27.9.09

550 - São João da Boa Vista


São João da Boa Vista

Paulo Heuser

Copiaram um dos meus textos. Coisa antiga, do tempo em que a Influenza A(H1N1) ainda era conhecida por Gripe Suína. Eu contei como meu amigo Zé prosperou ao enxergar uma grande oportunidade de vender caldo de rollmops. Então, um tal de Ipefae – Instituto de Pesquisas Econômicas, aparentemente ligado ao Centro Universitário de São João da Boa vista, SP, usou meu texto, altamente científico, para elaborar a prova de conhecimentos gerais de um concurso público da prefeitura daquela cidade. Rollmops para o mundo! Posso até imaginar aqueles candidatos, apreensivos, fazendo exatamente o que lhes pediram, ler atentamente o texto:

da autoria de moi, en personne. Deram-me os créditos, pelo menos. Gotas de suor pingavam da testa do Alfredo, candidato hipotético, que não conseguia entender por que alguém escrevera tal sucessão de besteiras. E, o que era muito pior, por que alguém incluíra aquele besteirol numa prova de concurso público. Isso tudo vem apenas a provar que, além de escritores fora da casinha, há elaboradores de provas fora da casinha.

A coisa toda me deixou meio chateado, afinal, sequer me avisaram de que usariam minha obra prima para tão nobre fim. Poxa, eu teria ido até lá e autografaria as provas. Ao Alfredo, com os melhores desejos de sucesso, assinado, moi. Seria minha primeira sessão de autógrafos. Eu poderia, até, proferir palestra sobre o assunto, algo como Rollmops e seu uso nos tempos de paz. Outro fato me incomoda, mas, ao mesmo tempo, me alegra. Não me pagaram, apesar de eu atribuir a esses textos licença para cópia apenas para fins não-comerciais. E o tal de Ipefae cobrou 30 reais de cada candidato. Porém, como até os rollmops têm um lado bom, ainda não descoberto, devo intuir que alguém pagou para ler o que eu escrevi.

Compulsoriamente, mas pagou. Céus, é verdade, todos aqueles candidatos pagaram para ler meu texto! Pagaram ao Ipefae, mas, pagaram. Tornei-me um escritor pago! Quando me perguntarem novamente da possibilidade de se ganhar dinheiro, escrevendo, responderei, com convicção:

- Alguém ganha.



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25.9.09

549 - A eloqüente

Foto: Wikipedia

A eloqüente

Paulo Heuser

Elvira nasceu falando. Ninguém se lembra da primeira palavra dela, lembram-se apenas do primeiro discurso. Ela não fala, apenas. Emenda palavras, horas a fio, como fazia Fidel Castro antes de vestir Adidas. Compará-la a Fidel, é subestimá-la, pois, além de eloqüente, é rápida. Emenda também as sílabas, não deixando espaço nem para respirar. Fala inspirando, fala expirando e fala em apnéia. Elvira é uma máquina de falar que preenche todo o ambiente com palavras. Ouvi-la, é um suplício. A avalanche verborréica, em continuum, não dá tréguas. Ela tem uma habilidade nunca vista para preencher qualquer hiato interssilábico.

A fama da eloqüência da Elvira cruzou fronteiras. Noutro dia, um concerto da orquestra sinfônica atrasou. O maestro burquinense Gummi von Plungerkolben recusou-se a subir ao palco, quando descobriu que ela estava na platéia. Na verdade, Elvira não fala durante os concertos, porém, fala todo o resto do tempo, inclusive durante a afinação dos instrumentos. Ela apresenta uma funcionalidade que foi incorporada aos equipamentos de rádio, chamada AGC, ou controle automático de ganho. Quando o ruído aumenta, ela aumenta o volume de voz, quando ele baixa, ela também fala, ou melhor, grita mais baixo. O sujeito do primeiro naipe dos violinos dá o tom, para a afinação, e ninguém ouve. Só ouvem a voz da Elvira, que se mantém, prudentemente, no limite suportado pelo ser humano. Ela não pode mais ingressar na União Européia. Os países membros do Espaço Schengen limitaram os níveis aceitáveis de ruído. O limite passou a ser o Pré-Elvira, algo entre o ruído de uma decolagem de jato e a poluição de carro de som de candidato eleitoral.

