30.6.06

Os Miseráveis

Publicada no portal do Sinepe-rs, em 04/07/2006
.
.
Os Miseráveis

Porto Alegre, Largo Glênio Peres, 7h50. Do meio da cerração surgem figuras humanas, apenas o contorno. São como cascas de gente, aparentemente desprovidas de conteúdo. O que teria acontecido, para chegarem a esse estágio de miséria? Seriam dementes, antes trancafiados em sanatórios? Viciados em álcool, ou outras drogas, nos últimos estágios da doença? Teriam uma história? Não tenho coragem para lhes perguntar. Há muito cruzaram a fronteira entre a sociedade e aquele lugar em que se encontram, seja onde for, onde não nos atrevemos a ir. Marginais não estão mais, foram muito além da fronteira, mergulhados em outro mundo, do qual nunca retornarão. Mais perguntas. O que comem? Como conseguem dormir neste frio? Ao passar ao lado deles, tranco a respiração, sem pensar. Quero manter um isolamento biológico. A rotatividade ali parece ser alta, não fixo nenhum na memória. As crianças já saem em grupos ruidosos, à cata de loló – cola de sapateiro -, para se drogar, colorindo seu mundo cinza. E aplacando a terrível sensação de fome. Seus olhos não são olhos de crianças. Se parecem mais com bonecos montados a partir de corpos de crianças e cabeças de adultos. Alguns dos adultos compartilham um líquido laranja, cor que contrasta com aquele ambiente. A Borges, finalmente. Aquele mundo fica para trás. Em outros tempos, os moradores de rua chamavam mais a atenção. Em menor número, acabavam na memória dos passantes. Quando havia o terminal de ônibus no Largo do Mercado, Iiiióóóóó era o mais conhecido. Passava recolhendo esmolas em uma caixa de sapatos. Sacudia a caixa, ouvia-se o tinir de algumas moedas, cutucava cada um que estivesse na fila, para tomar o ônibus, e soltava um Iiiióóóóó, som semelhante a um zurro. Nas redondezas do City Hotel habitava o Zé do Éter. Devia o apelido ao peculiar vício de cheirar éter, por anos a fio. Dizia-se que o seria objeto de pesquisa nas universidades. Ninguém poderia viver tanto cheirando éter daquele jeito. A meia quadra de distância já se sentia o cheiro de éter. Seria ele um eterno personagem de O Dia Em Que O Mundo Acabou, de Sir Arthur Conan Doyle? Não sei quem fez o perder a corrida, a idade, o éter ou a miséria. Quando juntava esmola suficiente, ia até um atacado de produtos químicos, de onde saía feliz com outro tubo imenso de éter. Outra figura dessas morava na vitrine de uma loja que vendia moto-serras, creio eu, na esquina da Farrapos com a Conde de Porto Alegre. Mantinha uma espécie de casa numa floreira junto à vitrine. Quando deixou de virar um agosto, foi notícia de jornal. Quem mora, há muito tempo, na Ramiro, entre o Bom fim e Rio Branco, deve se lembrar do Boca. Mendigo de plantão, Boca proferia longos discursos, sempre gesticulando com uma das mãos, a outra segurando uma bagana, com dois dos dedos, enquanto os demais entravam no paletó, em posição napoleônica. Mantinha a postura altiva de alguém que um dia fora importante. O folclore local menciona um erudito poliglota que perdera tudo na vida. Deveria ter sido poliglota mesmo, pois do que falava, ninguém entendia palavra. O gênero feminino também nos apresenta figuras peculiares, nos dias de hoje. Uma senhora idosa, longe de apresentar sinais de pobreza, vende panos-de-prato bordados, sentada em uma cadeira de praia, na esquina da Caldas Júnior com a 7 de Setembro. Nestas manhãs gélidas, de junho a agosto, ali corre um vento denominado Mata Bancário. Sempre sorridente, anuncia o produto com uma voz fininha: - hoje tá barato, cinco reais, hoje o freguês leva... Perto dali, na Siqueira Campos, está sentada outra senhora, também idosa, que deve ter sofrido alguma doença que afetou nervos da face. Escreve coisas misteriosas em um caderno enquanto levanta uma pálpebra com a mão. Quando retira a mão, o olho fecha. Dá uma agonia terrível assistir àquela cena. Tem de ter estômago para andar no Centro. Nos embrutece com o tempo. Lá há apenas uma certeza: nenhum daqueles virá a ser o Jean ValJean, em Les Misérables, de Vitor Hugo. Ele ainda conseguiu estudar. E havia o bispo para lhe dar uma segunda chance. Onde fica mesmo a Padre Chagas?
.
Paulo Roberto Heuser

