29.11.08

496 - O fim dos periódicos


Deutsche Autobahn
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O fim dos periódicos

Por Paulo Heuser


Preocupo-me com o fim dos jornais. Ele já está acontecendo insidiosamente. Eu gostava muito de ler os jornais, um hábito que cultivei desde sei lá quando. Eu gostava de levantar cedo pela manhã e apanhar o jornal na soleira da porta. Então eu lia praticamente todo o jornal da manhã, enquanto tomava meu café. Eu nunca consegui sair porta afora mastigando metade de alguma coisa e calçando os sapatos, como muitos fazem.

O prenúncio do fim vem pelos sítios dos jornais na Internet. Coisa maravilhosa, confesso. Tomamos conhecimento dos fatos, na medida em que eles acontecem. Atirou no bugio em Tremedal, BA, ele deitou aqui, no mesmo momento. Vapt-vupt. Basta se entrar nos sítios dos jornais, pois o mundo se abre em notícias, seja onde estivermos. Descobre-se que a bolsa caiu, que a Radial Leste e a Marginal Tietê estão congestionadas, e que algum ministro ou secretário foi substituído. Todas são notícias extraordinárias e intempestivas. O lado bom disso tudo é que os viajantes podem manter algum contato com seu lugar de origem, pois praticamente todos os hotéis mantêm serviços de acesso sem fio a Internet. Mesmo quem está em Slavonsky Brod, na Croácia, pode acessar os jornais daqui e descobrir que o centroavante Medonho adora o feijão mexido com rapadura que a sogra da noiva dele tão bem prepara. Lembro-me ainda de uma ocasião em que eu aguardava um vôo, no Aeroporto do Galeão (faz tempo), e encontrei um jornal daqui à venda. Eu lia o tal do jornal, na sala de embarque, quando uma mulher que fazia conexão do Japão para Porto Alegre gritou histericamente, assim que viu o que eu lia. Implorou, para que eu lhe emprestasse a página da coluna social da cidade que ela veria dali a 1h50. Outros tempos. Por outro lado, é divertido comprar jornais impressos em terras estranhas, apesar de estes também estarem disponíveis pela rede. Quanto mais estranha a língua, mais divertido fica. Quem já tentou ler um jornal finlandês, e não é nativo de lá, sabe do que eu estou falando.

Se a coisa ficou ótima para os viajantes, tirou toda a graça de quem curte ler um jornal de verdade, impresso no papel. As árvores que me perdoem, mas o jornal no papel tem outro gosto, apesar de eu nunca ter degustado algum. Os ingleses devem sabê-lo, pois adoram fish and chips – peixes com fritas – embrulhados em jornal. Os grandes chefs britânicos torcem o nariz para The Sun, considerado sensacionalista. Quando abro o jornal pela manhã, tudo o que lá está é matéria velha dos sítios de notícias. Com popularização destes, os jornais impressos tendem a virar revistas de variedades, nas quais se descobre as preferências gastronômicas do Medonho.

Houve época em que os leitores dos sítios de jornais tinham acesso apenas às manchetes. Para ler a notícia toda, só assinando o jornal. Agora tenho notado uma tendência à síntese impressa do que está detalhado no sítio do jornal. Muita gente ainda usa o jornal no banheiro, para lê-lo, além de outro uso menos nobre que deve estar caindo no desuso, graças ao programa Bolsa Sabugo. E aí o cara está lá, concentrado, quando descobre que o cerne da tão esperada notícia está no sítio do jornal na Internet. Apela para o toiletbook? Os toaletes das lojas de conveniências das Autobahnen – auto-estradas alemãs – deverão oferecer serviços de acesso a Internet. Por meio Euro leva-se tampa higienizada, papel higiênico digno das partes íntimas do Ludwig Von Bayern e banda-larga com downloads em altíssima velocidade. Coisas do Velho Mundo.

Nos novos jornais há manchetes que incomodam. O que querem dizer com: “Múmia italiana não tem descendentes vivos”?

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28.11.08

495 - Do primeiro Boombzeer ninguém se esquece

Foto: Paulo Heuser
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Do primeiro Boombzeer ninguém se esquece

Por Paulo Heuser


- Benhê?

- O que foi, Benzinho?

- Benhê, você já pensou no seu presente de Natal?

- Ah, não, Benzinho. Você sabe que eu não sou muito ligado nesse troca-troca de presentes. O que vale mais é a companhia, a paz e aquela atmosfera com cheiro de pinheiro...

- Cheiro? Aquele pinheiro artificial fede a mofo, Benhê!

- Que seja, eu gosto mesmo assim.

- Ah, vai Benhê, pede alguma coisa, qualquer coisa.

- Sei lá, eu não preciso de nada agora...

- Vai Benhê! Pede qualquer coisa!

- Tá bom, um par de meias.

- Meias, de novo? Já estou cheia de lhe dar meias! Peça outra coisa, vai!

- Meias são qualquer coisa. Mas se é para contentá-la, tudo bem, pode ser uma furadeira nova.

- Outra furadeira? Eu já lhe dei três, pelo menos. Peça outra coisa, qualquer coisa.

- Tá bom, um quadro então.

- Quadro? Para o que você quer um quadro?

