24.2.09

503 - A revolta dos pastéis

Foto: Paulo Heuser
.

A revolta dos pastéis

Por Paulo Heuser


Era domingo de Carnaval, e João - vamos chamá-lo assim, pois efetivamente é o seu nome - temperava uma ovelha para o churrasco da noite, na sua casa de praia. João contou este causo enquanto saboreávamos a tal da ovelha. Naquela tarde, ele estava com as mãos cheias de tempero quando ouviu o bater de palmas ao portão. Meio a contragosto, foi verificar do que se tratava, pois, naquele momento, encontrava-se sozinho em casa. Verificou tratar-se de uma moça morena, de aparência pobre. Então, travou-se o seguinte diálogo:

- O que deseja?

- O senhor me desculpe, mas haveria qualquer resto de comida? Estou com muita fome.

Ela disse isso em tom estranhamente normal, sem lamúria nem súplica. Apenas disse. João já estava impaciente, pois já haviam tentado lhe vender canetas, em nome da paróquia, e outras coisinhas que, quem está de férias, não quer. Ele apenas disse:

- Lamento, mas estou ocupado, e minha mulher não está em casa.

- Senhor, eu sei que estou lhe incomodando, mas realmente estou com fome.

Naquele momento, a ficha caiu. João percebeu que, por trás de uma aparente calma, aquela moça sentia algo que ninguém deveria sentir, pelo menos involuntariamente. Muitos passavam fome voluntariamente, naquela praia, para se manterem dentro dos padrões estéticos vigentes. Não aquela moça. Ela estava se lixando para as aparências e queria apenas comer. Queria deixar de sentir aquele vazio dolorido. Tocado no íntimo, João lavou as mãos e encontrou alguns pastéis comprados naquele dia, mas não consumidos. Alcançou-os à moça, que disse no mesmo tom de intrigante calma:

- O senhor não tem idéia do bem que me fez.

Agradecida, a moça seguiu seu caminho, enquanto comia os pastéis salvadores. Aquele evento abalou as estruturas do João. Tanto que ele fez algumas pausas, enquanto relatava o ocorrido. Todos ouviram em silêncio e deixaram a ovelha de lado, por um instante.

Na segunda-feira, eu lutava contra Umberto Eco. Lutava, porque não conseguia avançar três linhas na mesma página. Algo me perturbava. Era o relato do João. Havia algo extremamente perturbador naquilo. Olhando a chuva, percebi o que era. Ninguém mais encara o pedinte como alguém que passa fome. Associamos o pedinte com o achaque que sofremos no dia a dia, que parte daqueles que nos abordam, às dezenas, seja nos sinais, seja na exclusão do assistencialismo eleitoral oficial. O incluído social passou a ser aquele que consome eletrodomésticos em 24 vezes para pagar - a primeira só depois das eleições. Contudo, há os que passam fome. Fome. Eles não têm o que comer e recusam-se a chafurdar no lixo. Passam pela fome digna, apesar de nada haver de digno na fome. Não querem celular pré-pago nem TV de plasma. Querem comida.

A moça ganhou seus pastéis, que devem tê-la mantido até o outro dia. João ganhou seu dia. Mais, provavelmente, ganhou gratidão. A ovelha se foi, devorada pelos convivas. Umberto Eco me desafia a seguir na nem sempre fácil leitura dos seus escritos. E eu? Bem, fiquei a olhar para a chuva, que caía persistente, a imaginar que a falta de um pastel poderá iniciar uma revolução.

Marcadores: , , , , , , , ,