27.2.09

505 - Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus

William-Adolphe Bouguereau (1879)
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Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus


Por Paulo Heuser



Dois sinais de que o homem está longe de alcançar um patamar evolutivo aceitável são os pêlos. São dois sinais, efetivamente, pois além da barba dos homens, há os pêlos das pernas das mulheres, para não falar de outros. Pode parecer que não há, mas há. O homem vem lutando há séculos contra os pêlos. Algumas mulheres até dizem que gostam dos pêlos, mas, pelo sim, pelo não, dizem não aos pêlos e se depilam.

Os homens se queixam de ter de fazer a barba todos os dias. Fazer talvez seja o verbo errado, pois desfazem a barba. Cortam-na. Talvez aí resida a fundamental diferença entre homens e mulheres, pelo menos no que diz respeito aos pêlos. Os homens enfrentam um pequeno sacrifício diário, enquanto as mulheres enfrentam grandes sacrifícios semanais ou mensais, sei lá. Algumas mulheres criaram, como vingança, a imagem do homem que se depila, e alguns homens acreditaram que fariam enorme sucesso caso deixassem os pêlos na cera. Esse novo homem, moldado nas academias, estabeleceu um novo tipo de relação com as mulheres. Discute, de igual para igual, as técnicas de depilação e conhece o produto da Copernicia cerifera – carnaúba - orgânica só pelo cheiro. Afinal, não se depilará com qualquer cera.

O homem antigo só depila a cara. Homem antigo não tem rosto, tem cara. Muitos arrancam os pêlos da cara com o auxílio do filixêive, aparelho dotado de lâminas rotativas que atuam como roçadeiras. Outros preferem as lâminas de barbear. Há ainda os ultraconservadores, que preferem as navalhas de barbeiro. As lâminas de barbear – as populares giletes – iniciaram como aparelhos de tortura, que, além de cortarem os pêlos, removiam boas porções da pele e algo mais, os chamados bifes. Com aquelas lâminas, berrugas na cara não prosperavam. Zit! Terraplenavam o que havia pela frente, fossem pêlos, fossem outras manifestações cutâneas espontâneas. Então, em algum momento do passado, inventaram os barbeadores descartáveis, de duas lâminas, de três lâminas, com lâminas flutuantes, com fitas amaciantes e assim por diante. Os mais recentes ajustam-se automaticamente à lavoura cutânea a ser roçada.

As mulheres compram e não usam os aparelhos para depilação dotados de lâminas. Há lindos aparelhos cor-de-rosa para a depilação feminina. Porém, as mulheres gostam mesmo é das lâminas de barbear masculinas e surripiam sorrateiramente as Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus dos pobres companheiros. Aí, os mais tradicionais, que usam filixêive, levam vantagem. Mulher odeia filixêive, pelo menos para uso próprio. A princípio, nada haveria contra o uso das Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus por parte das mulheres. Contudo, quem é homem e coabita com mulheres que gostam de Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus sabe: uma vez usadas para depilação feminina, seja lá do quê, essas antes maravilhosas lâminas se transformam em pavorosos instrumentos que produzem escoriações tipo grafiato cutâneo nos rostos masculinos. Basta uma só vezinha. E de nada adianta surripiar o aparelho delas, pois não há Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus feminino.

Aí vai uma dica de esconderijo para as suas Turbo Flash Ultra Grip Tensor Plus: ao lado dos aparelhos cor-de-rosa delas. Elas nunca pensarão em procurá-las lá.

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26.2.09

504 - És pó e ao pó hás de voltar


Foto: Paulo Heuser
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És pó e ao pó hás de voltar

Por Paulo Heuser


Além de ter sido o maior velório de todos os tempos, foi disparado o mais pomposo. Não houve gente em manga de camisa nem jovens calçando tênis. Só gente graúda vestindo terno ou vestido preto. O féretro foi seguido por uma interminável sucessão de limusines reluzentes. A família concordou em colocar as cinzas do finado no único jazigo do cemitério, construído especialmente para ele.