Armando era o contraponto da Elvira. Era uma tumba ambulante. Dele, nada saía. Falava tanto quanto o mudo afônico que fez voto do silêncio. Estranhos são os desígnios de Afrodite. A eloqüente Elvira casou-se com o mudo Armando. Haveria compensação, pois o silêncio dele absorveria a torrente de palavras dela. Assim andaram, nos últimos 40 anos. Ela falava o tempo todo, ele apenas assentia com um gesto quase imperceptível. Tudo ia bem, até a quarta passada. Saíram para jantar e comemorar quatro décadas de monólogos. Elvira pediu ao garçom um filedepeixepodesercôngriooulinguadoetcetc... O pobre homem tentava anotar o pedido, sem conseguir separar o que interessava do que realmente não interessava, ou seja, praticamente tudo. Ela seguia falando, para espanto dos demais convivas, enquanto os cães uivavam e a caravana fugia, seja lá o que isto quer dizer. Então, aconteceu.

No início, sentiram apenas um leve tremor, que foi crescendo, crescendo, até aflorar um terrível rugido da boca do Armando.

- Cala a boca, Elvira!

O tempo parou. O garçom estacou, com cara de mulher de Ló, os cães ladraram e a caravana passou. Fez-se o mais profundo silêncio. Não se ouvia mais nem a respiração da Elvira, principalmente porque ela parou de respirar. Entrou em síncope. Armando viraria herói, se houvesse seguido seu instinto. Contudo, rendeu-se à paixão antiga e tratou de ressuscitá-la. Tomou o corpo sem vida nos braços e gritou, com todas as forças:

- Fala alguma coisa, Elvira!

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20.9.09

548 - O gaúcho que ficou na parada

Fonte: Wikipedia

O gaúcho que ficou na parada

Paulo Heuser

É 20 de setembro. Em algum lugar do Acampamento Farroupilha, uma panela o espera. Já são quase oito horas, e o estômago do Rodrigues não se aquieta. Sonhou com o cabo-de-relho servido com café forte. E o desgranido do ônibus não vem. Ao lado, na parada, quatro jovens em roupas de hip hop comem biscoitos recheados e batatas fritas de pacote. Deus, pensa Rodrigues, isso não é comida, nem aquilo é roupa que se use no 20 de Setembro. Um fotógrafo passa pelo outro lado da 24 de Outubro. Lá, se cruzam efemérides de outras eras. A tomada de Porto Alegre, do 20 de Setembro, se enrosca com o 24 de outubro da República Nova do golpe de Vargas. Rodrigues está esquecido na parada, ironicamente, quase na esquina da Lucas de Oliveira. Ah, se ele visse aquela cena. Na verdade, viu. Rodrigues desceu a Lucas, saído do prédio onde é porteiro da noite. Os filhos do Doutor Braga fizeram farra. Os pirralhos nunca acordam tão cedo. Logo hoje, acordaram. Chamaram-no de vira-bosta, e ele nada pode fazer, pois são os guris do síndico. Como é que um guri da cidade conhece o vira-bosta? Mundo estranho, onde não se pode sair pilchado, nem no 20 de Setembro. E o desgranido do ônibus não vem.

