9.2.09

500 - O karaokê e o tanquinho


Foto: Wikipedia
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O karaokê e o tanquinho

Por Paulo Heuser


O Zé andava atrás de uma dessas TVs modernas, de LCD. Ele ainda assistia ao jornal da manhã numa daquelas caixas enormes movidas a raios catódicos. O interessante da tecnologia era isso, todo mundo assistia à TV, mas muito poucos conseguiam entender como ela funcionava. Filosofia tecnológica à parte, Zé folheava o jornal, quando viu o anúncio da bombástica oferta de televisores LCD. A monstruosa megaloja da hiper-rede, inaugurada defronte à hiperloja da ultraconcorrente, colocou TVs de LCD em oferta por quase a metade do preço de mercado. A concorrente ultrajada foi além e baixou ainda mais o preço.

O café do Zé ficaria pela metade, se ele tomasse café. Ele tomou banho com uma mão, escovou os dentes com a outra e fez a barba com a restante. Em menos de dez minutos, já afivelava o cinto de segurança e partia na direção dos supremos templos do consumo popular. As lojas abririam excepcionalmente às sete horas. Como essas ofertas não duravam muito, era bom se apressar. Entrar no estacionamento da primeira loja não foi problema maior. O Sol nascia, e o Zé conseguiu chegar rapidamente até o setor de eletrônicos para descobrir que o amplo estoque de 20 aparelhos havia se ido antes do Sol nascer. Porém, caso quisesse, ele poderia levar um karaokê que só aceitava gospel sertanejo. Zé não se deixou levar pela emoção de levar o primeiro produto que ele não viera comprar. Afinal, sempre havia o concorrente do outro lado da rua.

Sair do estacionamento da hiperloja não foi tão fácil como foi entrar. Um tsunami automobilístico impedia o Zé de avançar para a saída. Autômatos funcionários entregavam tíquetes aos entrantes, que se espalhavam como baratas em disparada, ao acender da luz, e bloqueavam qualquer rota de fuga. Será que haveria karaokês para todos? Antes de descobrir a resposta, Zé saiu arrojadamente, pela entrada, e pegou todos de surpresa. Ele se viu em meio à rua lateral, de onde saíam imensos caminhões pertencentes a uma empresa de logística.

O empreendedorismo não perdeu tempo. Aquela esquina transformou-se repentinamente num fantástico mercado em potencial com milhares de clientes literalmente cativos. Do nada, surgiram vendedores de tudo aquilo que pode ser vendido, bem como daquilo que não pode ser vendido. Sucos, cervejas, pastéis, pamonhas, trancas para volante, guarda-sóis e outras tralhas passaram a ser oferecidas em meio ao caos da imobilidade. Alguns compravam ouro, outros cortavam cabelo e ofereciam serviços ligados à área do entretenimento alternativo noturno. Lá mesmo, atrás de um biombo improvisado. Malabaristas jogavam abóboras para o alto. Lá pelas 14 horas, a 20 metros da esquina, surgiu um vendedor de TVs LCD que ofertava o produto da oferta pelo dobro do preço, ou seja, pelo preço normal de mercado. No carro ao lado, uma mulher de meia-idade comprou duas. Feliz da vida, gritava que lograra êxito. Comprara duas TVs da oferta, pelo preço de quatro. O importante era comprar, seja o que fosse, seja por quanto fosse.

Passava das 15 horas, e o Zé já se sentia profundamente idiota. Também sentia sede Pagou sete reais pelo copo de mineral que já veio aberto. Quando se queixou do gosto, o vendedor lhe afirmou que o carro nunca se queixara do conteúdo do radiador. O arrependido Zé tentou voltar ao Centro, mas não conseguiu. A massa automobilística o empurrou para o interior da megaloja, do outro lado da rua. Não havia como fugir. Ele se deixou levar pelo tsunami do trânsito e se viu espremido, no meio do estacionamento. Zé temeu deixar o carro quando viu uma velhinha soltando gás de pimenta num homem vestindo terno que tentava tomar a plasma de 42” que ela levava no carrinho. A velhinha gritava e batia no engravatado com o cabo de uma vassoura. Logo adiante, duas donas de casa engalfinhavam-se em violenta batalha, pelo tanquinho em oferta. Não, não era pela barriga de tanquinho do rapaz da propaganda. Era pelo tanquinho de lavar roupa.

Passava das 22 horas, quando o Zé deixou o estacionamento da hiperloja. Ou seria da superloja? Da megaloja? Saiu como entrou. Levado pela multidão. Ele chegou em casa, sentou-se no sofá e conseguiu apenas balbuciar: - Eu sou um idiota! Ninguém conseguiu tirar o Karaokê gospel sertanejo das suas mãos. Muito menos o tanquinho.

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