O que mais chamou a atenção naquele velório foi a consternação autêntica. Não houve fingimento. Quem lá estava, pranteava de verdade. Uns consolavam os outros, apesar de saberem que aquela perda seria realmente irreparável. Nunca antes neste País, nem fora dele, havia partido alguém tão importante. Nem reis, nem papas, ninguém faria tanta falta como ele. De lá sairia uma legião de milhões de órfãos.

Era evidente que ele partiria desta para a melhor, mas ninguém viu, ou melhor, não quis ver. Era apenas uma questão de tempo, mas ninguém viu, ou melhor, não quis ver. Na verdade, todos sabiam que terminaria nisso e sempre deixaram que os outros pensassem numa solução. Sempre havia como culpar os governos, pois estes seguiram a morfogenia de uma ameba e não detinham o poder de frear os conluios pandêmicos que levaram a essa situação.

Os primeiros sintomas passaram despercebidos. Tiraram-lhe o emprego e lhe disseram que poderia se dedicar às atividades mais nobres. Porém, estas tinham dono, que não queria largá-las. Essas atividades mais nobres deixaram de ser tão nobres como outras ainda mais nobres e foram delegadas às máquinas. Assim, os executores das atividades ainda mais nobres foram liberados para executarem atividades muitíssimo mais nobres. Ele, que lá jazia, só tinha uma pergunta, que morreu engasgada com seu último estertor. As atividades muitíssimo mais nobres deram lugar às atividades espantosamente mais nobres. A pirâmide das ocupações foi perdendo sua base, e ele galgou posições à medida que pode. Quando ele chegou próximo do topo, começaram a notá-lo, finalmente. Contudo, era tarde demais para ele, e, por que não dizer, para todos que lá estavam. Quando o futuro chegou, não perdoou.

A resposta à pergunta que morreu com ele veio implícita no seu próprio ato de morte. Terminados todos os empregos, quem consumiria? A multidão de fornecedores pranteava a morte do último consumidor. Ele era pó e ao pó voltou.

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24.2.09

503 - A revolta dos pastéis

Foto: Paulo Heuser
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A revolta dos pastéis

Por Paulo Heuser


Era domingo de Carnaval, e João - vamos chamá-lo assim, pois efetivamente é o seu nome - temperava uma ovelha para o churrasco da noite, na sua casa de praia. João contou este causo enquanto saboreávamos a tal da ovelha. Naquela tarde, ele estava com as mãos cheias de tempero quando ouviu o bater de palmas ao portão. Meio a contragosto, foi verificar do que se tratava, pois, naquele momento, encontrava-se sozinho em casa. Verificou tratar-se de uma moça morena, de aparência pobre. Então, travou-se o seguinte diálogo:

- O que deseja?

- O senhor me desculpe, mas haveria qualquer resto de comida? Estou com muita fome.

Ela disse isso em tom estranhamente normal, sem lamúria nem súplica. Apenas disse. João já estava impaciente, pois já haviam tentado lhe vender canetas, em nome da paróquia, e outras coisinhas que, quem está de férias, não quer. Ele apenas disse:

- Lamento, mas estou ocupado, e minha mulher não está em casa.

- Senhor, eu sei que estou lhe incomodando, mas realmente estou com fome.

Naquele momento, a ficha caiu. João percebeu que, por trás de uma aparente calma, aquela moça sentia algo que ninguém deveria sentir, pelo menos involuntariamente. Muitos passavam fome voluntariamente, naquela praia, para se manterem dentro dos padrões estéticos vigentes. Não aquela moça. Ela estava se lixando para as aparências e queria apenas comer. Queria deixar de sentir aquele vazio dolorido. Tocado no íntimo, João lavou as mãos e encontrou alguns pastéis comprados naquele dia, mas não consumidos. Alcançou-os à moça, que disse no mesmo tom de intrigante calma:

- O senhor não tem idéia do bem que me fez.

Agradecida, a moça seguiu seu caminho, enquanto comia os pastéis salvadores. Aquele evento abalou as estruturas do João. Tanto que ele fez algumas pausas, enquanto relatava o ocorrido. Todos ouviram em silêncio e deixaram a ovelha de lado, por um instante.