29.6.06

O Condomínio

O Condomínio

Dizem filósofos e sociólogos que o homem é um ser gregário, por natureza. Os homens (e as mulheres, naturalmente) unem-se para compartilhar experiências, proteger-se mutuamente, etc, etc. Sublinhe-se o por natureza. Acrescento eu, hipoteticamente. Por hipótese, porque na prática, pouco se comprova. A menor célula da nossa sociedade é a família. Lembra do papai e da mamãe das cavernas protegendo sua prole das cavernas, ao redor do fogo? Pois é, em família até que dá para considerá-lo gregário. Bem mais do que o Dragão de Komodo, cuja dieta alimentar inclui os filhinhos, dragõezinhos de Komodo menores de dois anos. Estes, após o nascimento, sobem em árvores, o mais rápido possível, pois papai tem fome. Papai fica em baixo da árvore, de boca aberta, dizendo: - dorme filhinho, dorme... Como ser gregário o homem passou a viver em grupo. Nesse momento foram inventados os vizinhos. E o adultério. Vizinhos convivem bem enquanto não se vêem, ouvem ou se relacionam de qualquer outra forma. Os que vivem na santa paz são os que ignoram que há alguém morando ao lado. Na medida que os grupos foram crescendo, e as cavernas ficando apertadas, organizaram-se em cavernas-sobre-cavernas, hoje chamadas de edifícios. No início era o caos individual. Vieram então os primeiros condomínios, o caos coletivo. Assim como a família tinha um chefe, o homem naquela época, a caverna coletiva necessitou de um chefe para organizar o caos. Deu-se o nome de síndico ao chefe do condomínio. Este zelava pelo bem estar dos cavernosos (os condôminos), resolvendo rusgas intra-caverna, proibia a presença de javalis de estimação, impedia os cavernosos de urinar e fazer coco no interior da caverna, orientava quanto ao uso das coisas comuns, como a fogueira central, os guarda-dinossauros e o depósito de ossos. Foi incumbência do chefe recrutar homens para manter a segurança da entrada da caverna contra ataques de outros grupos, de outras cavernas. Nas noites de mudança de lua o chefe controlava as festas ritualísticas promovidas pelos cavernosos adoradores da Lua. Proibido uivar e bater ossos após a 22ª estrela se pôr. Para os cavernosos infratores das leis da caverna foram criadas punições, proporcionais a gravidade do ato. A mais branda era ouvir grunhidos do chefe, em caráter de advertência. Na reincidência, porretadas. Na terceira vez os cavernosos eram jogados às feras de plantão no sopé do morro. Para manter o síndico e os seus colaboradores foi instituída uma contribuição a ser paga pelos cavernosos. Geralmente carne para alimentação. Junto com as cavernas-sobre-cavernas surgiram os políticos, na figura do chefe e seu séqüito. Não demorou, para que alguns cavernosos demonstrassem interesse em ocupar a posição de síndicos também. Ou procuravam outros grupos para se impor ou entravam em luta com o síndico atual num processo chamado de eleição. Cavernosos candidatos entravam em luta, apoiados pelos seus grupos familiares, cabendo ao vencedor (o sobrevivente), a chefia. Com o crescimento contínuo dos sistemas de cavernas, novas estruturas sociais foram surgindo, como as cidades e os estados, cada um com sua chefia. O síndico continuou existindo e se atualizando com o tempo. Hoje não podem mais matar os condôminos faltosos. Sua vida foi facilitada quando surgiram grupos que se propunham a auxiliá-los nas atividades mais enfadonhas, como a cobrança da contribuição. Antes o síndico era obrigado a roubar os animais dos cavernosos que estavam em falta com a contribuição. Não raras vezes o chefe de uma família a abandonava, para viver com outra, obrigando o síndico a jogar o resto da família às feras, processo chamado de despejo. Com o surgimento da imobiliária, delegou essas tarefas desagradáveis. Hoje já há cavernas-ao-lado-de-cavernas, amontoado humano chamado de condomínio horizontal. Independentemente da sua orientação, vertical ou horizontal, ou do tamanho, todos condomínios tem uma coisa em comum: a encrenca. Tudo começa inocentemente. O pessoal da caverna XXXIII pendura seus pêlos no peitoril do buraco. Acaba pingando sangue sobre os trapos da mulher do XXIII, que os vestiria no ritual noturno. Após uma troca de grunhidos, está feita a cizânia. Pode ser também que as crianças do XLI joguem ossos de javali nas crianças do síndico, enquanto papai vai à caça e mamãe esfola um veado. Hoje há uma inversão de papéis também. O número mínimo de cavernosos para gerar encrenca é dois. Após a invenção da roda as coisas pioraram, pois os cavernosos começaram a trazer carroças para dentro dos conjuntos de cavernas. A luta pelo espaço já fez muitas vítimas. Os síndicos passaram a contratar pessoas, os zeladores, para uma função até hoje não bem entendida. Pela Carta Grande, que tudo regulamenta, não podem trabalhar, aparentemente. Quando o fazem, entram depois com um processo contra a caverna e acabam ficando com o Salão de Rituais, que pode ir a leilão. Podem incomodar os moradores e os funcionários. Está achando graça? Espere, lembre-se da frase: - Condomínio, você ainda vai morar em um! Mora em casa? Tem vizinhos? Quantos? Um ou mais?
.
Paulo Roberto Heuser

28.6.06

Cerveja e Fritas

Cerveja e Fritas

Meu pai costumava dar três pancadas na garrafa de cerveja antes de abri-la. Para acordá-la e evitar o congelamento do precioso líquido. Há quem diga que são duas as pancadas, secas, no fundo da garrafa. Alguns dos mais jovens dirão: - o que é um abridor de garrafas? Só conhecem latas. Nunca vi alguém dando pancadas em latas. Não é necessário abridor para as garrafas long neck – descartáveis de vidro -, basta girar a tampa, se você tiver dedos de aço, bem entendido. Um pano também ajuda. Os mais rústicos preferem abri-las usando os dentes ou o olho (crianças, não tentem!). A princípio, o que vale para as garrafas tradicionais, de 600 ml, vale também para as long neck. Outra forma usual de evitar o congelamento da cerveja é a de segurá-la com apenas dois dedos, não com a mão toda. Unanimidade apenas quanto a beber a cerveja gelada. Aqui, pelo menos. Em outras terras vale a frase dita por alguém em Asterix Entre Os Bretões: - Beba sua cerveja antes que ela esfrie! Assim, não veremos anglo-saxões ou germânicos dando batidas no barril. Lá não se deixa a cerveja ao relento porque esfriará, eventualmente congelando. Aqui não se deixa porque será objeto de furto, certamente. Tenho o péssimo hábito de tentar entender os ditos e procedimentos herdados de outras gerações, inclusive da minha. Por que dão batidas nas garrafas de cerveja para evitar o congelamento? Por que segurá-la com apenas dois dedos, para o mesmo fim? O mistério envolvendo o primeiro método persiste. Sabe-se que podemos manter água em seu estado líquido em temperaturas abaixo de zero grau Celsius, desde que esta seja relativamente pura e a densidade seja homogênea. Apesar de conter álcool, e outras coisinhas, a cerveja mantém características físico-químicas semelhantes às da água. O que inicia o congelamento da água abaixo de zero? Uma maior proximidade entre as moléculas – perda de calor diminui a energia cinética. Iniciado o congelamento, ninguém segura. A mudança de estado pode ser provocada por diversos fatores externos, como as ondas mecânicas provocadas por sacudidas ou batidas na garrafa. As ondas mecânicas alteram a densidade à medida que se propagam, iniciando o congelamento. Ou seja, dar batidas na garrafa pode acelerar o início do congelamento. Segurar a garrafa também pode iniciar o processo de congelamento. Deveria ser o contrário, devido ao aquecimento provocado pela mão? Não. A mão aquece a parede da garrafa. O gás carbônico, menos solúvel na água aquecida pela mão, próxima da parede, tende a migrar para outras partes, alterando a densidade. Ou seja, dar batidas, sacudir e pôr a mão são fatores externos que iniciam o congelamento. Infelizmente, para quem toma todas estas precauções, o que geralmente desencadeia o início do congelamento é a abertura da garrafa, pela expansão dos gases. Portanto, se a cerveja estiver numa temperatura inferior àquela de congelamento, vai congelar de qualquer forma durante a abertura da garrafa. Pode tentar batidas, segurar com um pano, espremer limão na orelha, virar para o norte, de nada adiantará. Para evitar o congelamento nada melhor do que não levá-la até muito abaixo de zero. Ou adquirir hábitos britânicos e bebê-la estupidamente morna. Com batatas fritas nadando no ketchup. Viva o verão! A família real britânica passa as férias de verão no Castelo de Balmoral, na costa escocesa. Explica aquele ar de constante sofrimento apresentado pela realeza. Disto tudo se depreende que a ciência – física e química no caso – também serve para melhorar a vida do homem e das mulheres que gostam de cerveja à moda brasileira. Para não errar, coloque a cerveja numa caixa térmica, com gelo. Sairá sempre no ponto. Se for utilizar o freezer ou congelador siga o descrito acima sem medo. Por via das dúvidas, dê umas batidinhas na garrafa e pegue apenas com dois dedos, esperando para abri-la quando estiver por volta de 4 graus Celsius negativos. Se for cerveja em lata, e estiver congelada, tente o método infalível. Introduza um canudo, coloque a lata sob a axila, esquerda ou direita, e vá sugando à medida que descongela. É válido para a cerveja sem álcool? Não, como é composta essencialmente de água, congela em temperaturas maiores. Neste caso, congelada ou não, jogue fora e beba água mesmo.