- Para fazer um furo na parede, para pendurá-lo. Assim poderei usar uma das três furadeiras que ganhei nos últimos Natais.

- Tá bom, eu pintarei meu auto-retrato, assim você poderá usar a furadeira.

- Ótimo, Benzinho!

- Benhê, você não vai me perguntar sobre o que eu quero ganhar do Papai Noel?

- Claro, Benzinho, o que você quer ganhar?

- Eu quero um Boombzeer...

- Bomba o quê?

- Não é bomba, Benzinho, é Boombzeer! B-u-m-b-z-i-r.

- O que é isso?

- Bem, o que é, eu não sei, mas todas minhas amigas disseram que ele é inesquecível.

- Ora, ligue e lhes pergunte o que é o tal de, como é mesmo?

- Boombzeer, Benhê, Boombzeer!

Intervalo para a ligação.

- E aí, Benzinho, descobriu?

- Não, nenhuma delas sabe, pois ainda não o ganharam. Mas foram unânimes em dizer que umas disseram às outras que ele é inesquecível!

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25.11.08

494 - O literal

Foto: Paulo Heuser
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O Literal

Por Paulo Heuser


Quem escreve corre grande risco, simplesmente por não ver a cara de quem lê. E se vê, pode ser tarde demais. O problema reside nas figuras de linguagem que utilizamos para a obtenção de efeitos adicionais na interpretação do leitor. A ironia é muito utilizada na crônica. Há outras figuras de linguagem, no entanto, que mereciam constar nos compêndios de patologia, como no texto: “O sujeito vinha feliz a cantar quando teve um hipérbato fulminante. Pudera, ele sofria de metalepse da hipálage. Suspeita-se também de uma não-diagnosticada anadiplose da epizêuxis.” Quem - que não está prestando algum tipo de concurso - pode se lembrar da epizêuxis? Sei quem: um professor de Português.

O perigo real do uso das figuras de linguagem não vem dos estranhos helenismos, e sim da interpretação que o leitor faz dos textos que as utilizam. Há um tipo de leitor que acredita literalmente no que lê, mesmo após os dois anos de idade. Quando lhes dizem que o tio explodirá de rir, eles imaginam o tio voando aos pedaços enquanto dá gargalhadas. Esse leitor é o Literal, que dificilmente consegue achar graça em uma piada, pois estas costumam carregar muito das sutilezas das figuras de linguagem.

Certa ocasião, escrevi um cardápio alternativo para um restaurante, também alternativo, de frutos do mar. Lá estavam os carros-chefes da moderníssima nova cozinha, como o pâté de foie de morue – patê de fígado de bacalhau -, o risoto de tinta invisível de lula, o lado B do linguado, o pepino do mar em conserva, o leite de peixe-vaca e a levíssima, porém picante, musse de mãe-d’água. Era para rir, porém o Literal leu o cardápio de cabo a rabo sem expressar sentimento algum e perguntou sobre as queimaduras que a musse poderia provocar. Ele nem pestanejou quando passou pelos olhos de peixe morto. O Literal é assim. Ri pouco. A maior parte deles vira operador de telemarketing.

Identificar o Literal é fácil, quando se fala com ele, olho no olho. Percebe-se logo que se trata do Literal, pelas perguntas que faz ou deixa de fazer. A partir da identificação, toma-se cuidado com o que se diz. O tio explodirá de rir, torna-se: o tio rirá bastante. Infelizmente, não há como prever quando o Literal lerá algum texto que escrevemos, como quando escrevi uma crônica sobre esse maravilhoso meio de transporte que é a carroça urbana. Apelando para alguma figura de linguagem, fui soterrado por uma saraivada de invectivas, partidas de um leitor indignado que leu o texto publicado em um jornal. Ele nada entendeu. Tampouco entenderia se eu o avisasse de que a tinta de lula invisível torna-se visível, quando se pingam gotas de limão sobre ela.

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24.11.08

493 - A bela e os siris

Foto: Paulo Heuser
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A bela e os siris

Por Paulo Heuser


A multidão à frente abria-se em duas, que desviavam de algo sobre o passeio. De duas, uma, ou era um buraco, ou era um morto. Multidão não pisa, nem em buraco, nem em morto. Pisam nos mortos enquanto vivos, depois de mortos, não. É a ética da decência urbana. Multidão que se preza não pára para olhar buraco, passa ao largo. Assim ia a multidão dos siris de maré vazante da tardinha.

Quando chegou minha vez de andar em deriva, para desviar do obstáculo, arrisquei uma olhadela no que provocava a cisão da multidão. Lá estava ela, estatelada no meio do passeio, cercada pelos milhares de pés que avançavam na direção contrária àquela percorrida na maré da manhã. Nunca a havia visto, mesmo tendo participado 7590 vezes daquela procissão da tardinha. O belo choca, principalmente quando estatelado daquele jeito. Não parei, aliás, ninguém parou. Mas houve congestionamento de siris, pois vários arriscaram a mesma olhadela que eu havia arriscado.