Na segunda-feira, eu lutava contra Umberto Eco. Lutava, porque não conseguia avançar três linhas na mesma página. Algo me perturbava. Era o relato do João. Havia algo extremamente perturbador naquilo. Olhando a chuva, percebi o que era. Ninguém mais encara o pedinte como alguém que passa fome. Associamos o pedinte com o achaque que sofremos no dia a dia, que parte daqueles que nos abordam, às dezenas, seja nos sinais, seja na exclusão do assistencialismo eleitoral oficial. O incluído social passou a ser aquele que consome eletrodomésticos em 24 vezes para pagar - a primeira só depois das eleições. Contudo, há os que passam fome. Fome. Eles não têm o que comer e recusam-se a chafurdar no lixo. Passam pela fome digna, apesar de nada haver de digno na fome. Não querem celular pré-pago nem TV de plasma. Querem comida.

A moça ganhou seus pastéis, que devem tê-la mantido até o outro dia. João ganhou seu dia. Mais, provavelmente, ganhou gratidão. A ovelha se foi, devorada pelos convivas. Umberto Eco me desafia a seguir na nem sempre fácil leitura dos seus escritos. E eu? Bem, fiquei a olhar para a chuva, que caía persistente, a imaginar que a falta de um pastel poderá iniciar uma revolução.

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18.2.09

502 - Companhia Indiana das Índias Ocidentais


Foto: Wikipedia
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Companhia Indiana das Índias Ocidentais

Por Paulo Heuser


Lá pelos muito idos de 1600 d.C., um grupo de ricos comerciantes britânicos fundou a Companhia Britânica das Índias Orientais, que recebeu da rainha Elizabeth I, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, o monopólio sobre a comercialização do chá. O negócio foi de vento em popa, apesar das tentativas de portugueses, franceses e holandeses de romper o monopólio. A importância do monopólio do chá, na época, poderia ser comparada, hoje, à importância do monopólio da comercialização das drogas lícitas e ilícitas durante o Carnaval. Destas, não sei a quem pertence, mas há o daquelas, pois todas as cervejas vêm da Companhia Cervejeira das Índias Ocidentais.

A Companhia Britânica das Índias Orientais centrou sua atuação na Índia. O monopólio do chá incomodava particularmente os colonos que haviam desembarcado na América do Norte. Na noite de 03/12/1773, comerciantes camuflados de índios Mohawk derramaram a carga de 342 caixas de chá dos navios da Companhia Britânica, no porto de Boston, em forma de protesto. Esse evento, conhecido como a Festa do Chá de Boston, fez parte daqueles que levariam à independência norte-americana. A perda do mercado da grande colônia foi um duro golpe no monopólio britânico do chá. Após a Revolta dos Sipaios, em 1857, o governo britânico comprou os direitos da companhia, que foi liquidada.

Os indianos estão se vingando sobre nós. Eles teriam criado a Companhia Indiana das Índias Ocidentais, detentora do monopólio da exploração da cultura indiana no Brasil e naqueles países que consomem nossas novelas. O País respira Índia. As rádios propagam música pop indiana. À noite, todos estão grudados na tela da TV, e já se oferece toda espécie de produtos indianos. A moda pegou de vez, das roupas à culinária. Quem anda pelo Nordeste já pode comer buchada temperada com páprica e caril ou carne-de-sol com masala e jerimum. Lagostas ao mango chutney completam um bom cardápio indo-brasileiro. Tudo servido pelas garçonetes dançando ao som do maracatu indiano. Para beber, nada, pois os indianos não misturam comida e bebidas. Cedo ou tarde, alguém adaptará a comida dos pampas à moda indiana, o que poderá ser perigoso. O inevitável rodízio de vaca sagrada provocará a ira dos gurkhas, os temidos nepaleses que fizeram os argentinos borrarem as calças, durante a Guerra das Malvinas, antes mesmo da sua chegada ao cenário da batalha. Gurkha significa “protetor das vacas”, em sânscrito.