Paulo Roberto Heuser

27.6.06

Tia Fogueteira

Tia Fogueteira
.
2 de junho de 2006
.
Minha tia se foi. Suavemente, sem alarde, apenas se foi, após uma longa vida que marcou as vidas de muitos. Tenho inúmeras lembranças da minha infância, quando vinha passar parte das minhas férias em Porto Alegre na sua casa. Como minha prima era mais velha, eu era a única criança na casa nesses períodos. Aquilo que tinha tudo para se transformar em algo maçante, para uma criança, passar férias com a tia velha (na minha visão da época), tornava-se uma sucessão de dias emocionantes, repletos de surpresas. Além de ser tratado como um rei, a base de Coca Cola Família e cachorro quente feito no grill, havia televisão na casa! Nenhum dia era igual ao outro. Desde a chegada, após uma poeirenta viagem de ônibus, desde Santa Cruz, a chegada na Rodoviária da Conceição, o táxi-mirim - como se chamavam os fuscas - e o sobrado da Eça de Queiroz. A manhã seguinte iniciava com a ida até o galinheiro cheio de perus (seria um perueiro então?). Sim, havia perus em plena Eça. Assoviava minutos a fio, para ouvi-los produzir o glu-glu. A rua transbordava de sons, verdureiros em carroças, afiadores de facas e vendedores de amanteigados. Destes fiquei enfarado, após comer 1kg, de uma sentada. Estratégicas idas ao centro, de bonde, descendo a Protásio, para tomar um chá (ugh!) com torta (oba!) nas Lojas Krahe, com direito a andar na primeira escada rolante de Porto Alegre, cuidando para não pagar mico na hora de pisar. Chá nas Lojas Krahe apenas para menores de 12 anos, acompanhados de adulto, pois alguns playboys haviam aprontado e escandalizado as senhoras da sociedade. A Rua da Praia, nessa época, era algo semelhante à Padre Chagas de hoje. Inevitável dar uma passadinha na Hobby, na subida da Rua da Praia, para comprar um Matchbox - miniatura inglesa de carros. Aquela loja era minha projeção do paraíso, com uma enorme pista de autorama. Em outro dia, para não acumular todas emoções num só, um pulo na Praça Ruy Barbosa, lá no Varner Oliveira, para comprar aeromodelos movidos a elástico. O segredo da tia era apenas um: ela realmente gostava de participar dessas aventuras. Ajudava a montar o aeromodelo, achava rádios velhos, no porão, para que eu os desmontasse. Não é preciso dizer o que acontecia quando ligados, após a remontagem. Uma troca do fusível - não havia disjuntores - resolvia, não ocorreu nenhum incêndio muito grande. Essa tia era mais uma cúmplice do que uma tia. Nos meses de junho, próximo de São João, Tia Marga retribuía as visitas, indo passar uns dias em Santa Cruz, onde nascera. Suspeito que escolhia esse período devido aos rojões. Enquanto meus pais trabalhavam, ela nos dava dinheiro para comprar os rojões, os maiores, os mais barulhentos e os mais fumarentos. Nosso quintal ficava transformado numa praça de guerra, repleto de fumaça e cheiro de pólvora queimada. A gurizada da vizinhança trazia latas para serem explodidas. E ela participava ativamente. Meu pai comentava que a fumaça era visível a uma quadra de distância. A tia gostava tanto de bombas, que sempre as tinha na mesa de cabeceira. Quando os cachorros começavam a uivar, nas noites de lua cheia, ou os gatos faziam a chorosa corte, a Dona Marga acendia um rojão, sem levantar da cama, e jogava pela janela. Ela tinha um cão, da raça Boxer que, apesar de ter uma cara horrível e chamar-se Boca Negra, era uma versão canina do maricas. Durante um dos bombardeios noturnos, Boca Negra escondeu-se sob o tanque, na lavanderia. Passado o pavor, Boca Negra viu-se entalado. Tiraram o tanque para libertá-lo. Essas coisas passaram pela minha mente enquanto me despedi. E percebo que estamos entrando em junho. Será mera coincidência o fato da Tia Marga estar nos deixando agora? Neste junho irá soltar rojões em outros quintais? Chegando lá, estoure um rojão por nós.
.
Paulo Roberto Heuser