Deixei-a para trás e voltei para a multidão, novamente unida. Contudo, não a esqueci. Não havia como. A imagem ficou impressa em algum lugar entre os olhos e o pensamento. Desde que a vi, algo me intrigou. Por que ela jazia lá, daquele jeito? Seria fruto de um relacionamento amoroso rompido abruptamente? Teria sido jogada pela janela de um dos imensos prédios de escritórios que impedem que lá haja luz? Lá o Sol nunca nasce e nunca se põe. Ele sempre está atrás de um prédio. O início e o fim do dia medem-se pelos relógios dos siris.

Se fosse um mendigo, até poderia se entender, mas bela como ela, o que fazia lá? Os mendigos se estatelam, vez por outra, quando morrem. Então, repentinamente, passam a ter nome, sobrenome e endereço. Alguns passam até a ter história. Algum siri eventualmente se recorda de tê-los visto na sua vida de siris, no tempo em que eles também trilhavam o caminho da multidão. Iam e vinham como todos os outros, até que algo acontece. Caem num buraco, talvez, e ficam desmiolados. Então passam a viver à margem e não obedecem mais ao comando da maré dos relógios dos siris. Não sabem da hora, pois nem vêm, nem vão. Apenas ficam.

Bela, como ela, não combinava com aquele passeio sujo e bolorento. Lá não devia haver cor, pois na rota dos siris nada tem cor. Tudo é padronizado. Buraco é preto, e mendigo é cinza. Ela trouxe vida à zona morta, mesmo estatelada daquele jeito. Por mais que eu me esforce, não consigo entender o que fazia lá aquela bela rosa vermelha.

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17.11.08

492 - Quinze de Novembro

Foto: Paulo Heuser
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Quinze de novembro
Por Paulo Heuser

Passava um pouco das 13 horas do sábado, em Garibaldi, na Serra Gaucha. Garibaldi – como a maioria das cidades montanhosas da colonização italiana – apresenta um centro histórico com ruas cujos cruzamentos não formam ângulos retos. Pitágoras ficaria louco naquele sistema viário sem ângulos opostos à hipotenusa. De nada adiantaria falar em hipotenusas, pois nenhuma rua daquele centro poderia ser representada pelas retas. Tampouco há ângulos retos.

Procurávamos um restaurante para almoçar, que ficaria exatamente no centro da cidade. Não havia como errar o caminho, diziam, bastaria entrarmos na segunda à esquerda e na primeira à direita. Só que não havia segunda à esquerda. Havia até uma terceira, porém a segunda era contramão. Parecia simples, bastaria entrarmos na terceira à esquerda e depois mais duas vezes à esquerda, descobrindo depois o que faríamos com aquela direita que ficaria, em tese, entre a segunda e a terceira. Aparentemente, a segunda era uma dupla contramão, uma rua por onde não se entrava, somente se saía - uma versão viária e inversa dos buracos negros do Universo. Rodamos por uns vinte minutos, subindo, descendo e dobrando nas esquinas que formam os ângulos inimagináveis que rejeitam o axioma do paralelismo de Euclides. Talvez a geometria elíptica e a hiperbólica tragam alguma luz ao problema. Percebemos que estávamos numa sinuca de bico – com um bico hiperbólico – quando o navegador GPS começou a gaguejar e, por fim, chorar. Choro é eufemismo, para descrever o que a pobre máquina sentia. Aquilo era um profundo lamento de total desespero. O GPS não foi útil, desde o início, pois o tal do restaurante aparentemente não tinha endereço, apenas pontos de referências de localização - defronte ao banco.

O que mais me intrigava era que todos aos quais perguntávamos sobre a localização sabiam explicar detalhadamente como chegar lá. Após mais algumas voltas, paramos. Discutíamos sobre o que faríamos, quando ele chegou. Homem na casa dos 70, muito bem-humorado, ele pareceu adivinhar a razão da nossa perplexidade. Falava com forte sotaque italiano, enquanto se debruçava sobre a janela do carro.

- Buongiorno! Piacere! Sou Giuseppe! Vocês estão procurando o restaurante. Percebi logo, pois vocês já passaram treze vezes por aqui. Vou ensiná-los a chegar lá, não se preocupem. Se hoje não fosse 15 de novembro, eu também estaria lá. Mas, como é, estou aqui.

Após essa frase muito esclarecedora, ele parou de falar e permaneceu escorado na porta do carro, apenas sorrindo. Esperávamos pela orientação, quando ele continuou:

- Vocês devem estar se perguntando sobre a razão pela qual estou aqui, afinal.

- Porque hoje é 15 de Novembro? – arrisquei.

- Sim, sim, todos sabem que hoje é 15 de Novembro e que comemoram a Proclamação da República, mas o que talvez vocês não sabem, é que estou aqui, porque as mulheres estão lá.

Minúsculas gotas de salivam brilhavam ao sol, enquanto ele falava. Ele aquietou-se novamente, talvez esperando pela nossa reação, que foi:

- Que ótimo, mas qual seria mesmo o caminho até o restaurante?

Ele pareceu ignorar a pergunta e continuou a falar:

- Sou membro da Associação. Lá não entram mulheres, a não ser em 15 de Novembro. Então, é o dia delas, e nós não podemos entrar lá. Nós ficamos o dia todo sem ter o que fazer. Por isso vocês me encontraram. Sorte de vocês, pois do contrário nunca encontrariam o restaurante. Ainda bem que vou lhes mostrar o caminho.