Há mais o que temer, além dos terríveis gurkhas, na invasão indiana da Companhia Indiana das Índias Ocidentais. Alguém terá a idéia de vender água do Ganges engarrafa. O pessoal daqui se adapta rápido às novidades e poderá criar o maior de todos os pavores: a dupla Mumbaiano e Novadéli entoando mantras sertanejos. Nem os Intocáveis merecerão isso.

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11.2.09

501 - O pavor nuclear


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O pavor nuclear

Por Paulo Heuser


Os anos de 1986 e 1987 marcaram a década dos grandes acidentes nucleares. Em 1986, ocorreu o pavoroso acidente com a usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, local até hoje isolado e inabitável. Os números oficiais falam em quatro mil mortos, os não tão otimistas falam em 97 mil mortos e os pessimistas falam em sete milhões de atingidos, em maior ou menor grau.

Em 1987, os sócios de um ferro-velho de Goiânia reviraram as instalações abandonadas do Instituto Goiano de Radioterapia e encontraram uma cápsula de Césio-137, isótopo radioativo utilizado em equipamentos de radioterapia. Após venderem a cápsula que continha o Césio-137, que foi aberta, contaminaram 638 pessoas, pelos números oficiais, quatro das quais morreram em curto prazo.

Neste novo século, as notícias alarmantes se sucedem. O G1 noticiou, em 22 de junho de 2008, que agentes federais do Presídio de Segurança Máxima de Catanduvas (PR) haviam sido expostos ao isótopo radioativo Césio-137, ao brincarem com um aparelho de raios-X utilizado para fiscalização. Nestes tempos de iutube, um agente envolvido na brincadeira disponibilizou o vídeo produzido na ocasião.

Em 30 de janeiro de 2008, novo alerta. A Folha do Acre noticiou um incidente ocorrido em Rio Branco, na estrada de Quixadá. A manchete foi: Aparelho de raio-X contendo Césio-137 some de ferro-velho. E a história se repetiu. O dono do ferro-velho chamou um amigo, para juntos abrirem o tal do aparelho que conteria a substância mortal. Fala daqui, fala dali, e a notícia chegou ao Instituto de Criminalística do Acre, que de pronto enviou peritos ao local. Eles descobriram que a cápsula contendo o Césio-137 havia sumido. O aparelho teria sido recolhido e enviado ao Instituto do Câncer de Rio Branco. Os peritos mediram os níveis de radiação no local e nada encontraram. O jornal alertou para o perigo da eventual abertura da cápsula de Césio-137, que promoveria matança em massa num raio de 30 km. A partir daí, o mistério dominou o explosivo assunto, pois nem a polícia federal nem a estadual manifestarem-se sobre o ocorrido. Segundo a Folha do Acre, havia uma bomba adormecida em algum lugar da capital daquele estado. Então, descreveram, com algum detalhe, o funcionamento da cápsula de Césio-137, sob o título: Bomba. Estranharam também o fato de o governo não haver interditado o local. O que causava mais pavor era a emissão de 662 keV de raios gama. O que seria um keV? A história indicava que o assunto estaria sendo abafado pelas autoridades, como nos melhores, ou piores, filmes norte-americanos do gênero ficção-catástrofe.

A resposta à teoria da conspiração veio logo, em nota assinada pela Dra. Denise Pinho, Delegada Geral de Polícia Civil. Em brilhante nota, ela demoliu a boataria criada em torno do assunto, ao esclarecer algo fundamental na Física: aparelhos de raios-X são elétricos e não utilizam isótopos radioativos. Quando desligados da força, nada mais geram. Os raios-X se originam na coroa eletrônica - que não é uma senhora ouvindo aipode -, enquanto os raios gama se originam no núcleo dos átomos. Os isótopos radioativos são utilizados nos aparelhos de radioterapia, não nos de radiologia. Aqueles servem para o tratamento do câncer, e estes para o diagnóstico. A nota da Dra. Denise foi bastante precisa e, por que não dizer, usou de fina ironia, pois atribuiu o sumiço da cápsula a sua inexistência. Ela mostrou-se indignada com a divulgação da falsa informação de que a “bomba” havia sido enviada a um hospital, para desespero dos pacientes lá internados.