O fotógrafo chega a armar a câmera, mas desiste. Olha a cena através do visor e perde a coragem. Fotografia exige respeito. Apiedou-se do Rodrigues, esquecido na parada, com os hip hops. O gaudério, impaciente, ensaia chula sobre lança imaginária. Os vizinhos desatam a rir. Desgramados, eram daqueles que achavam que taura era a fêmea do touro. Uma das meninas quer saber se há McDonald’s no tal do acampamento. E a música, será do MC Babão? O Minuano, mesmo amortecido pela cidade de pedra, brinca com o lenço maragato. A jovem que passa distrai momentaneamente o Rodrigues. Tudo bem que não está de chita, pois virtudes não lhe faltam. Veste top, pouco bottom e nenhum middle. Do Inglês, Rodrigues nada entende, mas mulher meio pelada é igual em qualquer língua. Ela deve estar fazendo propagando para o Galo Missioneiro, lá de Bossoroca, pois usa boné, tênis e roupas com um bigode costurado. E o desgranido do ônibus não vem.

Os hip hops ligam um som do tamanho de um baú. Dançam como índios. Se chegarem assim ao acampamento, vão botá-los para correr, no mínimo. O gaudério já teme pela paleta que mandou reservar. Se ele chegar tarde, alguém poderá ter-lhe dado de mão. Passa mais gente de tops e bottoms. Vão ao parque errado, ao Parcão. Zumbís que ficam a dar voltas e voltas em torno de si. Caminham hora e chegam ao lugar de onde saíram. Muitos também usam o bigode do Galo costurado na roupa. O Sol se levanta sobre os prédios e ameaça aquecer a camisa branca impecável. O Minuano não deixa. O desfile já começou, e o Rodrigues ali, parte de um quadro improvável. É um descalabro, como é que um gaúcho, sem cavalo nem cusco, esquecido na parada de ônibus, com um bando de hip hops, pode manter alguma dignidade? Ele já duvida que Gomes Jardim e Onofre Pires cruzaram para o lado de cá da Ponte da Azenha. Graças a Deus, o acampamento fica do lado de lá.

E o desgranido do ônibus não vem.

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17.9.09

547 - Dez metros de intestino

Hipócrates
Fonte: Wikipedia

Dez metros de intestino

Paulo Heuser


Os doentes precisam de carinho. Uma forma de dar-lhes carinho, é ouvi-los. Eles necessitam externar seu sofrimento para as pessoas dos seus laços afetivos, sejam da família, sejam do círculo de amigos. Sentem-se confortados, e a cura pode até se tornar mais rápida. Até agora, tudo bem, ninguém pode reclamar deste texto. É humano e decente, sem ironia. O que é curioso, nessa atitude de divulgar as perebas, é a purgação pública, quando o doente as externa para estranhos. Ela ocorre notadamente nas salas de espera dos hospitais e consultórios. Dona Heresilda mostra o quisto de doze centímetros, que ela carrega no pescoço, para o Seu Hilário, que, orgulhoso, contra-ataca com a pavorosa hérnia abdominal. A quistosa senhora ainda tenta retrucar e alega que a hérnia do falecido era muito maior, mas não há como contrapor provas vivas com evidências mortas. Quando chamado, Seu Hilário levanta-se, triunfante, segurando as tripas com a sebenta revista Caras da sala de espera. Dona Heresilda perdeu a batalha, mas não perdeu a guerra. Vê uma mulher que entra, gemendo baixinho, e dá o bote. – É pedra no rim? Minha vizinha me deu uma santa receita, vinagre, água benta, creme de barbear e fanta uva. Não falha! A senhora já viu o meu quisto? A recém-chegada apenas geme.
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Da purgação de velório, melhor não falar. Há outra, que virou moda. É a purgação preventiva. Os noticiários da manhã, na TV, dividem-se entre futebol e essa nova modalidade de catarse catódica. Falam sobre doenças, um bloco inteiro. Depois da receita de pamonha preferida do Tandertáison, atacante de um time de futebol de mesa da terceira divisão, um renomado profissional da saúde discorre sobre a Síndrome Oculta de Erdbeere-Korkenzieher, cujo primeiro e único caso foi relatado na Namíbia. Se não tratada na fase primária, essa rara moléstia evolui rapidamente para a temida Churryum vulgaris, conhecida popularmente por caganeira.