25.6.06

O Elefante Atolado

O Elefante Atolado

Não consigo deixar de pensar no período pós-Copa e pré-eleição que se aproxima. Muda o logotipo do patrocinador, saem os comerciais e entra o leque de logotipos iniciados pela letra P. O tom da campanha já foi dado em recentes discursos de palanque. Saradas as bolhas, a cobra vai fumar. E o País vai parar, novamente. Paramos para o Carnaval, para as eleições e para a Copa. Não todos, as cervejarias faturam alto em todos esses períodos. Outro setor da economia visível, e legal, que se manterá ocupado será o dos serviços, marketing essencialmente. Marketeiros estarão tentando vender seus peixes, nem sempre frescos. Já reparou que quase não se vê propaganda de amido de milho? Para quê? Vende de qualquer maneira, pois mantém a mesma cara e o mesmo conteúdo há mais de 100 anos. Há confiança cega por parte do consumidor. Mudando estarão fora do mercado, derrotados pela própria imagem anterior. Já para a venda de peixes a dificuldade é maior, bem ilustrada por Goscinny & Uderzo na figura do Ordenalfabetix, dono da peixaria da aldeia gaulesa de Asterix. Televisores vendem bem na Copa, eventualmente no Carnaval. Definitivamente não vendem bem nas eleições. Quem quer assistir àquele espetáculo em formato 16X9, som estéreo e tela de 42 polegadas? Somente os masoquistas de plantão. Já pensou, aquele folclórico ex-candidato, ex-barbudo, gritando seu nome, com som surround e 500 W de potência? Dá para estremecer. Bares, restaurantes e locais para eventos também vêem seu faturamento crescer nesses períodos, à vista no Carnaval e na Copa, a prazo nas eleições, eventualmente a fundo perdido. Para quem quiser arriscar um investimento em bolsa de valores vai a dica: ações dos fabricantes de remédios contra os sintomas da ressaca. Vendem bem nos três eventos. Tanto Carnaval como eleições movimentam um contingente enorme de voluntários. No primeiro caso, pelo amor à escola de samba e à festa, no segundo, pelo amor ao partido, ou ao emprego. Cabos eleitorais são como treinadores e jogadores do esporte profissional, pois têm emprego enquanto vencem, estes os jogos, aqueles as eleições. No pré-eleitoral o desemprego some. Mendigos e caloteiros de semáforo viram agentes mercadológicos em troca de um sanduba e meia dúzia de merrecas. Os militantes de primeira hora distinguem-se dos de última, ou soldados da fortuna eleitorais, pelo entusiasmo. Os primeiros têm brilho no olhar, os últimos a paixão do(a) amante profissional. As coligações políticas conseguem unir bandeiras ideológicas tão antagônicas como seria, no futebol, um combinado Brasil-Argentina. Algo como Parreira e José Pekerman – treinador argentino - abraçados dançando um tango, às vésperas de uma final da Copa, entre seus times. As coligações de forças historicamente antagônicas têm outras conseqüências. Fulminam as esperanças dos eleitores mais esclarecidos que apresentam afinidade com uma das linhas ideológicas. Também fomentam a polarização extrema, não mais de idéias, agora de siglas. Ao eleitor que lê, que ouve e que vê, não sobra a alternativa de uma terceira via, pois dificilmente terá afinidade ideológica com os grandes conglomerados de siglas. Neles votará se algum interesse particular sobrepor o ideológico. Como o leitor informado é minoria, o marketing investe pesadamente na maioria afastada da informação. A alternância das eleições, a cada dois anos, deu continuidade ao antes sazonal. Vivemos permanentemente a campanha eleitoral, altamente polarizada, para o azar da Nação. Cada passo dado no Legislativo tem a agilidade de um paquiderme atolado no pântano. A inércia atinge a tudo e a todos. Vide o embrólio causado pelo atraso na votação do orçamento da União. A economia do Rio Grande do Sul também sofre com o antagonismo continuado entre vencedores e vencidos dos últimos pleitos. Medidas ansiosamente esperadas, para tentar sanar, ou pelo menos reduzir, os problemas estruturais do Estado são recebidos como iniciativas eleitoreiras – por vezes justamente -, pelas partes envolvidas. Se der certo é ponto feito para a situação e ponto contra a oposição. Se der errado, o contrário. Metaforicamente falando, quando os cavalos puxam a carroça para lados opostos, esta não sai do lugar. Metáfora cansa, mesmo como figura cognitiva, quando usada à exaustão. Como na corrida armamentista do pós-guerra – a segunda -, o estado investe pesado na continuidade dos governos, em detrimento dos demais setores da sociedade. Lá foi entre os EUA e a extinta URSS. Aqui, estamos em guerra contra nós mesmos, uma espécie de guerra fria civil. Não tão fria nas ruas. Quentíssima, talvez.

Paulo Roberto Heuser

22.6.06

Fausto e Eu

Fausto e Eu

Durante o jogo de hoje, Brasil X Japão, pela Copa do Mundo, assistimos à redenção do Ronaldo. Execrado, crucificado e ressurgido, tudo em minutos. O locutor que narrava o jogo foi mudando de tom a medida em que o jogo avançava. De gordo, decrépito e paquidérmico, Ronaldo foi guindado a maciço e musculoso, após o seu primeiro gol no jogo, e touro, forte e maior artilheiro de todas as copas, após o segundo. É a história de Rocky Balboa, em alguns dos muitos Rocky 1,2,3,4,5,... (confesso, assisti a uns três), condensada em 90 minutos. Chega a ser emocionante! Esquecemos os cartolas, os patrocinadores e os argentinos, por alguns instantes. Inevitável transferência, lavamos a alma com o ex-gordo, agora um Atlas. Remete à imagem do Silvestre Stásozinho correndo pelas ruas de Nova Iorque com um bando de crianças atrás, tudo emoldurado pela música tema. O patrocinador lavou, além da alma, o caixa. Até agora, a melhor coisa que vi, nas transmissões da Copa, foi uma propaganda de banco que passa nos intervalos. Tem música e fotografia fantásticas. Existem heróis e heróis. A diferença entre eles? Ora, os primeiros são heróis. Os últimos também o são, de outra forma apenas. Há o herói de 90 minutos e o herói de 90 anos - 91 para ser mais exato. Antes da redenção do gordo forte, assistimos à redenção de José Mindlin, desnecessária por sinal. A biografia já o imortalizou. Mindlin, mais novo imortal da ABL – Academia Brasileira de Letras, construiu, ao longo de mais de 70 anos, a maior biblioteca particular do país, com mais de 30 mil títulos. Iniciou a coleção aos 13 anos e não parou mais, declarando ter compulsão pela compra de livros. Outros têm compulsão pela compra de sapatos, como a Imelda Marcos, cuja coleção teria mais de 900 pares ou três mil, segundo alguns. Tenho uma sobrinha que ainda chegará lá. A coleção da Imelda vai a leilão, pois foi comprada com dinheiro público. A da sobrinha, com o próprio. Mindlin também construiu a coleção com o próprio dinheiro, que não lhe falta por sinal. Não recomendo colecionar livros se você não for rico e for apegado aos livros. Digo isto enquanto olho, preocupado, para uma estante abarrotada de livros, já apresentando uma certa inclinação lateral pelo peso. Em duas ocasiões criei coragem para vender parte do acervo (fica chique). Na primeira, uma amiga me desestimulou com o seguinte argumento: - não se vendem livros, fazem parte da nossa alma. Autêntico, e gélido, balde de água fria. Senti-me como o Fausto (vendeu a alma a Mefistófeles, o diabo) de Göethe. Não sucumbi à tentação, era a desculpa que faltava para me fazer desistir. No verão passado, resolvi tentar novamente, a alma que se exploda! Falta-me espaço físico. Resolvi fazer uma lista dos títulos e levá-la aos sebos, para avaliação. O trabalho não avançou, parava a cada pouco para dar uma olhadinha naqueles livros, alguns traziam lembranças há muito esquecidas. Títulos e autores para cada época da vida. Após duas horas, e não mais do que 20 itens na lista, eu desisti. A gota d’água foi um livro sobre Astronáutica, da década de 60, escrito por um cientista russo e um então jovem estudante brasileiro, Ronaldo Rogério de Freitas Mourão – cientista hoje laureado e reconhecido internacionalmente. Tenho consciência de que muitos daqueles livros não serão sequer abertos, nos próximos anos. Alguns, talvez, nunca mais. Como algumas partes da minha alma, espero. Mas, como vendê-los? Seria o triunfo de Mefistófeles? Sei que corro perigo. Por um lado, Mefistófeles já me convidou duas vezes para adentrar sua sala - na terceira serei conivente. Seria a minha lista de livros o contrato, por ele exigido? Por outro lado, corro o risco de ser despejado, pela família, com as minhas relíquias literárias. Há estante de livros, estante feita de livros, livros em armários, livros sob a churrasqueira e, pasmem, alguns já rodaram pela cidade no porta-malas do carro. Biblioteca itinerante particular. Esta nem Mindlin tentou. Será que o condomínio se oporia a um puxadinho feito com livros? Daria um ar cult à fachada do prédio. E eu poderia mandar Mefistófeles chupar traças!