Esses incidentes e acidentes ensinam alguma coisa: donos de ferros-velhos adoram cápsulas de Césio-137; donos de aparelhos de radiologia e radioterapia adoram abandoná-los; válvulas eletrônicas e cápsulas de isótopos radioativos não são iguais, pois estas podem contaminar o ambiente, ao contrário daquelas; jornais adoram colocar Césio-137 em aparelhos de raios-X. Ninguém sabe o que são keVs, mas, que vendem jornais, vendem. Aprendi algo além de tudo isso: H.G. Wells fez escola, com sua Guerra dos Mundos (1953).

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9.2.09

500 - O karaokê e o tanquinho


Foto: Wikipedia
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O karaokê e o tanquinho

Por Paulo Heuser


O Zé andava atrás de uma dessas TVs modernas, de LCD. Ele ainda assistia ao jornal da manhã numa daquelas caixas enormes movidas a raios catódicos. O interessante da tecnologia era isso, todo mundo assistia à TV, mas muito poucos conseguiam entender como ela funcionava. Filosofia tecnológica à parte, Zé folheava o jornal, quando viu o anúncio da bombástica oferta de televisores LCD. A monstruosa megaloja da hiper-rede, inaugurada defronte à hiperloja da ultraconcorrente, colocou TVs de LCD em oferta por quase a metade do preço de mercado. A concorrente ultrajada foi além e baixou ainda mais o preço.

O café do Zé ficaria pela metade, se ele tomasse café. Ele tomou banho com uma mão, escovou os dentes com a outra e fez a barba com a restante. Em menos de dez minutos, já afivelava o cinto de segurança e partia na direção dos supremos templos do consumo popular. As lojas abririam excepcionalmente às sete horas. Como essas ofertas não duravam muito, era bom se apressar. Entrar no estacionamento da primeira loja não foi problema maior. O Sol nascia, e o Zé conseguiu chegar rapidamente até o setor de eletrônicos para descobrir que o amplo estoque de 20 aparelhos havia se ido antes do Sol nascer. Porém, caso quisesse, ele poderia levar um karaokê que só aceitava gospel sertanejo. Zé não se deixou levar pela emoção de levar o primeiro produto que ele não viera comprar. Afinal, sempre havia o concorrente do outro lado da rua.

Sair do estacionamento da hiperloja não foi tão fácil como foi entrar. Um tsunami automobilístico impedia o Zé de avançar para a saída. Autômatos funcionários entregavam tíquetes aos entrantes, que se espalhavam como baratas em disparada, ao acender da luz, e bloqueavam qualquer rota de fuga. Será que haveria karaokês para todos? Antes de descobrir a resposta, Zé saiu arrojadamente, pela entrada, e pegou todos de surpresa. Ele se viu em meio à rua lateral, de onde saíam imensos caminhões pertencentes a uma empresa de logística.

O empreendedorismo não perdeu tempo. Aquela esquina transformou-se repentinamente num fantástico mercado em potencial com milhares de clientes literalmente cativos. Do nada, surgiram vendedores de tudo aquilo que pode ser vendido, bem como daquilo que não pode ser vendido. Sucos, cervejas, pastéis, pamonhas, trancas para volante, guarda-sóis e outras tralhas passaram a ser oferecidas em meio ao caos da imobilidade. Alguns compravam ouro, outros cortavam cabelo e ofereciam serviços ligados à área do entretenimento alternativo noturno. Lá mesmo, atrás de um biombo improvisado. Malabaristas jogavam abóboras para o alto. Lá pelas 14 horas, a 20 metros da esquina, surgiu um vendedor de TVs LCD que ofertava o produto da oferta pelo dobro do preço, ou seja, pelo preço normal de mercado. No carro ao lado, uma mulher de meia-idade comprou duas. Feliz da vida, gritava que lograra êxito. Comprara duas TVs da oferta, pelo preço de quatro. O importante era comprar, seja o que fosse, seja por quanto fosse.