Ele calou-se novamente e permaneceu escorado no carro, sorrindo, enquanto as últimas gotículas de saliva caíam lentamente.

- O senhor nos levará até lá?

- Antes pudesse! Com elas lá, não posso. Mas vou explicar-lhes como chegar lá. Não há como errar. É só entrar na segunda à esquerda e na primeira à direita.

O GPS riu o riso histérico dos dementes, enquanto as gotículas de saliva do Giuseppe brilhavam ao sol de 15 de Novembro, dia em que as mulheres estavam lá, e ele, ali.

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13.11.08

491 - A vida em dois turnos


Foto: Wikipedia
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A vida em dois turnos

Por Paulo Heuser


Eu desconfio que o aumento expressivo do consumo de antidepressivos, observado nos últimos quatro anos, tem a ver com os serviços que o pessoal contrata. As pessoas não têm mais tempo para nada. Levantam-se, comem, correm, trabalham, correm, comem,.... e dormem. As agendas estão excessivamente preenchidas. Há quem administrem bem essa rotina, mas ninguém consegue administrá-la quando é forçado a solicitar serviços dos provedores destes.

Problemas com provedores de Internet, TV, água, e a entrega de móveis e outros trastes passou a ser feita por agendamento em turnos. Quem solicita os serviços é obrigado a permanecer em casa, por turnos inteiros, à espera de técnicos ou entregadores, que às vezes não vêm. Não há como agendar visitas com horário determinado. Os limites dos turnos não ajudam. Há turnos da manhã que iniciam às nove horas e se encerram às 13 horas. Os turnos da tarde podem iniciar às 11 horas e terminar às 19 horas. Ou seja, há turnos de oito horas! Quem ainda pode se dar ao luxo de permanecer oito horas à espera de um técnico? Sempre há como deixar outra pessoa, mas esta nem sempre saberá dar as informações necessárias ou fiscalizar a execução do serviço. Além do que, eles não aceitam que fique apenas o cachorro.

A moda do agendamento em turnos iniciou com os provedores de serviços de telecomunicações e estendeu-se a uma gama enorme de outros serviços. Até se entende que todos busquem a maximização dos lucros, mas há limites para tanto. O que vemos é a plena utilização dos recursos do provedor e a plena ociosidade dos clientes. Estes só podem mesmo ficar deprimidos. Senão vejamos, o sinal da Internet passa a cair na segunda-feira. Ligo para o 4 mil-e-tanto e consigo agendamento para quarta-feira, no turno da manhã. Viro daqui e dali e consigo que o cunhado do zelador fique de campana. Na terça-feira dá problema no sinal da TV. Sem problema, há horário para agendamento na quinta-feira à tarde. Tarde que vai até as 19 horas, mas inicia às 11 horas. O cunhado do zelador não pode ficar, pois comprou uma geladeira que será entregue no mesmo turno. Ele lembrou que o filho do quitandeiro não tem aula à tarde. Se a geladeira estiver abastecida, ele fica. Há solução para tudo. Droga, o ar-condicionado pifa na terça-feira à noite. Os técnicos poderão buscá-lo na sexta-feira, no turno da manhã, que inicia às 7 horas e se encerra às 14 horas. O filho do quitandeiro não poderá ficar porque entregará o rancho do cunhado do zelador. Este não poderá ficar porque deverá esperar pelo rancho. Ainda bem que a sogra do síndico pode. O problema é que ela sofre de Alzheimer e poderá se esquecer de onde mora. Será necessário arrumar alguém que lhe fique lembrando do endereço.

Só há uma solução. Contratarei um pintor para passar uma demão de tinta na sala de estar. Ele poderá esperar pelos demais. Bem, ainda restou um problema. Quem esperará pelo pintor?


prheuser@gmail.com
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12.11.08

490 - Catarse ou catar-se?


Fonte: Wikipedia
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Catarse ou catar-se?

Por Paulo Heuser


Certa vez li um texto do médico e escritor Moacyr Scliar, no qual ele sugeria que escrevemos como forma de catarse – o que nada tem a ver com a forma reflexiva do verbo catar. Catarse é sinônimo de purgação - método de purificação mental que consiste em revocar à consciência os estados afetivos recalcados, para aliviar o doente dos desarranjos físicos e mentais oriundos do recalcamento. Portanto, purgação não deve ser confundida necessariamente com laxação, mesmo com a presença da palavra desarranjo na definição. Trocando em miúdos, escrevemos para não ter um treco.

Se, mesmo escrevendo, temos um treco - mesmo que um treco muito pequeno -vamos ao médico. Neste admirável mundo novo, ir ao médico é o mesmo que buscar requisições de exames sofisticados. Marcamos consulta e esperamos pacientemente, já que efetivamente somos pacientes. Depois de uma conversa primordial, que servirá para identificar a região do corpo a ser analisada, saímos de lá com uma requisição de exames que espantariam Albert Einstein. Com sorte, fazemos uma tomografia computadorizada, com muita sorte, uma ressonância magnética nuclear, o mais alto píncaro dos exames ditos não-intrusivos. Se submeter o sujeito a um campo magnético muito maior do que o do planeta inteiro, e a pulsos de radiofreqüência que provocam a ressonância de todos os seus átomos de hidrogênio é método não-intrusivo, sou mico de circo nuclear.

