15.10.07

O processo do Anacleto

O processo do Anacleto


Por Paulo Heuser



Anacleto assistia ao documentário sobre a procriação dos dinossauros, quando a porta veio abaixo. Quatro homens vestindo longas capas pretas e chapéus da mesma cor vieram atrás da porta que desabou. Petrificado no sofá, Anacleto foi incapaz de qualquer reação. Sequer conseguiu balbuciar algo. Foi o sujeito da direita quem se aproximou, exibindo rapidamente uma carteira funcional com um vistoso brasão dourado.

- Sr. Antenor?
- Sim...
- Acompanhe-nos, por favor!
- Mas, quem são vocês?
- O senhor não está em condições de perguntar nada!
- Mas...

Anacleto desistiu de argumentar quando se viu arrastado para um furgão preto que os esperava defronte a porta. Rodaram em silêncio durante uns 20 minutos, encerrando a pequena viagem depois que o furgão adentrou o pátio de um prédio de aparência sinistra.

Ainda em silêncio, conduziram-no até uma sala completamente vazia, sem janelas e iluminada por uma lâmpada que não produzia mais do que 25W. Ele perdeu a noção do tempo que ficou ali parado, fitando aquela porta lisa. Não sabe se foram minutos, horas ou dias. Após o fim da eternidade a porta abriu-se sem aviso prévio. Recebeu um copo d’água, permitiram-lhe ir ao toalete, impecavelmente branco, e conduziram-no à sala onde havia uma pequena mesa retangular e duas cadeiras de madeira, de espaldar reto. Numa delas sentava-se um dos sujeitos, que o fitava sem expressão aparente. Anacleto sentou-se na cadeira vazia e, ante o silêncio do outro, puxou a conversa:

- O que foi que eu fiz de errado?

Após um silêncio aparentemente interminável, o outro respondeu:

- Isso é o que nós queremos ouvir do senhor.
- Mas, eu não fiz nada...
- Certo, talvez esse seja o ponto, o senhor não fez nada...
- Mas, eu não entendo o que... o que eu deveria fazer?
- Bem, vemos um progresso aqui. O senhor admite nada ter feito?
- Sim, mas eu não... de que sou acusado?
- Serei franco, senhor! Não deveria dizer-lhe, porém o senhor é suspeito de não-aderência. É uma acusação muito séria.
- Não-aderência a quê? – Anacleto sentia-se atordoado, impotente.

O homem de preto pensou um pouco, como que ponderando a conveniência da continuação daquele diálogo, olhou desconfiado para os lados e respondeu:

- Ao Patrocinador.
- Quem? – Anacleto nada entendia. – Isto é um programa de pegadinhas?
- Não, senhor. É o Patrocinador, o senhor sabe muito bem. Não se finja de rogado!
- Mas, o que foi que eu fiz?
- Ok, comecemos pelo telefonema que o senhor deu à emissora!
- Ora, eu apenas me queixei do pouco espaço que restou na tela para se ver o filme. Eles encheram tudo com logotipos e frases! Aquilo me incomoda...
- Não é apenas esse o ponto, há outras suspeitas contra o senhor...
- Quais?
- Responda, quem é a bonita sulista que faz exames de balística em C.S.I. Miami?
- O que é isso?

O sujeito deixou a prancheta de anotações cair ruidosamente sobre a mesa, parecendo exasperado:

- O senhor quer que eu acredite que não assiste aos melhores seriados da tv?
- Ora, não gosto de seriados. Gostava de Guerra, sombra e água fresca, mas desses modernos, não gosto.
- Pois esse é o ponto, como o senhor espera que o Patrocinador possa ajudá-lo, se o senhor não se ajuda? Nós colecionamos evidências do seu modo errado de viver!
- Quais? – disse Anacleto, atônito.
- O senhor come comida orgânica ou fast food?
- Nem uma, nem outra, como apenas comida comum...
O sujeito balançava a cabeça, em reprovação, enquanto anotava algo na prancheta.
- O senhor assiste aos filmes comerciais de Hollywood ou prefere os filmes de arte nacionais?
- Na verdade, gosto do cinema europeu...

Nova atitude de reprovação, enquanto o homem de preto rabiscava raivosamente.

- O senhor é tucano ou petista?
- Bem, nem um, nem outro...
- O senhor não assiste a nenhum comercial??? – gritou o homem de preto, exasperado – não sabe como exercer a cidadania? O senhor faz alguma idéia do quanto gastamos com publicidade? Para quê? Para que um biltre pusilânime como o senhor ponha tudo a perder?
- Afinal, quem é esse tal de Patrocinador?
- Ora, é o homem que manda, o que diz o que você deve consumir, o que está certo hoje e o que estará, amanhã!
- É um ministro, o Presidente?
- Não, esses são apenas consumidores, como você e eu.
- O que devo fazer para poder sair daqui?

O homem de preto abriu um amplo sorriso, colocando a mão no ombro do Anacleto, em evidente sinal de aprovação.

- Agora sim, o senhor mostra sinais de aderência, de pleno exercício da cidadania. Bem, a partir de hoje o senhor comerá, ou churros sabor pizza de strogonoff de frango, ou alpiste orgânico. Votará de acordo com as pesquisas. Ouvirá todos os sucessos das duplas Pulguêncio/Piorrécio e Vacâncio/Ternécio. Assistirá à maratona C.S.I. Miami. Também comerá caranguejo ao martelo na sessão de cinema, enquanto toca a buzina de nevoeiro para torcer pelo herói bonitinho. Então o senhor se tornará um aderente, um Cidadão, com cê maiúsculo.

- A minha vida se transformará num inferno! – gritou Anacleto, desesperado.
- Bem, essa é exatamente a idéia do Patrocinador...


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