28.1.09

499,999 e 6/7 - Aventura em dois tempos


Foto: Wikipedia
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Aventura em dois tempos

Por Paulo Heuser


Lá por 1967, um grupo de escoteiros de Santa Cruz do Sul, enfadado com as intermináveis férias de verão, resolveu fazer um acampamento diferente. No lugar dos tradicionais sítios de acampamento, como a Fazenda Hildebrand e a chácara Melchiors, no interior daquele município, escolheram como destino uma praia na confluência dos Rios Jacuí e Pardo, no município de mesmo nome.

Em janeiro de 2009, mais de seis mil fanáticos por tecnologia, computadores e jogos eletrônicos acamparam no Centro Imigrantes, uma área coberta de 38 mil metros quadrados em São Paulo. O Campus Party 2009 repetiu um evento que se originou na Espanha, em 1997, e se realizou pela segunda vez no Brasil.

Os oito meninos resolveram seguir até Rio Pardo a pé, como legítimos escoteiros faziam, através da antiga estrada poeirenta e esburacada de 45 km. Para levar todas as tralhas necessárias, utilizaram dois carrinhos de duas rodas, como aqueles dos catadores de lixo, um com rodas raiadas de bicicleta, outro com rodas e eixo de madeira. Levaram duas barracas, panelas, lampiões e provisões básicas.

Os campistas do Campus Party 2009 montaram suas barracas no interior de pavilhões, levando notebooks e uma parafernália eletrônica nas mochilas. Não precisaram carregar panelas nem provisões, pois lá havia uma boa praça de alimentação. Foram de carro, de metrô ou de van.

Os meninos deixaram Santa Cruz às cinco horas, pouco antes de clarear o dia, com planos de chegar a Rio Pardo ao cair da noite de verão. Antes de deixarem a cidade, o eixo da carreta com rodas de madeira já mugia alto, chamando a atenção de todos, por onde passavam. A longa subida dos Tatsch não diminuiu os ânimos, mas serviu como prenúncio do que estava por vir.
No Centro Imigrantes, a aventura se iniciou no dia 19 de janeiro de 2009. Os campistas contaram com alimentação durante o evento, ao custo de 150 reais.

A carreta de madeira começou a ranger demasiadamente, à medida que os meninos tomaram a estrada velha através do Bairro Dona Carlota. As rodas de pequeno diâmetro se mostraram inapropriadas para aquela estrada. Em algum ponto do caminho, os meninos se depararam com a obra da nova estrada, que encurtaria o percurso em mais de dez quilômetros. A tentação de tomá-la foi demais. Seguiram pela nivelada estrada nova de barro vermelho. Não perceberam, de imediato, que não havia viva alma nas margens da nova estrada, pois ela cruzava apenas fazendas de criação de gado.

No Campus Party tudo era emoção. As conexões de rede permitam a comunicação, em assombrosa velocidade, com as pessoas sentadas na barraca ao lado. A sensação de compartilhamento de experiências, em rede, causou êxtase geral. Muitos campistas conheceram outras pessoas, ao vivo, pela primeira vez na vida.

O sol castigava impiedosamente os meninos. Não havia filtro solar. A única proteção era o chapéu escoteiro de abas largas, em estilo canadense. Exaustos, pararam para o almoço. A manteiga e o queijo dos sanduíches haviam derretido. Contudo, a fome era maior. Maior mesmo, era a sede. Os cantis começaram a ficar ameaçadoramente leves, e não havia onde enchê-los. O ranger do eixo acordou o gado, num raio de quilômetros. Nada havia nada, além de gado e terra vermelha, que logo se transformou em barro vermelho. Após um pavoroso estertor, o eixo da carreta de madeira se quebrou. Não lhes restou alternativa senão empilhar as duas carretas, apesar do temor de que os raios das rodas não suportassem o peso adicional. As rodas de bicicleta atolavam no barro vermelho, e cada quilômetro cobrava um alto preço.

As palestras temáticas dominaram as tardes, no Centro Imigrantes, e as baladas se estendem noites adentro. Não havia tempo, nem ambiente, para dormirem. Personalidades desfilavam entre os palcos de eventos.

Quando a noite surgiu, os meninos se viram cercados pela completa escuridão. Afora algum vaga-lume, tudo era breu. Resolveram passar a noite, lá mesmo, à beira da estrada deserta. Jantaram o resto do pão, à luz de lampiões. Ninguém conseguiu dormir. Após duas horas de tentativas, desistiram e seguiram viagem no escuro. O cansaço e a sede não foram páreo para a angústia de passarem a noite em meio ao nada silencioso e desconhecido. Hoje, é difícil descrever aquelas horas de lento e penoso avanço na presumida direção de Rio Pardo. O silêncio desconcertava tanto quanto a escuridão.

O dia virou noite, e vice-versa, no Centro Imigrantes. Havia demais para ser feito em tão pouco tempo. A sucessão de shows e palestras dividia as atenções dos campistas modernos. Networking era a tônica.

O nascer do sol do dia seguinte foi recebido com misto de alegria e receio. Alegria porque os meninos voltaram a encontrar o caminho com mais facilidade. Receio porque a sede e as queimaduras de sol aumentariam. Um córrego surgiu, em meio do absoluto nada. Os meninos mergulharam naquela água e encheram seus cantis. Aquilo lhes deu renovado ânimo. Nem o touro enfurecido conseguiu demovê-los de seguirem adiante. Alguém havia levado uma garrucha artesanal, que, em meio à fumaceira, fez o taurino parar.

Em São Paulo, Jon “Cachorro Louco” Hall, fundador do Open Source International, andava entre os campistas, tirando fotos e dando entrevistas.

Em Ramiz Galvão, entrada norte de Rio Pardo, o grupo trôpego de escoteiros extenuados empurrava sua carreta restante morro acima. Faltava pouco, apenas alguns quilômetros, para o destino. Alguns curiosos assistiram à passagem daqueles meninos fardados de cáqui. Os pés mostravam o barro vermelho. O que mais chamava a atenção, certamente, era a pilha de carrinhos, escorada pelos dois lados.

Os campistas de São Paulo exibiam seus notebooks com placas aceleradoras de tudo, até do pensamento. O calor emanado pelos circuitos era o limite. A praça de alimentação satisfez as necessidades alimentícias dos campistas.

Os meninos chegaram, finalmente, à Praia dos Ingazeiros, de onde partiram, a bordo de canoas, para a ilha do outro lado do Rio Pardo. Exaustão era eufemismo para o sentimento generalizado. Passava das quatro da tarde, quando alguém pensou em preparar um substancioso arroz de carreteiro de lingüiça defumada. Pensou, pois o saco do café se rebentou na viagem, misturando-se com o saco de papel do arroz. De nada adiantou lavá-lo no rio. Foi um carreteiro de café. Após mais de 30 horas de caminhada.

O Campus Party se encerrou no dia 25 de janeiro de 2009. Quem dele participou, certamente terá o que contar para os seus netos. Foi muita aventura e emoção. Nada como acampar!

Aqueles meninos, Paulo, Pedro, Ernesto, Vilmar, Mocki, Mário, Abdul e Sergio dormiram o sono dos guerreiros, após a batalha. Não voltaram a pé. Um caminhão do Exército os retornou à Santa Cruz. Possivelmente, só eles mesmo entenderão tal odisséia. Nada parecido com aquela do Campus Party 2009.

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