Passava das 15 horas, e o Zé já se sentia profundamente idiota. Também sentia sede Pagou sete reais pelo copo de mineral que já veio aberto. Quando se queixou do gosto, o vendedor lhe afirmou que o carro nunca se queixara do conteúdo do radiador. O arrependido Zé tentou voltar ao Centro, mas não conseguiu. A massa automobilística o empurrou para o interior da megaloja, do outro lado da rua. Não havia como fugir. Ele se deixou levar pelo tsunami do trânsito e se viu espremido, no meio do estacionamento. Zé temeu deixar o carro quando viu uma velhinha soltando gás de pimenta num homem vestindo terno que tentava tomar a plasma de 42” que ela levava no carrinho. A velhinha gritava e batia no engravatado com o cabo de uma vassoura. Logo adiante, duas donas de casa engalfinhavam-se em violenta batalha, pelo tanquinho em oferta. Não, não era pela barriga de tanquinho do rapaz da propaganda. Era pelo tanquinho de lavar roupa.

Passava das 22 horas, quando o Zé deixou o estacionamento da hiperloja. Ou seria da superloja? Da megaloja? Saiu como entrou. Levado pela multidão. Ele chegou em casa, sentou-se no sofá e conseguiu apenas balbuciar: - Eu sou um idiota! Ninguém conseguiu tirar o Karaokê gospel sertanejo das suas mãos. Muito menos o tanquinho.

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4.2.09

499,999 e 9/10 - Estímulos madrugadores

Foto: Wikipedia
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Estímulos madrugadores

Por Paulo Heuser


É Claro que levei um susto. Quem não levaria? Talvez um notívago, um obstetra ou um porteiro de obscuro e nada Claro lupanar? Recebi o torpedo às 04h15. Ouvi o toque ao longe pois dormia profundamente, mas ficou bem Claro que se tratava de aviso sonoro da recepção de torpedo. Sobressaltei-me, é Claro. Tentei voltar a dormir, mas não consegui, pois o misterioso torpedo madrugador não saía da minha cabeça. O telefone móvel encontrava-se ao alcance da mão, mas eu relutei em pegá-lo, pois temi perder o sono que eu já havia perdido. Após alguns minutos de luta contra a insônia, ficou Claro que, se não olhasse a mensagem, passaria o resto da madrugada em Claro. Poderia ser apenas uma bobagem, mas e se não fosse? Poderia ser o golpe do sorteio do Gugu, ou o do falso seqüestro, ou pior, o do falso seqüestro do Gugu.

Com o pensamento mais Claro, abri o flip e constatei que efetivamente eu havia recebido um torpedo madrugador. Tateei pelos óculos e pus-me a ler. Descobri o seguinte texto, enviado pelo telefone 4001: “Loucura!! 36HP O melhor estimulante sexual so R$ 49,50 Ligue (51)2112-2525 e receba onde indicar!!!!!!...”. Às quatro e quinze da matina!

A princípio, fiquei sem reação. Fiquei sentado, no escuro, estudando algumas alternativas. Claro, o primeiro impulso poderia ser o de jogar o telefone pela janela. Porém, ela estava fechada, e o impulso causaria duplo prejuízo. Eliminei também a vontade de jogá-lo no vaso sanitário e acionar a descarga. Claro que também não seria uma opção racional, pois os desentupidores cobram por centímetro, ou fração. Após mais alguns instantes, eu já via tudo mais Claro. Eu não entendia por que enviaram aquele torpedo àquela hora. Afinal, poucos clientes da operadora gostam de ser acordados às 4h15 com um torpedo vendendo 36HP. Fiquei a imaginar a cara da Dona Basiléia, no alto dos seus 92 anos, recebendo aquele torpedo madrugador e tentando decifrar o que é um 36HP. Depois, durante o dia, descobri que muitos outros foram brindados com a missiva sexual. Claro, ninguém gostou.

