22.10.07

Fontana Rossa


Foto: Wikipedia
Fontana Rossa

Por Paulo Heuser


Olho para meu prato e vejo que algo realmente vai mal. Não é de hoje, por sinal. Em Pisa, na Itália, assisti à manifestação pacífica de um grupo de idosos que exigia a Itália para os italianos. – Fora com os estrangeiros! – gritavam eles. Tocavam tambores e discursavam contra a globalização. Referiam-se aos imigrantes, não aos turistas. Quase todo mundo gosta dos turistas que chegam, consomem e partem. Deixam o dinheiro, levam as tralhas. Desconfio que em Veneza, também na Itália, não há mais venezianos. Há apenas turistas e imigrantes. Tornou-se difícil encontrar lá alguém que fale italiano. Ouve-se inglês, japonês, chinês, somali, albanês, árabe, amárico, tigrinya e português. Há duas formas básicas de se diferenciarem os imigrantes dos turistas em Veneza. A primeira diz respeito à bandeira. Tome uma pequena bandeira colorida presa num pedaço de madeira e ande. Todos aqueles que seguirem atrás, são turistas. Não é um teste muito preciso, pois há os turistas independentes, não aderentes aos grupos, e há de se repetir o teste negativo com outras cores de bandeiras. O teste mais preciso é o da cadeia de consumo. É simples: quem consome é turista, quem provê é imigrante. Há um terceiro teste, ainda não homologado. É o teste do olhar abobalhado. Quem olha abobalhado, em todas as direções, é turista. Quem olha fixamente para o bolso do turista, é imigrante. Fácil assim. Câmeras fotográficas também dão alguns indícios quanto à natureza da estada. Ridículos chapéus em forma de guarda-sol com cata-vento também podem identificar, ou um turista japonês, ou um imigrante vendedor de chapéus ridículos. Agora, se alguém não consome nem provê, poderá ser um veneziano autêntico. O último foi visto em 1946.

Já na França, país que torpedeou a constituição européia unificada, há autênticos franceses natos. As mulheres francesas são as de mais fácil identificação. Andam com um cachorro e enfiam os sapatos dentro de sacos plásticos que protegem-nos contra os cocos dos cachorros dos outros franceses natos. Turistas e imigrantes não têm cachorros, salvo raras exceções. A forma como carregam o pão - a baghette – também trai os franceses natos. Eles carregam aquilo com pompa e circunstância. Os imigrantes não comem baghettes. Os turistas carregam baghettes como se carregassem bastões de líderes de torcidas norte-americanas. Há também na França um forte movimento contra os estrangeiros. Os imigrantes ameaçam os empregos inexistentes que pertenceriam aos franceses, caso existissem. Assim, se ainda houvesse emprego de cobrador – substituído pelas máquinas – provavelmente contratariam um imigrante, por salário menor do que aquele percebido por um francês. Coisas da automação e da globalização. Porém, na França há um certo horror dos turistas, também. Pudera, além dos bárbaros germânicos e anglo-saxônicos que pedem cerveja nos cafés, há outros que pedem rodízio de pizza e coca-cola para um autêntico maître francês. Este, por sua vez, transmitirá o pedido ao chef de cuisine – formado pela escola Cordon Bleu –, que mandará os turistas à invenção do Dr. Joseph Ignace Guillotin, respeitado cientista e médico da saúde pública francesa. O aparelho apelidado guilhotina, em sua homenagem, socializou as execuções promovidas durante a revolução francesa. Nada mais de forca para os pobres e machado para os ricos. O chef de cuisine fará uma pequena corruptela da Prece Revolucionária, de 1792: “Repleta teu cesto divino com a cabeça de turistas que bebem coca-cola... Santa Guilhotina, protetora dos patriotas, Rogai por nós. Santa Guilhotina, calafrio dos turistas, Protegei-nos!”.

Da Itália vem agora o protesto da desconhecidíssimo movimento revolucionário anarquista FTM Azionefuturista 2007. Isso parece nome de festival de música de San Remo televisionado pela tv do Berlusconi. O presidente, secretário geral, militante e terrorista de plantão da organização jogou corante vermelho na Fontana di Trevi, uma das principais atrações turísticas de Roma. Fico a imaginar o que aconteceria se alguém jogasse uma daquelas bandeirinhas coloridas, dos guias de turismo, dentro da fonte. Um banho coletivo, com certeza. Fico também a imaginar como um grupo anarquista escolhe seu líder, já que é anarquista. Repudiam toda a hierarquia que não é naturalmente aceita. E qual é? Por isso, os grupos anarquistas tendem a abrigar apenas um militante, o chefe, naturalmente aceito por ele mesmo.

Paciência. Olho para o prato e resolvo comer, antes que o joelho de porco e a polenta brustolata esfriem. Ou que o sushi esquente. Começo a entender o que leva à xenofobia, antes mesmo de derramarem o molho chimichurri sobre tudo.


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