Paulo Roberto Heuser

21.6.06

O Case Raimundo

O Case Raimundo

Ontem encontrei o Raimundo, na rua. Colega do colégio, na infância, não o via há mais de 30 anos. Não o reconheci, foi ele quem me abordou. Estava enfiado em um elegante terno, tudo na moda. Estranhei um pouco, pois o Raimundo não era exatamente o aluno que projetava uma imagem de sucesso. Veio a conversa mole, como está, tem família, no que trabalha, etc. Raimundo disse que não chegou a entrar em nenhuma universidade, resolveu trabalhar logo que saiu do colégio. Empregou-se como digitador em um banco. A vida ia sendo levada, casou e teve filhos. Um belo dia foi chamado ao RH do banco e lhe comunicaram que fora demitido devido à automação dos processos em que trabalhava. Explicaram-lhe que deveria se sentir feliz. Deixaria de exercer aquela função tão enfadonha, que causava doenças ocupacionais, e poderia dedicar-se a um trabalho mais digno. Raimundo abriu sua própria firma de digitação com o dinheiro da rescisão. Após alguns meses de atividade teve de demitir metade dos seus digitadores. Os clientes da sua empresa estavam automatizando os processos, não necessitavam mais de digitação. Antes da firma completar seu primeiro aniversário, foi necessário fechá-la. Não havia mais clientes. Decorridos seis meses de procura de algum emprego, Raimundo aceitou o convite do sogro para trabalhar com ele na sua afiação de tesouras de jardinagem. Para o azar dele, e do sogro, as tesouras começaram a sumir do mercado, substituídas pelas máquinas de cortar grama elétricas. O sogro aposentou-se. Antes, conseguiu um emprego, para o genro, na loja de tintas do seu Natanaiel, o compadre. Raimundo adorou a nova ocupação. Orientava clientes na escolha das cores, misturava tintas para obter novas cores e podia ter até alguns momentos de descanso entre os clientes. Um pouco antes do Natal seu Natanaiel veio com a grande nova, comprara uma máquina para preparar tintas a partir de uma base. Levou pouco tempo para descobrir que Raimundo passara a ser um enfeite na loja. Novamente no olho da rua, Raimundo perambulava pensando no que fazer, quando encontrou dois dos seus ex-digitadores. Em uma mesa de bar tiveram a idéia de fundar a COTRAPROTRAMDIG – Cooperativa dos Trabalhadores à Procura de Um Trabalho Mais Digno. Fundaram uma entidade que, antes de deixar a empresa explorar o homem, faria exatamente o contrário. Nas reuniões que se seguiram, procuraram encontrar alguma atividade que fosse tão adaptável à realidade do mercado que não se colocasse em risco a cada pouco. O sogro do Raimundo, convidado a dar pitacos, tomou um gole do liso, olhou para todos e mandou: - tem de criar o mercado! A princípio todos pensaram que o velho tinha tomado uns goles a mais. Agora sorrindo, completou: - é isso, tem de criar o mercado! Convidado a explicar-se, não tinham nada a perder mesmo, o velho demonstrou sua idéia de uma forma até bem simples: - vocês perdem o emprego porque o mercado deixa de existir. Então, tem de fabricar o mercado para a coisa que fazem. A ficha do Zé Tongo foi a primeira a cair: - já entendi, inventamos uma coisa que os outros não precisam, mas os convencemos de que precisam! O velho sorriu marotamente, lembrando-se do multiprocessador que a patroa pedira no Dia das Mães. Apenas abanou a cabeça afirmativamente, tomou mais um gole, apontou o dedo para o Zé Tongo e sussurrou: - ele pegou a idéia. Mas, criar o quê? Não poderia ser um produto, pois teriam de fabricá-lo e logo poderia obsoletar-se. Um serviço então, mas qual? Zé Tongo seguiu o raciocínio que iniciara e sugeriu uma linha de atuação: - temos de atacar exatamente onde nos fizeram perder os empregos, na redução de custos. Vamos vender redução de custos! – Como? – Vamos criar um método. Duas semanas depois a mesa do botequim estava cheia de papeis. Todos concordaram com a idéia de convidar o Yobushi, japa que havia trabalhado na ex-firma para dar um ar de credibilidade ao negócio. Japoneses pareciam mais confiáveis e eficientes. O japa lembrou de um programa da Emater, aplicado nas áreas agrícolas, os Clubes 4S - Saber, Sentir, Saúde e Servir. Sua mãe e irmã participaram dele. Optaram por criar algo mais impressionante: o Método 5S. Raimundo estava questionando os 4S já existentes e imaginando que os empregados e os sindicatos não iam gostar muito do “Servir”. Os patrões não gostariam do “Sentir”. Como ainda faltava um S mesmo, resolveram apelar mercadologicamente e trocar todos por coisas japonesas, ficaria uma imagem sólida de eficiência. Olharam para o japa e pediram cinco palavras, em japonês, que começassem com S. O japa coçou a cabeça e confessou que não falava japonês. Disseram-lhe que poderia ser qualquer coisa, já que ninguém entenderia mesmo. Surgiu um brilho nos olhos fechados do japa quando lembrou da cozinha da mãe. Lá vai: - sushi, sashimi, sukiyake, shoyu e sarapatel. Zé Tongo estranhou e perguntou: - sarapatel é japonês? – sei lá, a vizinha ensinou minha mãe a fazer. Então lembrou do sake, por que não? Pronto, já tinham os 5S. Qual seria o significado disto? O gênio do Zé Tongo novamente teve a idéia fantástica: - tudo que é muito simples parece lógico. Compraram livros de auto-ajuda no sebo da ladeira e procuraram as frases feitas mais óbvias que puderam encontrar. A cada S atribuíram uma frase. Uma falava para jogar todo o lixo fora. Outra, mais inspiradora, mandava rotular tudo, inclusive as árvores e os lápis. Criam mantras para ficar repetindo as frases à exaustão, até que fossem realmente internalizadas. O sogro, feliz com o andar da carroça, levantou uma questão importante: - para impedi-los de notar que estão sendo engambelados é preciso mantê-los permanentemente ocupados. Montaram cronogramas de trabalho que incluiriam os finais de semana, quando ocorreriam atividades coletivas. Juntou-se ao grupo a irmã do Zé Tongo, recreacionista de jardim de infância. Nada melhor para manter um bando de empregados ocupados. Inventaram prêmios para serem entregues aos funcionários mais destacados no cumprimento das metas, mesmo que inexistentes. Bolinhas de borracha com ideogramas japoneses e bandanas de kamikases. Camisetas com a inscrição “Dispensável”, em japonês, seriam distribuídas para todos. Para mantê-los ocupados durante os dias úteis, formulários, muitos formulários. O café seria trocado por chás e os sanduíches por balas de algas. Empacaram na determinação das metas a serem apresentadas às empresas. O velho estalou a língua e disse: - deixe que eles mesmos criem as metas. Se não as cumprirem a culpa será duplamente deles. E completou: - o pessoal do chão de fábrica deverá fazer o planejamento. Criem muitos formulários que levem a novos formulários. Deixe o pessoal executivo vendado enquanto joga cabra-cega com a irmã do Zé. Raimundo estava preocupado: - e quando descobrirem o logro? – Não vão, ficarão ocupados preenchendo formulários por muito tempo. Vamos embora muito antes, após dar a metodologia por implantada. Depois, ninguém terá a coragem para admitir que passou o sábado à tarde vendado, tentando espetar o rabo do burro, enquanto entoava mantras incompreensíveis e os faxineiros montavam o planejamento estratégico. O passo seguinte foi comprar um terno bacana para o japa, conseguiram um baratinho na funerária, e mandá-lo apresentar parte da metodologia 5S num seminário sobre governança, seja lá o que for isto. Como o japa proferiu palestra, não foi preciso pagar inscrição e ainda descolaram um coffe break. Só foi preciso carregar bem no sotaque para que não entendessem muita coisa. A única parte inteligível falava da redução de custos e aumento da rentabilidade. Os cartões de visita, que mandaram fazer numa galeria do centro, esgotaram-se rapidamente. O telefone do boteco não parou de tocar. Zé Tongo fechou o primeiro contrato com uma grande empresa, cujo diretor organizara o evento de governança. Com o adiantamento, da assinatura do contrato, compraram ternos para o resto do pessoal. E um ábaco. Japa que se preze não usa laptop, usa ábaco, aqueles de bolinhas. Dá mais autenticidade. As primeiras duas semanas foram meio estressantes, os gerentes e os diretores do cliente estavam em pé de guerra, achando tudo uma idiotice. Até que a irmã do Zé Tongo entrou em cena, no sábado pela manhã. As sessões de cabra-cega, cântico de mantras e partidas de caiu-na-patente entusiasmaram os executivos, a ponto de pedirem para repetir tudo no domingo, trazendo a família. Depois disso, foi só administrar o preenchimento de formulários. Alguns funcionários, alijados de qualquer função importante, foram nomeados guardiões do método na empresa, os que garantiriam a continuidade do processo. Foram incentivados a criar formulários recursivos. Findos os três meses do contrato, numa emocionada cerimônia, ocorreram as despedidas, com os diretores usando crachás onde se lia “crachá”, tomando o microfone, onde se lia “microfone”, agradecendo aos consultores pela profunda mudança ocorrida na empresa. Só não sentaram para comer o churrasco porque as cadeiras e mesas foram jogadas fora pela patrulha da limpeza. Encerraram a cerimônia com um grande jogo de cabra-cega. A partir de então, Raimundo e sua equipe não pararam mais de assinar contratos. O tempo de espera, pelos serviços da COTRAPROTRAMDIG, chega a ser de dois anos. Raimundo pede licença, tem uma reunião agendada e não quer deixar os herdeiros do Peter Drucker esperando.

