Os pés
Os pés
Por Paulo Heuser
Quem escreve, externando opiniões, sabe que algum dia voltará uma pedrada. É difícil dizer que a primeira pedrada dói mais. Todas doem, pois incomodamos alguém. Indo à chuva, nos molhamos. Contudo, de alguma forma aprendemos a conviver com as pedradas. Fizemos por merecer, portanto devemos achar uma saída, que geralmente gira em torno de escrever à pessoa ofendida e expor nossa posição de forma mais aceitável, se é que isto é possível.
Por Paulo Heuser
Quem escreve, externando opiniões, sabe que algum dia voltará uma pedrada. É difícil dizer que a primeira pedrada dói mais. Todas doem, pois incomodamos alguém. Indo à chuva, nos molhamos. Contudo, de alguma forma aprendemos a conviver com as pedradas. Fizemos por merecer, portanto devemos achar uma saída, que geralmente gira em torno de escrever à pessoa ofendida e expor nossa posição de forma mais aceitável, se é que isto é possível.
Imagens podem chocar tanto ou mais que palavras. Há filmes famosos que trilharam o avesso da história usual. São os filmes que geram romances escritos, contrariando a ordem natural, onde romances inspiram cineastas. Hoje talvez esteja esquecida nos arquivos do tempo, mas havia uma foto que recheou todos os jornais e periódicos do mundo. Em 8 de junho de 1972, o fotógrafo Nick Ut tirou uma foto da menina vietnamita Kim Phuc, na época com nove anos de idade, correndo nua, completamente queimada, após sua aldeia ter sido bombardeada com napalm. Quem viveu aquela época, lembra-se dela.
Eu caminhava, como de hábito, levando a câmera a tiracolo, quando me deparei com dois pés descalços que se projetavam sobre o passeio, entre floreiras. Estou habituado com qualquer tipo de cena envolvendo gente, pois caminho muito pelo Centro. Porém, não é comum ver apenas pés. As pessoas tendem a abrigar os pés, seja por questões térmicas, seja pelo instinto. Sei lá por que, mas tendemos a proteger mais os pés. Dificilmente alguém deixa de fora apenas os pés. Pés juvenis, o que piorava a cena. Cena que fiz questão de registrar, talvez egoisticamente. Publiquei a cena em sítios de compartilhamento de fotografias. Alguém que as viu, me desafiou a escrever sobre aquela cena. Bem feito, levei nos dedos. Conheço um sujeito que defende a informalidade de todos os contratos, já que o que está escrito não pode ser apagado. Fiquei com vontade de apagar aquela foto, em vão, pois já estava impressa atrás da retina de quem a viu.
Ao lado dos pés havia um saco de salgadinhos, estilo esterquitos. Acabei editando a foto, retirando a cor de tudo que cercava aqueles pés. Não faço a mínima idéia de quem era o dono, ou dona, daqueles pés. Na verdade, não tentei descobrir. Melhor assim, eram apenas dois pés, sem rosto, sem corpo e sem alma. Ainda assim, os pés de alguém, presumidamente. De alguém que já não se importava com os próprios pés, que poderiam ser fotografados ou não. Será que o dono daqueles pés imaginou que eles poderiam se tornar objeto da curiosidade alheia? Ninguém reparou naqueles pés, enquanto cena real do cotidiano. Revelaram-se pela foto, quando passaram a chocar os eventuais espectadores. A cena faz parte do mundo externo, aquele que devemos evitar a todo custo. A foto nos mantém na redoma, longe da desgraça alheia. Lá somos todos cúmplices, por clicar, por observar.
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