Essas coisas não costumavam me incomodar, pois deixei de assistir ao noticiário matinal da TV. Nem gosto de pamonha. Mudei de canal, para um onde o pregador promove curas pela fé. Troquei caganeira por churrio. Finalmente, desisti da TV aberta e apelei para a paga. Assisto ao House. Lá, pelo menos, as perebas são menos óbvias.

Essa tal de purgação me incomoda durante o almoço. Estou no restaurante de um clube, no Centro, muito freqüentado pelos que compunham a petizada, na década de 30, do século anterior. Há três senhores, na mesa ao lado. Discutem o progresso dos procedimentos cirúrgicos, algo como “quando eu operei a MINHA apendicite...”. Pronto. Estabelece-se novamente a contenda da purgação. A MINHA vesícula estava MUITO mais inflamada do que a sua, etc. O que aparenta mais idade, pelas maiores manchas senis, mostra toda a experiência nessas coisas. – Olha, gente. Quando operei a bexiga e a próstata, não me deixei abater. Mas, quando me tiraram dez metros de intestino, fiquei arrasado. Pudera, penso. Se me lembro de algo das aulas de Biologia do Prof. Hoppen, o intestino todo não tem isso.

No bufê, há mocotó, com tripa grossa.


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15.9.09

546 - Aforismo do fim do mundo

João na ilha de Patmos
Fonte: Wikipedia

Aforismo do fim do mundo

Paulo Heuser


O fim do mundo não é assunto novo. Temos o Apocalipse cristão, o Acharit Hayamim (Fim dos Dias), do judaísmo, a Kali Yuga (Era do Ferro), do hinduísmo, o Dia do Juizo, do islamismo, e a chegada ao Nirvana, do budismo, entre tantas outras versões do fim de tudo. Há boas e más notícias. Uma boa, por exemplo, é a data do fim do mundo hinduísta, que só ocorrerá em 427 mil anos. Uma má, por outro lado, é que o mundo já acabou, para diversas religiões. Fomos exterminados, sem saber disso. Bem, olhando ao redor, podemos concluir que esses últimos estão mais certos. O fim do mundo varia, de religião para religião, mas muitas pregam a existência de lugares para onde irão as boas almas e de lugares para onde irão as almas ruins. Paraíso e inferno. Houve o Purgatório, local para onde seriam enviados os excluídos de classificação. Então, após muitos protestos, fecharam o lugar.

Seja como for, em todas as religiões, há crença em algo após o fim do mundo. Os maus pagarão, eternamente, pelos seus erros e os bons ficarão, eternamente, em algum paraíso. Não se sabe se haverá progressão de pena para o semi-aberto. Em algum momento, durante a eternidade, as almas se perguntarão sobre o que farão após essa eternidade. É difícil pensar na eternidade. É algo, digamos assim, perene demais, como tirar férias intermináveis na praia. Levantar-se tarde pela manhã, tomar café, ir à praia, voltar para o almoço, almoçar, sestear, comprar bugigangas, fazer happy hour, tirar bicho-de-pé, jantar, jogar e dormir. Para sempre. Sem depois. Em um paraíso não haverá o que fazer, além de esperar pelo fim da eternidade. Uma espera semelhante àquela enfrentada pelos usuários dos serviços públicos de saúde.

Há até uma ciência que estuda o fim do mundo, a Escatologia. Não é exatamente uma ciência exata, mas, enfim, é uma ciência. A noção de fim está intestinada em nós. A morte é um fim, tratado como passagem. Ou seja, há um fim, mas também há algo após o fim, nem que seja a continuidade de outros. Se não fosse assim, os suicidas não escreveriam bilhetes de suicídio. Justificam-se perante os que ficam, temendo, talvez, um encontro posterior, do outro lado do fim. A noção de um fim final, definitivo, irrevogável, total e irrestrito, é tão insuportável quanto a noção de eternidade. Tem de haver continuidade, nem que seja das baratas e das amebas. A saúde mental da maioria de nós depende disso. Entretanto, alguns pensam diferente.

