia situada em frente a Vierville-sur-Mer, na Normandia, costa norte da França, invadida pelas tropas aliadas em 6 de junho de 1944. Era o início da Operação Overlord, no Dia D. Aquilo deve ter sido um inferno. Perdi a conta dos filmes sobre o Dia D, nas matinês de domingo. Destemidos soldados saltavam das barcaças numa praia bombardeada, metralhada e cheia de obstáculos ao avanço. O arame farpado estava por toda parte, em imensos rolos.


Vi-me remetido ao ano de 1944, na sexta-feira. Caminhava tranqüilamente, quando me deparei com a casa da Viúva Gustav. A casa não chama a atenção, confundindo-se com as outras, ao redor. Aliás, a casa desaparece por detrás da cerca. Chamar aquilo de cerca é diminuí-la. Trata-se de um sistema de defesa. É o mínimo que se pode dizer sobre aquele complexo de armadilhas e proteções. Se os alemães contassem com um sistema desses, na Normandia, o Dia D seria o Dia F – de fracasso. A primeira linha de defesa consiste de bueiros e caixas de inspeção sem tampas, no passeio. Impedidos de entrar no pátio da Viúva Gustav, as tropas aliadas ao alheio levaram as tampas de ferro fundido, que foram fundidas por amigos dos amigos do alheio. Restaram buracos preenchidos com lixo urbano, como copos e garrafas plásticas, placas de trânsito quebradas, areia, papéis e outras coisas.


Se alguém conseguir superar a linha de frente, deparar-se-á com a grade de ferro. Os mais ousados pensarão em passar sobre ela, apesar das pontas afiadas. Triste ilusão. As pontas de ferro já não têm mais utilidade, pois sobre elas instalaram o rolo de arame farpado. Não é um arame farpado qualquer, como aqueles utilizados pelas tropas alemãs na Normandia. É um arame grosso, cheio de pontas que prometem fazer um estrago danado em quem se dispuser a atravessá-las. Cortá-lo, quem sabe? Sim, desde que consigam evitar a cerca elétrica que passa pelo meio dele. As placas indicando o perigo desanimam.


A Viúva Gustav reluta em aceitar o novo serviço oferecido pela consultoria em segurança. Estão alugando personal soldiers of fortune – mercenários pessoais. Além de caro, o serviço exige fornecimento de alimentação, armamento, munição, uniformes de combate e pompas fúnebres, aos tombados em combate. A pensão da Viúva Gustav só lhe permite manter o Chuck, fruto de um violento relacionamento amoroso entre a pit bull Mimosa e o mastim napolitano Piupiu. Chuck anda de um lado para o outro da cerca, esperando que algo ou alguém caia para dentro. Noutro dia ele devorou um pneu velho, jogado pela molecada, antes de descobrir que não era comestível. Porém, deliciou-se com as piranhas alugadas, do fosso ao lado da cerca. Chegou a acontecer um clima de indecisão quanto a quem estaria no topo da cadeia alimentar, mas Chuck acabou descobrindo que era ele. Pena que terminaram em apenas um dia, pois eram bem gostosas.


Os filhos da Viúva Gustav tentaram tirá-la da casa para morar em um apartamento, hipoteticamente mais seguro. Se conseguirem entrar lá novamente, tentarão outra vez. Paciência, tempos de guerra são assim mesmo, diria o finado Gustav.



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