Paulo Roberto Heuser

Bolachas Velhas

Bolachas Velhas
.
Hoje passei pelo bastidor onde guardo os meus LPs (LongPlays). Cabe esclarecer, aos menos experientes, a terminologia aqui utilizada. LP é um disco de vinil, ou “bolacha”, precursor do CD. Bastidor é a palavra da língua portuguesa para rack. Várias vezes me senti tentado a passar no Brique da Redenção, ou nas lojas de discos da Marechal, para desovar meus LPs. Ocupam lugar. Os menos experientes olham incrédulos para aqueles discos. Ficam mais impressionados frente ao toca-disco, aparelho que fez parte da minha geração. As festas de garagem, onde os guris levavam a bebida e as gurias levavam a comida, eram embaladas ao som de toca-discos. Abrindo parênteses, esse negócio de cada guri levar a bebida, que o seu pai não queria em casa, gerava uma mistura terrível. Eu sempre levava rum. Meu pai ganhava uma caixa de rum, de brinde, a cada Natal, de uma grande empresa que vendia tintas. Era o cúmulo da originalidade. Em meados de dezembro, por anos a fio, um caminhão entregava outra caixa de rum. Como ninguém bebia rum em casa, as caixas foram sendo empilhadas no galpão, feito esconderijo do fruto da pilhagem de bucaneiros. Fechando parênteses, alguém era eleito para cuidar do som, precursor do DJ. Ninguém gostava de emprestar os LPs e compactos (discos de vinil para 2 ou 4 músicas) porque poderiam sair arranhados. Arranhões no vinil criavam chiados, estalos ou, pior, saltos na música. Quando o DJ já havia ingerido muito rum, misturado com Coca-Cola (Cuba Libre), espumante, cerveja ou qualquer outra coisa, começava a trocar as capas e arranhar os discos. Manchas de bebida ou churrasco também eram freqüentes. Na década de 70 entraram com mais força os gravadores de fita magnética, popularizados pelo formato Cassete (K7). Os de rolo, muito superiores em fidelidade, eram mais difíceis de operar. Era necessário enrolar a ponta da fita em um carretel. Virar a fita significava inverter os carretéis. Os gravadores reproduziam perfeitamente o som reproduzido através dos toca-discos. Uma das filhas, deparando-se com um destes, indagou sobre o funcionamento. Respondi-lhe que bastava pôr a agulha sobre o disco. Prontamente jogou a agulha, da altura que se encontrava, sobre o pobre LP. Ela nunca o vira funcionando. Comprei meu primeiro tocador de CDs no início da década de 80. Maravilha, cheio de teclas e LEDs (aquelas luzes pequeninas). Comprei também uns três CDs. O milagre se operou no momento que o CD sumiu aparelho adentro. Para onde foi o chiado da agulha na primeira trilha do disco? Sumiu, junto com outras coisas que não eram para sumir. Para onde foram os graves? O CD comeu. Faltava algo ali. O som ficou muito “frio”. O processo de digitalização das músicas suprime as freqüências mais altas e as mais baixas, cortadas por filtros passa-faixa. O mesmo álbum, em vinil e CD, apresentava som diferente. O ouvido humano é analógico, funcionando continuamente em um espectro muito grande de freqüências. Outras, mesmo inaudíveis, são perceptíveis e compõe o timbre. O CD introduziu um som sem graça. Venceu na praticidade e na longevidade do meio de gravação. Agora leio a respeito do toca-disco que usa um feixe laser para percorrer os sulcos dos velhos discos de vinil com sensibilidade até maior do que a apresentada pelas antigas cápsulas. Por via das dúvidas, guardo minhas bolachas. Vejo também uma discussão a respeito da IDM – Intelligent Dance Music, completamente eletrônica. Acho uma grande burrice, apesar do nome. Música inteligente é aquela produzida por uma orquestra, com instrumentos reais. Meu pai deve ter escrito coisa semelhante ao ouvir Twist And Shout pela primeira vez. Meu avô chamava isto de Schlangenmusik - música para cobras. Nas “reuniões dançantes” a briga ocorria pela escolha dos gêneros musicais, entre rock, pop e samba. Bandas show com 27 integrantes animam os bailes atuais. Uma cantora, vestindo traje de cowgirl estilizada, um tecladista, um baixo, um guitarrista, dois sopros e mais 21 pessoas, ninguém sabe porque lá estão. Após New York, New York passam para axé music, forró, valsa, ritmos caribenhos, frevo, vanerão, Metallica, boi-bumbá, slip jigs irlandeses, carimbó, tango, tecno, rumba, new age, pagode e, finalmente, todo mundo senta na garrafa ou na pocotó. Perfeito para quem fez o curso extensivo de dança de salão. Pelo menos 1/72 avos (de fração, não de vovô!) dos dançarinos estão contentes em um dado momento. Alguém aí já dançou slip jigs na ponta dos pés?