Esses exames sofisticados exigem a imobilidade total do paciente, que, por sinal, fica impaciente. As posições estranhas as quais somos submetidos não ajudam muito.

- Deite-se de bruços sobre a maca, estendendo o punho esquerdo em ângulo de 125 graus Celsius a partir da mediatriz perpendicular ao rádio e ao úmero, sem que o escafóide fuja do campo central do colimador. A perna esquerda deverá ficar dobrada sobre a direita, em ângulo reto, com o pé direito paralelo ao chão, considerado o versor x, enquanto o pé esquerdo forma ângulo reto com a origem do Universo. Ah, lembre-se de não respirar durante o exame.

- Quanto tempo leva o exame?

- Pouco. De cinco a 40 minutos.

Feitos os exames, interpretados os resultados, lá vamos nós, felizes da vida, por sobrevivermos ao exame, a cantar pelo shopping, enquanto carregamos uma sacola enorme com o nome do laboratório impresso em fonte Arial 40. Bem, devo concordar que, em pelo menos um aspecto, as coisas melhoraram. Não pedem mais exames de fezes, como antigamente. Aquilo era desumano, a começar pelo tamanho do pote. Aqueles potes eram inconfundíveis, mesmo quando escondidos no interior do saco de papel pardo. Resfriado, apoplexia, hérnia de disco, escoliose, unha encravada, esquizofrenia, tudo levava ao exame das fezes. Pelo menos não escreviam o nome do laboratório no envelope pardo. O pessoal fingia que não sabia o que havia lá dentro.

A insegurança vem modificando os hábitos clínico-analíticos das pessoas. Hoje conheci um sujeito que carrega um notebook numa sacola com nome de laboratório e com os dizeres: Exame de Fezes Coletivo.

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11.11.08

489 - Aincrível esteira da Daphne

Foto: Wikipedia


A incrível esteira da Daphne

Por Paulo Heuser


O Zé descobriu, da pior maneira possível, que está um tanto fora de forma, ou pior, que está com a forma errada: a forma de porongo. Ele entrou no elevador lotado do clube vestindo uma camiseta esportiva, na qual se lia a palavra fitness – boa forma. Um piadista de plantão sugeriu que ele colocasse uma perna no i e corrigisse para fatness – gordura. Aquilo foi demais. Zé resolveu entrar em forma e decidiu comprar uma esteira.

A loja RunningWorld se destacava entre as demais. Não só pela fachada. Havia aquela jovem que corria elegantemente sobre uma esteira, com o rabo-de-cavalo oscilando para lá e para cá em perfeito MOH – Movimento Oscilatório Harmônico. O Zé permaneceu parado, olhando aquela jovem correr, enquanto calculava sua velocidade média, através da freqüência de oscilação do cabelo. Era evidente que o movimento harmônico do rabo-de-cavalo tirava algo da eficiência da corrida, mas quem se importava?

Parado ali, Zé nem se deu conta da presença de outra linda jovem, que lhe sussurrou um “pois não” que chegou a lhe provocar arrepios na nuca.

- Estou só olhando... as esteiras, bem entendido.

- Sei, você já conhece a PumpkinHead? – sussurrou a voz.

- Não, mas ela corre muito bem. Vê-se pelo rabo-de-cavalo...

- Oh, não, aquela é a Daphne. Refiro-me à esteira PumpkinHead Tracker 9000 XTP!

- Esteira? Ah, sim, agora reparei nela. Como é grande!

- Sim, você pode correr acompanhado. Há coisa mais chata do que correr sozinho?

- Para dizer a verdade, prefiro caminhar pelas ruas ao ar livre...

- Em meio a toda essa poluição e insegurança? Só louco mesmo!

- Bem, também não é tudo isso, e não tenho com quem caminhar.

- Ora, a Daphne também é personal walker, e pode acompanhá-lo graciosamente, por 30 dias. Depois, poderemos pensar num contrato Daphne mensal estendido.

- Bem, prefiro as ruas, pois há subidas e descidas. As esteiras são muito monótonas, sem a Daphne, é claro.

- As esteiras eram monótonas, até o lançamento da PumpkinHead Tracker 9000 XTP. Essa esteira simula aclives e declives em ângulos de até 60 graus.

- Sessenta graus? Caramba! Isso está mais para se fazer alpinismo!

- Sem dúvida, o modelo PumpkinHead Tracker 9000 XTP Climbing Hurricane II simula alpinismo nas mais conceituadas montanhas do mundo. Tudo com projeção Full HD na tela de 52” que acompanha o modelo PumpkinHead Tracker 9000 XTP Climbing Hurricane II Crystal Bright Vision.

- Com a Daphne?

- Não, a Daphne não é personal sherpa, mas temos uma tibetana que poderá acompanhá-lo.

- Não, obrigado. Ainda prefiro as ruas. É mais ventilado. Eu teria de colocar ventilação forçada em casa...

- Teria! Porém, o modelo PumpkinHead Tracker 9000 XTP Climbing Hurricane II Crystal Bright Vision Atmospheric Warrior apresenta um exclusivo sistema de condicionamento climático. Ele garante individualidade atmosférica, sem mistura de odores e respingos de fluidos corpóreos.