O aforista polonês Satanislaw Jerzy Lec (1909-1966) explorou o assunto, ao dizer que os otimistas e os pessimistas diferem apenas sobre a data do fim do mundo. Há, porém, outro aforismo dele, sobre o tema, que provoca indagações:
Não espereis demais do fim do mundo.

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14.9.09

545 - 51 semanas de amor

Adônis
Fonte: Wikipedia
51 semanas de amor

Paulo Heuser

Denise é uma mulher bem sucedida. Sempre apostou na carreira, fez MBA e obteve certificações, como BES®, TAM®, ODE® e RNA®. Ela casou-se, ainda nova, mas logo descobriu que a paixão se fora, restando apenas uma cômoda amizade. Ela gostava do Lino, ainda gosta, de verdade. Uma vez por ano, ela o convida para passarem uma semana juntos. Viajam, para alguma praia do Nordeste, e esquecem-se das meias e cuecas sujas de outrora. Lino bom é assim, com a lavanderia do hotel. Se houvessem morado num deles, talvez a relação sobrevivesse, mas aquele junta cueca suja, até na cozinha, foi demais. Denise sempre foi perfeita, em quase tudo. Ela nunca teve chulé, pois sempre trocou os sapatos e as meias, duas vezes por dia. No trabalho, nunca a viram usando calças. Ela só usa saia ou vestido. Tudo impecável. Mesmo ao fim de um daqueles dias terríveis de verão, quando quebra o ar-condicionado do escritório, ela não exala odor que não seja perfume. De fato, ela lembra um eterno pacote de presente de tia velha, com sabonetes. O que mais impressiona, até quem já a conhece, é o fato de que ela não transpira, nem mesmo na academia. Todos no maior malho, se derretendo, e ela lá, diáfana, fresca e perfumada. A única alteração perceptível, enquanto ela se exercita, é um leve rubor nas faces, o que lhe empresta beleza adicional, quase juvenil, apesar da meia-idade que ninguém lhe atribui.

Rodrigo é a imagem do homem novo. Não só na idade. Além de jovem, ele coloca as cuecas e meias sujas no cesto apropriado. Todos os dias. Ele sabe se cuidar. Cultiva bons hábitos, só se alimenta com coisas orgânicas e malha duas horas por dia. Toma banho antes e depois de malhar. Esses cuidados transformaram-no numa espécie de adônis da academia. Ele malha usando óculos escuros, porque acredita que sua massa muscular crescerá enquanto o cérebro julgar que é noite. Isso demonstra que, talvez, seu cérebro não seja tão iluminado, mas lhe confere aparência que atrai olhares vindos dos demais aparelhos, ocupados pelas malhadoras. O rapaz está bombado society, na medida certa, sem pelancas nem exageros. Os olhares da Denise não passaram despercebidos.

Encontraram-se no bar da academia. Ela exalava frescor, enquanto bebia uma vitamina de açaí e leite de soja com alfafa. Ele pediu seu sanduíche de pão de painço e sorgo com broto de samambaia. Ele elogiou a vitamina dela, ela o sorgo dele. Denise lançava-lhe olhares constrangedores, do fundo dos seus olhos negros. Do papo, foram às mãos. Tocaram-se levemente, no princípio, passando às carícias mais prolongadas. Ela tentava descobrir qual era o creme que deixava as mãos dele tão macias. Fortes e másculas, porém, sedosas. O beijo não tardou, primeiro roubado, depois consentido e desejado. O Lino que ficasse com sua semana, as outras 51 seriam do Rodrigo. O adônis da academia percebeu que Denise não era exatamente adolescente, mas o amor durava exatamente o que durava. Portanto, aproveitaria enquanto durasse.

O flat dele ficava mais próximo, e o ardor impôs pressa. Quando a porta se fechou, eles agarraram-se e arrancaram suas roupas, com furor. Já rolavam sobre o tapete impecável, quando ela murmurou, ofegante.