Paulo Roberto Heuser

20.6.06

Meu Oásis

Meu Oásis

Aos sábados ocorre a tradicional migração dos siris urbanos aos shoppings. Deve ser algum tipo de maré urbana. Estacionamentos apinhados, corredores congestionados e praças de alimentação lotadas com gente que opta pela comida rápida (fast food). Comida rápida gaudéria é o espetinho de gateteto ao primo miado, assado em meio-tonel, exalando um aroma irresistível. MeCêMiau, para concorrer com aquele grupo vindo do norte, da terra do Bill. Em São Paulo há uma comida rápida, de origem helênica, o churrasquinho grego. Conhecido como Gyros, na Grécia e kebab, na Turquia. A versão paulistana de rua é preparada com carne de terceira, já que de quarta não há, enrolada em um cilindro e assada até que a gordura, predominante, amacie o composto, ninguém sabe bem do quê. Servido na rua, entre fatias de pão, como sanduíche, com um molho apimentado, para disfarçar algum eventual gosto estranho. E não é que abriram uma casa de churrasquinhos gregos finos, a MisterGyros? Aí perde a graça, a carne tem procedência insuspeita,o molho é o de iogurte e o assador tem dentes. Por que não criar aqui o SenhorGatos para concorrer com as comidas rápidas ao norte do Rio Uruguai? Primeira franquia da autêntica comida rápida dos pampas. Essencial para o sucesso do empreendimento é a qualidade da carne, com muito sebo. Acompanha caldo de cana maturado. Para aromatizar, fogo aceso com óleo queimado. Deixando de lado as comidas rápidas, retornamos aos hábitos de sábado. Como sou diferente – caminho no sentido horário, no Parcão -, minha prole tende a ser um pouco diferente também. Optamos pelo Mercado Público, aos sábados. Por que aos sábados? Porque temos tempo e o Mercado não pode ser visitado com pressa. Melhor se for à tarde, pois há estacionamento no Largo Glênio Peres e menos gente nos corredores. À tarde os preços dos hortifrutigranjeiros (ufa!) caem, pechinchando dá para fazer ótimos negócios. A mulher faz uma cara um pouco estranha quando chego triunfante com o cacho inteiro de bananas e o saco de 20 kg de rabanetes, comprados de barbadinha. Sempre dá para fazer doce de banana e sorvete de rabanetes. Deste não dou a receita, pois não a tenho, ainda. A primeira parada, no interior do mercado, é uma casa que vende granola e coisas secas. Para quem gosta, e tem coragem, de comer wasabi – raiz forte japonesa -, ali se encontra em pó. Em seguida, pistache para a filha. Após uma conferida nas peixarias, hora de ir ao centro da questão, e do Mercado. Ali se concentram os parques temáticos gastronômicos. Temperos e ingredientes em geral, exóticos ou de Dois Irmãos, trazem a culinária do mundo a Porto Alegre. Há bacalhau Porto ou, pelo menos, do lado do porto. Lá se encontra o legítimo pão alemão tipo Pumpernickel. Este pão exige certos cuidados, no transporte e no consumo, devido a sua peculiar consistência, semelhante à do concreto. Não é produto para quem usa mobília (a da boca). Quedas acidentais podem causar estragos consideráveis. O pão Pumpernickel da Vestfália, redondo e pré-cortado, com serra de diamantes, é tão denso que Ludwig II da Baviera, O Louco, o utilizou nas fundações do Castelo de Neuschwanstein, de pé até hoje. Embutidos artesanais e queijos de qualquer procedência, tudo se concentra nessa área do Mercado. Vai fazer um molho pesto alla Genovese? Nessas bancas encontrará manjericão fresco, pinoles e queijo pecorino. Mais algumas sacolas e podemos sentar para uma salada de frutas com nata ou uma bomba Royal. Refeitos, vamos pechinchar, do lado de fora, nas bancas informais de frutas e verduras. Ali tudo custa um real, inclusive o caixote da banca. Após as 17 horas o preço do quilo de qualquer coisa cai para 50 centavos. Nesse momento é hora de largar as sacolas no carro para entrar de mãos livres na banca de vinhos. Lá podemos escolher vinhos de todo o mundo e todos os preços. Varietais especiais da Serra Gaúcha também tem seu lugar de destaque. Bem como os vinhos para sagu, de garafón. Há um espumante de Linha Pinto Bandeira, novamente distrito de Bento Gonçalves, que se sobressai entre outros. Bom como os franceses por muito menos. Linha Pinto Bandeira é a versão gaúcha da Alsácia e da Lorena. Como na Guerra Franco-Prussiana, ao lá acordar, olha-se para a bandeira na prefeitura (ex-prefeitura atualmente), para saber a quem pertence. Bento é o dono do momento. Pouca gente sabe, mas Porto Alegre tem alguns Oásis. O Mercado Público é um dos meus. Alguém aí tem alguma receita de sorvete de rabanete? O cachorro ainda não conseguiu se adaptar à nova dieta.