- Nem os da Daphne?

- Nem os da Daphne.

Não foi a falta de mistura de odores e de fluidos da Daphne que levou o Zé a desistir da PumpkinHead Tracker 9000 XTP Climbing Hurricane II Crystal Bright Vision Atmospheric Warrior. A esteira era maior do que a sala do apartamento do Zé e custava mais do que o apartamento inteiro. E a Daphne era mais cara do que a taxa de condomínio. Tampouco foi a falta da esteira que impediu o Zé de melhorar a forma. Ele hoje já corre pelas ruas, imaginando o rabo-de-cavalo da Daphne a sua frente e tentando esquecer a imagem da Maria, sua mulher, correndo atrás dele, ao saber daquela.

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10.11.08

488 - A comenda da Yarinha


Foto: Wikipedia
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A comenda da Yarinha

Por Paulo Heuser


Yarinha Mesquita-Medeiros é uma mulher definitivamente fina. Ela descende do clã que teve origem na famosa região do Baixo Brejo de Trás Montes, em Portugal. Dom Ázimo IV veio ao Brasil com D. João VI. Ao contrário deste, aquele ficou e prosperou. Assim iniciou-se a saga dos Mesquita-Medeiros no Brasil. Yarinha descende de D. Ázimo e mantém a tradição da benemerência, típica das Mesquita-Medeiros.

Na última sexta-feira, Yarinha manteve sua exaustiva rotina semanal. Levantou-se cedo, às nove horas, tomou seu desjejum, passou os olhos pelos jornais e recebeu seu personal trainer. Como em todas as sextas-feiras, ela jogou paddle com as amigas, até as 11h45. Após a massagem, encontrou-se com as comadres da Comenda das Lulús. Almoço frugal na Padre Chagas completou aquela exaustiva manhã.

Fazer o quê. O mundo não pára de girar. Nem Yarinha. Sua agenda bipava anunciando o próximo compromisso: maquiagem e cabelo no Kako Stylist Beauty. Ela passava por lá todos os dias, mas na sexta-feira ela queria um tratamento especial, pois receberia a Comenda! Muitas fotos, tim-tim de cálices e tudo que faz a vida valer a pena ser vivida. Yarinha é avessa as muitas plásticas. Ela acredita que deve manter a forma sem apelar para os exageros de esticamento. Yarinha tem noção do aparecimento, ao lado da boca, daquilo que as muito invejosas chamam de rugas, e as menos invejosas chamam de marcas de expressão. No entanto, ela sabe que muitos homens chamam aquilo de expressão da vivência, as marcas que denunciam uma mulher segura, determinada e que sabe o que procura. Conferem-lhe muito de charme. Assim, não demorou mais de duas horas para dar uma retocada. Yarinha sentia-se tão disposta que até dispensou o motorista.

Yarinha embarcou no imenso S LXV – o carro é tão grande que seu modelo é designado em algarismos romanos – e afivelou o cinto de segurança que envolveu suave e firmemente seu corpo contra o assento revestido de couro de antílope. O clique da fivela do cinto despertou algo adormecido no interior da Yarinha. No início, foi apenas uma minúscula chama piloto que se acendeu. A única marca externa que poderia se perceber era o leve pronunciamento da expressão de vivência do lado direito da boca de Yarinha. Quando ela pressionou o botão de partida do motor, seu coração passou a bater em um ritmo mais acelerado. Nem pestanejou, quando colocou o câmbio na posição Sport e pisou fundo no acelerador. A Mostardeiro não ajudava com aquele eterno congestionamento. Aquele pára e não anda já se fazia sentir. As expressões de vivência já estavam mais para marcas de expressão, tendendo mesmo às rugas. Aquilo sim poderia se chamar de ativo imobilizado. Centenas de milhares de dólares - e de cavalos de força – imobilizados na Mostardeiro.

Após 20 minutos e 12 metros, as narinas da Yarinha dilataram-se nitidamente. Sua respiração ficou mais curta. Aos 38 do segundo tempo veio a erupção. Yarinha se transformou no Vesúvio das Pompéias e dos Herculanos que a cercavam. A mulher saiu do sério. Entre buzinadas, ela despejou uma lava oral calcinante. Abriu os vidros pretos do imenso carro preto e despejou enxofre verbal.

Eu peguei carona com minha filha, que dirigia obedecendo a todos os códigos de trânsito, de civilidade e de educação. Acabamos compartilhando a Mostardeiro com a Yarinha. Eu nem sonhava com a presença de uma autêntica Mesquita-Medeiros, descendente de D. Ázimo IV, a bordo daquele carro impressionante. Porém, perguntava à minha filha sobre o que poderia levar uma mulher aparentemente tão fina quanto aquela a protagonizar tal mico.

O que eu ignorava, era a razão de tal desespero. Yarinha estava atrasada para a cerimônia da entrega da comenda que ela receberia, fruto dos seus esforços em prol da campanha pela direção defensiva!

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6.11.08

487 - Hermético


Foto: Juliana Heuser
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Hermético!