- Só com proteção, meu amor.

Ela sabia que uma frase dessas quebraria um pouco do clima daquele momento, mas a excitação não poderia dominar totalmente a razão. Ele tateou, em busca da sacola da academia, de onde retirou a caixinha.

- Claro, sempre tenho várias, pois eu sabia que, um dia, toparia com você, minha deusa.

- O que é isso?

- Ora, benzinho, é camisinha...

- Camisinha? Cadê o álcool gel?

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4.9.09

544 - A caixa

Foto: Wikipedia

A caixa

Paulo Heuser

São duas da manhã. Não sei como me meti nesta situação. Até sei, na verdade. Tudo começou, faz mais de mês, quando me convidaram ao bar secreto. Um bar sem letreiro, sem fachada nem telefone. Sentamos a uma mesa no centro da sala semi-iluminada. Havia um pessoal ocupando os bancos que contornavam a parede do canto. Um deles, o centro das atenções, bebia uma cerveja escura tipo stout, sem espuma, e estava agarrado ao que parecia ser o estojo de uma trompa. Ele vestia traje a rigor. O homem tinha aparência estranha, algo próxima daquela do vovô da Família Monstro. Chamava-se Spetalnick, me disseram. Foi através dele que eu descobri que haveria um concerto com Ekstsentriline Vana, virtuosíssimo pianista estoniano, no canal secreto da Tv a cabo. Eu nunca havia ouvido falar do homem, mas se Spetalnick levantava as sobrancelhas, até aquela altura, para falar nele, deveria ser o tal. O trompista avisou, com forte sotaque, que logo identifiquei como característico do polonês da Vármia-Masúria, da necessidade de se ouvir Ekstsentriline Vana através de bons fones de ouvido, para nada perder das notas mais sutis.

Não fui direto para casa, mesmo após haver descoberto como acessar o canal secreto, coisa que eu não nunca poderei revelar, pois ele deixaria de ser secreto. Passei numa loja de equipamentos eletrônicos para comprar novos fones de ouvido. O cachorro havia mastigado os meus. Ele aprecia muito aquela espuma que reveste os alto-falantes. Não gosto desses fones modernos, que se introduzem nos canais auditivos. Prefiro os clássicos, volumosos como as virtudes da Lizzie Miller. Logo encontrei o que procurava, com fio de 6 m de comprimento, formato Lizzie e controle de volume. Corri para casa, pensando em arrumar um spray com cheiro de pet shop, para manter o cachorro longe dos fones, pois banho é a única coisa que ele teme.

Caixa bacana aquela dos fones. Muito melhor do que as embalagens plásticas impossíveis de se abrir. Comecei a abri-la com cuidado, para não rasgar o papel. Levantei a tampa e retirei os fones, que vieram encaixados numa estrutura de papelão vermelho. Como descrevê-la? Difícil. Percebi logo que deveria desdobrá-la, pois era feita de apenas uma folha de papelão dobrada e encaixada, sucessivas vezes, através de pequenos recortes. Aquele negócio era um origami digno do mestre japonês Gefaltete Pappe. Eu não poderia destruí-lo. Como é que uma mente humana conseguira conceber tal obra prima da dobradura? Quando parecia que os fones estariam finalmente liberados, novas dobras prendiam os fios e me desafiavam. Não sei que horas eram quando finalmente consegui libertar os fones. Sei apenas que eu deveria ter jogado a caixa fora. Contudo, não resisti à tentação de guardá-la. Para tanto, tive que dobrar e encaixar novamente aquele origami de papelão vermelho. Se desdobrar foi difícil, dobrar pareceu impossível.

Vou dormir. Perdi a apresentação de Ekstsentriline Vana, que deve ter ocorrido há três horas. Só resta um problema. Não sei onde larguei os novos fones. Tampouco acho o cachorro.

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