Aprendi algumas coisas com esse evento. Não há mais hora para fazerem propaganda. Tampouco querem saber se há uma criança no outro lado. O importante é chegar ao potencial cliente, seja como for, seja quando for. Não adianta trocar de número do celular, pois essas mensagens são enviadas em massa. Só um aspecto ainda me intriga no ocorrido. Por que mandaram a mensagem às 4h15? Se a coisa não rolou até aquela hora, não há 36HP, por melhor que seja, que possa resolver o problema.

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3.2.09

499,999 e 8/9 - Na defesa do ambiente



Foto: Cristina Heuser
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Na defesa do ambiente

Por Paulo Heuser


Se os mais experientes contam com a experiência de vida, como o próprio adjetivo indica, os mais novos têm mais energia, sede de saber e uma memória fresca que tudo armazena. Os jovens sabem de cor e salteado os algoritmos e ábacos que os mais velhos sabem onde e como aplicar. Uns têm a ferramenta, outros sabem utilizá-la. Feliz da corporação que sabe combinar experiência e arrojo, através de um quadro de pessoal que combina essas virtudes.

Lizandro sempre soube o que queria ser quando crescesse. À pergunta, sempre tinha a resposta na ponta da língua: megaempresário. Para tanto, preparou-se muito e estudou tudo que havia a respeito de Economia. Seu histórico escolar faz qualquer professor chorar de emoção. É uma monótona série de As. Lizandro saiu da universidade diretamente para o estágio naquela imensa rede de hipermercados. Ele foi descoberto pelo caçador de cabeças da grande corporação. Após rápida entrevista, deram-lhe uma posição no departamento responsável pela prospecção de novos mercados.

Canabarro tocava aquele setor com um equilibrado jogo entre a cautela e o arrojo. Ele logo percebeu o potencial do jovem imaculado Lizandro. O rapaz nadava no fervilhante caldeirão do entusiasmo de iniciante. Canabarro deu-lhe asas para ver até onde o estagiário iria. Estudou com cuidado a idéia de abrirem pet shops, nas lojas da cadeia, para o banho e a tosa das mascotes dos clientes em compras. Quanto mais tempo os clientes ficassem na loja, maiores seriam as vendas. Alexsandro, o outro estagiário, complementou a idéia. Ele sugeriu que combinassem pet shops com salões de beleza, divididos apenas por uma parede. Compartilhariam a mesma mão-de-obra, pois a atividade seria essencialmente a mesma. Corte e tosa não diferem muito.

Em outro projeto, Lizandro ousou demais. Ele imaginou um carrinho de supermercado com funções de cadeira de dentista. Os clientes fariam revisões dentárias e branqueamento dos dentes enquanto percorreriam os corredores das lojas. O dentista tripularia uma espécie de sidecar invertido, acoplado à lateral do carrinho de compras. Essa idéia foi um pouco além daquilo que Canabarro considerava exeqüível. Além de duvidar de que alguém andaria pelo hipermercado, de boca aberta e com um dentista dependurado ao lado, enquanto escolheria nabos e rabanetes, ele considerou o investimento nos tais dos carrinhos demasiadamente alto. Havia também problemas técnicos, como a assepsia, e outros, de logística. Para isso que Canabarro estava lá. Dependurava lastro nas idéias demasiadamente arrojadas dos estagiários intrépidos.

Uma idéia do Lizandro deixou Canabarro especialmente intrigado. O rapaz sugeria a venda de sacolas ecológicas não-descartáveis, que os clientes trariam a cada visita à loja, em substituição aos sacos plásticos descartáveis e poluentes, como se faz na Europa. Canabarro até entendeu a motivação ecológica, típica dos jovens, mas havia de pensar nos aspectos econômicos. Após uma venda inicial, poucos clientes comprariam novas sacolas ecológicas. Seria um negócio de curtíssimo prazo.

O que Canabarro ignorava, apesar de toda sua experiência, era que nenhum dos clientes se lembraria de retornar as sacolas às lojas, nas próximas compras. As sacolas ficariam esquecidas, em casa, e eles comprariam outras. O próximo passo seria a ecologicamente correta eliminação das sacolas descartáveis. Tudo em nome da natureza.

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