Por Paulo Heuser


Esses supermercados de shopping são interessantes. Fui comprar não me recordo o quê e aproveitei para comprar pão. O pessoal de O&M do supermercado inovou. Em vez de privilegiarem o atendimento dos que levam poucos itens na cesta, criaram um sistema de atendimento que sumiu com as filas dos caixas que atendem grandes ranchos. Como eu levava o pão, entrei na imensa fila do pronto-atendimento.

Filas de supermercado compõem um universo mercadológico à parte. As filas existem para que possamos escolher mais alguns produtos expostos naquelas prateleiras que formam o brete, como os chicletes, os chocolates e os CDs de música relaxante do monge zen Ryotan Tokuda. Por que não expõem nabos e rabanetes naquelas prateleiras? Ou, quem sabe, desentupidores de vasos sanitários?

A fila até que andava, não o nego. Enquanto eu examinava a lista de músicas da obra do Tokuda, algo me chamou a atenção. Aliás, do shopping inteiro. Havia um sujeito, lá pela 23ª posição da fila, que atendeu ao telefone móvel.

- Alô! Sim, sou eu mesmo!

Duas coisas sobressaíam: o volume da voz do sujeito e o forte sotaque daqueles que habitam as regiões situadas entre o norte do Trópico de Capricórnio e o Equador. O homem não precisava do telefone. Ele gritava tanto que poderiam ouvi-lo em Sertãozinho do Xurubica, mesmo sem o aparelho.

- Cheguei, cheguei! Estou em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul!

- Ainda é no Brasil, quase fora, mas ainda é Brasil!

- Olhe só, os gaúchos até parecem gente... É, não dá nem para se notar muita diferença. Só quando eles abrem a boca! Aí, só vendo!

- Ainda não vi a cidade, só da janela do avião!

- Não dá para ver muito, pois o avião é hermético! É, é hermético!

- Não, não dá para abrir a janela, é hermético!

Aquele hermético soou mais hermético do que qualquer hermético que eu já ouvi. O que chamava a atenção era a pronúncia, com o i quase engolido. Ficava muito hermético, mesmo!

- Não, não dá nem para fumar lá dentro. É hermético!

- Comer, pode... Não, não dá para jogar os ossos pela janela! Eles nem servem carne com osso! É hermético! Eles descobriram galinha sem osso!

Naquele momento, percebi o quanto os gaúchos deixam para trás quando viajam de avião. O que fazer com os ossos da costela gorda, visto que não podemos jogá-los pela janela? Entendi também por que não servem cocos verdes a bordo. É hermético! Definitivamente hermético!


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5.11.08

486 - O lado B da Feira do Livro - 2a. Parte


Foto: Wikipedia
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O lado B da Feira do Livro – 2ª Parte

Por Paulo Heuser

Já que houve uma primeira parte deste texto, me sinto obrigado a escrever uma segunda. Do contrário, imitaria Mel Brooks, que criou A História do Mundo – Parte I (1981), sem produzir jamais uma parte dois, apesar de haver um trailer desta incorporado àquela. Durante muito tempo perguntaram-lhe da continuação. Mel Brooks sempre negou que produziria uma seqüência da parte que cobriu o período compreendido entre a pré-história e a Revolução Francesa.

A Feira do Livro de Porto Alegre transforma profundamente a Praça da Alfândega, em Porto Alegre, local onde se realiza desde 1955, quando foi inaugurada com 14 barracas. A Feira encontra-se na sua 54ª edição. Acompanhei as últimas 33 edições, mesmo que como apenas observador. Ocorre que sou - de certa forma - vizinho da Feira, pois trabalho ao lado dela. Como passo pelo menos três vezes ao dia por lá, posso acompanhar a transformação da Praça da Alfândega em Feira do Livro.

Honestamente, não me recordo das primeiras edições da Feira, pois era composta daquelas poucas barracas que não modificavam a vida de quase ninguém. Um dia elas apareciam, noutro sumiam. Nas últimas duas décadas, porém, a feira cresceu assustadoramente, modificando ou expulsando tudo o que há por lá. As carrocinhas de pipocas deram lugar à praça de alimentação, e a imprensa montou estúdios que transmitem ao vivo. As sessões de autógrafos sucedem-se pela tarde e pela noite.

Sou daqueles que assistem ao lado B da Feira. Ele inicia já algumas semanas antes do evento, quando os vendedores de artesanato guadério-jamaicano são removidos do centro da Praça da Alfândega para a periferia. Então, inicia-se a obra. As antigas barracas que ficavam ao sabor do humor do nosso clima de primavera cederam lugar à cidade literária coberta por metal e plástico. Houve motivo para tanto. O mata-bancário – vento encanado do Guaíba que atravessa a praça – sopra mais quente na primavera. Porém, sopra com uma intensidade que chega a dar saudades do inverno. Tipicamente, ocorrem pequenos tornados, furações, aluviões e monções. O sistema climático representado pela Praça da Alfândega desafia os engenheiros e especialistas em aerodinâmica das construções. Já não se vêem as cenas de grande destruição do passado, mas que o pessoal fica apreensivo quando esquenta muito, ah, isso fica.

