26.2.09

504 - És pó e ao pó hás de voltar


Foto: Paulo Heuser
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És pó e ao pó hás de voltar

Por Paulo Heuser


Além de ter sido o maior velório de todos os tempos, foi disparado o mais pomposo. Não houve gente em manga de camisa nem jovens calçando tênis. Só gente graúda vestindo terno ou vestido preto. O féretro foi seguido por uma interminável sucessão de limusines reluzentes. A família concordou em colocar as cinzas do finado no único jazigo do cemitério, construído especialmente para ele.

O que mais chamou a atenção naquele velório foi a consternação autêntica. Não houve fingimento. Quem lá estava, pranteava de verdade. Uns consolavam os outros, apesar de saberem que aquela perda seria realmente irreparável. Nunca antes neste País, nem fora dele, havia partido alguém tão importante. Nem reis, nem papas, ninguém faria tanta falta como ele. De lá sairia uma legião de milhões de órfãos.

Era evidente que ele partiria desta para a melhor, mas ninguém viu, ou melhor, não quis ver. Era apenas uma questão de tempo, mas ninguém viu, ou melhor, não quis ver. Na verdade, todos sabiam que terminaria nisso e sempre deixaram que os outros pensassem numa solução. Sempre havia como culpar os governos, pois estes seguiram a morfogenia de uma ameba e não detinham o poder de frear os conluios pandêmicos que levaram a essa situação.

Os primeiros sintomas passaram despercebidos. Tiraram-lhe o emprego e lhe disseram que poderia se dedicar às atividades mais nobres. Porém, estas tinham dono, que não queria largá-las. Essas atividades mais nobres deixaram de ser tão nobres como outras ainda mais nobres e foram delegadas às máquinas. Assim, os executores das atividades ainda mais nobres foram liberados para executarem atividades muitíssimo mais nobres. Ele, que lá jazia, só tinha uma pergunta, que morreu engasgada com seu último estertor. As atividades muitíssimo mais nobres deram lugar às atividades espantosamente mais nobres. A pirâmide das ocupações foi perdendo sua base, e ele galgou posições à medida que pode. Quando ele chegou próximo do topo, começaram a notá-lo, finalmente. Contudo, era tarde demais para ele, e, por que não dizer, para todos que lá estavam. Quando o futuro chegou, não perdoou.

A resposta à pergunta que morreu com ele veio implícita no seu próprio ato de morte. Terminados todos os empregos, quem consumiria? A multidão de fornecedores pranteava a morte do último consumidor. Ele era pó e ao pó voltou.

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