Os personagens que povoam a Alfândega também somem com a chegada da Feira. O Nestor sumiu. Logo ele, que vive da mendicância alfandegária. Mais gente, mais esmolas, esse seria o raciocínio lógico. Contudo, Nestor não agüentou o barulho que tomou conta do seu lar. Serras, martelos e máquinas de solda encobriram o canto dos sabiás. Na sua última aparição, foi entrevistado pela jovem jornalista à cata de alguma coisa para preencher a lacuna entre o Caso Nardone e o Caso Eloá. Questionado sobre o livro que escolheria, Nestor respondeu de pronto: o Aurélio. A jovem jornalista ficou encantada com o amor que o Nestor demonstrava pela Língua Portuguesa. Ele interveio - também de pronto - esclarecendo que preferia o Aurélio porque ele teria mais páginas para servirem de combustível nas noites mais frias. Enfiaram o Obama no Vacatio criminis da telinha.

Os índios apaches que cantam canções sul-americanas foram transferidos para a volta do Mercado. Dos pregadores, nada sei. Sei da preferência literária dos adolescentes e crianças, despejados diariamente pelo sem número de ônibus que atracam na Siqueira Campos, para o desespero dos demais motoristas. Excitada, a gurizada pergunta ao tio: - onde fica o McDonald’s?

As prostitutas da Praça chamaram reforços. Uma morena de profissão certa e idade incerta comentava com sua companheira de labuta: - Credo, aquele homem não me desceu! Estou arrotando até agora! – Coisas do lado B da Feira do Livro.


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1.11.08

485 - O lado B da Feira do Livro - 1a. Parte

Fonte: Wikipedia
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O lado B da Feira do Livro – 1ª Parte

Por Paulo Heuser


Minha primeira Feira do Livro não foi essa da Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Foi a FIEL – Feira Intercolegial Estudantil do Livro, em Santa Cruz do Sul, lá pelos idos de 1970, se não me falha a memória. Essa feira – como o próprio nome indica – agregava pessoal de todos os colégios da cidade. Era uma feira tocada pelo trabalho voluntário dos estudantes coordenados pelo Padre Silvério Schneiders.

Até hoje não sei por que me escolheram para fazer as vezes de gestor de pessoal da dita empreitada. Eu deveria escolher os voluntários para trabalharem nas bancas de venda dos livros. Logo descobri que não seriam os voluntários, e sim, as voluntárias. Não que não houvesse candidatos. O problema foi a terrível pressão que sofri por parte dos rapazes. – põe a Fulana, põe a Cicrana, põe sei lá quem! – diziam. Fui perseguido pela rua pelos adoradores de uma ou de outra, que queriam vê-las ali, atrás do balcão, durante horas. Confesso que me deixei levar pela pressão, e aquela FIEL deve ter sido a mais fiel da história ao sexo feminino.

O que parecia ser barbada, não foi. Eu deveria anunciar a escalação das equipes. Subitamente, me vi perante uma multidão de adolescentes ansiosos, em pleno salão nobre do Colégio Sagrado Coração de Jesus – o das freiras -, tendo que falar para toda aquela gente. Eu, um luterano, em pleno Colégio das Freiras! Eu tinha a forte impressão de que as freiras ao fundo me olhavam de modo estranho, como se dissessem: Vade retro! Até aquele dia, minha experiência de falar em público se resumia às aulas de Português do Prof. Osvino, que promovia eventos onde os alunos do Colégio Mauá liam textos para os demais alunos da mesma série. Ajudou muito, mas lá no Colégio das Freiras eu estava entre estranhos, em sua maioria, e, o que era mais aterrador: eram católicos. As freiras continuavam me olhando de modo estranho. Estaria a Rosa de Lutero estampada na minha testa?

Enquanto alguém dava os avisos gerais, tentei me preparar psicologicamente para falar àquela multidão. Porém, eu estava nervoso, muuuuito nervoso. Meus joelhos tremiam, o papel entre meus dedos servia para abanar todos à mesa. Meu rosto deveria estar extremamente rubro. Pessoas nervosas costumam manipular objetos como forma de descarregar a tensão. Eu fiz o mesmo e escolhi um enorme grampeador de papéis, que estava sobre a mesa, para aliviar minha tensão. Eu grampeava o ar sob a mesa. Pessoas nervosas fazem coisas estúpidas. O grampeador escorregou da minha mão suada e quase caiu. Num ato reflexo consegui segurá-lo. Pena que grampeei meu dedão da mão direita. Uma dor lancinante subiu desde o dedão grampeado. Para piorar tudo, o grampo permaneceu gravado no infeliz dedão. Alguém pode imaginar mico maior do que grampear o próprio dedão, no palco do Colégio das Freiras, na frente daquela multidão? Com freiras e tudo? Doía muito, mas eu tentei manter a pose.

Uma jovem que andava de Lambretta – uma predecessora italiana da scooter japonesa –, de cujo nome não me recordo, me salvou. Ela percebeu a situação e me levou para uma sala ao lado. Uma freira providenciou um alicate e retiraram o grampo do meu inchado dedão. O alívio foi tanto, que voltei e dei meu recado àquela platéia, sem maiores dificuldades.

Acreditam que o ecumenismo surgiu da Conferência Mundial de Edimburgo, em 1910. Para mim, começou em 1970, no Colégio das Freiras. Uma jovem e uma freira me despregaram da cruz do meu pavor de falar ante àquela multidão.

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