Paulo Roberto Heuser

18.6.06

Nanotecnologia

Nanotecnologia

Que a física é coisa para loucos todo mundo sabe. Loucos e mal pagos ainda por cima. Não é de se admirar que minguam os formandos nos cursos de física. Por quê? Porque é difícil? Porque utiliza a matemática como linguagem para demonstrar os fenômenos físicos? Talvez. A própria matemática tem áreas complicadas, como os cálculos diferencial e integral e a álgebra linear. Lembro de uma professora de cálculo, jovem e muito bonita, bem falante e com didática perfeita, fazendo desenhos de cônicas no quadro negro. Olhei para aquela cena e pensei, comigo mesmo, o que teria levado aquela menina a ser professora de cálculo? São estranhos os desígnios do Senhor. Ela estava longe do esteriótipo do professor de cálculo. Tão longe como eu estava do esteriótipo do aluno de cálculo. Após apanhar durante um ou mais semestres para lograr aprovação em Cálculo I, os aprovados deixam os Campi com aquele olhar confiante de triunfo no rosto, de quem venceu, é um dos Eleitos. Passadas as férias, toda aquela confiança se vai, nas primeiras aulas de Cálculo II, ao descobrir um prolongamento do inferno, agora em três dimensões. Findo outro semestre, os sobreviventes gritam de alegria: “cálculo nunca mais!”. Não perdem por esperar a primeira aula de equações diferenciais. Agora o monstro cria vida e temos de ir tirando as casas do caminho dele. Os alunos das ciências exatas e da terra sofrem bastante com essas disciplinas. O que me deixa mais espantado nesta história é o fato de que Newton (Principia, 1687), Leibniz (Acta Eruditorum, 1684) e Bernoulli (1705) – pais do cálculo - escreveram seus trabalhos faz mais de 300 anos! Com parcos recursos de pesquisa. Após mais de três séculos ainda apavora estudantes do século XXI. “Eles enlouqueceram, estão multiplicando letras!” - exclamou um colega. Desde a reforma do ensino deixou-se de estudar introdução ao cálculo no ensino médio, então segundo grau.
Na física não é muito diferente. Apesar de todo mundo conhecer Newton, na mecânica clássica, no ensino médio, a física moderna fica fora dos currículos. E=mc2 é a equação mais conhecida do mundo, do Ushuaia até a Groenlândia. Ao mesmo tempo, seu significado é quase que desconhecido. Convertendo a cruzados novos, significa que podemos extrair enorme quantidade de energia ao fracionarmos átomos. A fissão (quebra) dos átomos contidos em um grama de U235 (urânio enriquecido) libera energia equivalente àquela liberada pela queima de mais de uma tonelada de carvão. Os estudos de Michelson-Morley (1887) e Albert Einstein (1905) abriram caminho para a exploração da energia atômica. Faz mais de 100 anos. O desconhecimento de princípios físicos básicos, como a conservação da massa, da energia e do movimento, facilita em muito a vida dos produtores de filmes cheios de “defeitos especiais”. Este mesmo desconhecimento facilita a venda de produtos milagrosos, como cristais e outras coisas que “emitem energia”, sem recebê-la em outra forma. Se for verdade mesmo, certifique-se de que não são radioativos, ou seja, emitem energia decorrente da transmutação (transformação de um elemento químico em outro). Cobalto e césio emitem energia que podemos absorver, mas não queremos, em situações normais. Na prática não há muito perigo - os materiais radioativos que podem causar danos biológicos importantes são muito mais caros do que os materiais miraculosos. Estes são placebos, provocam efeitos psicossomáticos decorrentes da fé neles. A ignorância em física se torna mais importante no que diz respeito à mecânica quântica. As leis da física clássica, ensinada no colégio, nem sempre se aplicam àquela. Para complicar mais o problema surgiu a nanotecnologia, que cria aplicações, em diversos ramos da ciência, para os fenômenos que cercam coisas de tamanho medido em bilionésimos de metro. Elementos e substâncias que apresentam determinadas características físicas no mundo macro, apresentam outras no mundo nano. O ramo de aplicações da nanotecnologia é enorme, especialmente nas áreas de materiais e medicina. Nesta ciência há muita esperança no desenvolvimento de novas técnicas de tratamento do câncer sem dano aos tecidos saudáveis. Não se espante se, em poucos anos, o presente de Natal preferido for um par de botas e luvas para escalar paredes, feito lagartixa. Mestres, voltai aos bancos escolares!

Paulo Roberto Heuser

15.6.06

O Elevador

O Elevador

422 horas. É o tempo mínimo que devo ter passado dentro dos elevadores do prédio no qual trabalho. Conto apenas as entradas e saídas. São 17 dias! Certo, a ascensorista passa muito mais tempo. É o trabalho dela. Com todas aquelas histórias interrompidas por gente que sai exatamente no epílogo. Lembra de quando os filmes tinham epílogo? Pois nos elevadores desfilam histórias sobre histórias, sem preâmbulo e sem postâmbulo, apenas com o meio. As iniciadas no térreo, ou no último andar, tem apenas início. Dificilmente tem somente um fim. No elevador as pessoas se revelam. Tímidas, expansivas, nervosas, claustrofóbicas, irritadas, atrasadas, não há como disfarçar. Não há janelas para olhar para fora. Os claustrofóbicos mostram toda educação do mundo na entrada, deixando senhoras passar, dando o lado, etc. Fechada a porta, iniciado o movimento, olham fixamente para o indicador dos andares. Quando a porta finalmente se abre, no seu andar, saem o mais rápido possível, pisando sobre crianças e velhinhas, se necessário. Os mais tímidos trazem jornal, uma revista, a propaganda do sindicato ou uma receita de remédio para ler, evitando assim contato visual com os parceiros de viagem. Os expansivos entram no elevador, escolhem uma vítima e dão um enorme tapa nas costas, bradando: “- E aí cuiudo!” Há uma enorme coletânea de piadinhas, de bom ou mau gosto, utilizada pelos expansivos. Coisas sobre o peso da consciência, encolher a barriga para fechar a porta, como está a temperatura aí em cima, etc. Após 422 horas conheço todas. Neste aspecto já me sinto meio cúmplice das ascensoristas. Conhecemos também as respostas padronizadas. “Rolhas” são os passageiros que, apesar de descerem nos últimos andares, insistem em ficar junto à porta. Há uma subcasta deles que é a pior: usam fones de ouvido e não ouvem os pedidos de licença. Constrangedores são os Don Juan que encaram fixamente o alvo do seu desejo. Lembro de uma ascensorista excepcionalmente bonita que teve de ouvir a clássica: “o que uma moça como você faz num elevador como este?” Desnecessário falar dos resfriados que, entre espirros e tossidas, contam que “lá em casa tá todo mundo de cama!” Os apressados e atrasados soltam a tradicional observação: “este é o das 08h15?” Nos dias de chuva há mico certo. O mais comum é a goteira do guarda-chuva no pé do vizinho. O mais raro, e mais pitoresco, é a abertura acidental de um guarda-chuva automático no interior do elevador lotado. São aqueles comprados sob as marquises, aos gritos de: “Déi rreal, tomático o guarda-chuva!”. A garantia cobre uma abertura e um fechamento - da demonstração -, o resto é por conta e risco do freguês. As ascensoristas também poderiam ser classificadas pelo seu comportamento. São uma espécie de aeromoça sem o sorriso de arame destas. Não é uma comparação muito boa, nos aviões há janelas, nem que seja para ver tempestades, e não há escalas a cada 18 segundos. Além disto, ascensoristas pilotam o elevador. Há as joviais, as simpáticas, as carrancudas, as curandeiras, as conselheiras sentimentais, etc. Estas últimas conseguem dar aconselhamento entre andares. As curandeiras receitam infusões, cataplasmas e procedimentos ritualísticos diversos aos resfriados supra citados. Na segunda-feira passada, fiquei preocupado com uma senhora que retribuía o agradecimento na saída, durante mais de 20 anos, com um “não por isso”. Subitamente, nesse dia, trocou por um “por nada senhor”. Aquilo me pegou desprevenido, fiquei sem saber como agir. Apenas saí do elevador. Vou conseguir me adaptar, com certeza. Ops, meu andar. Com licença!

Paulo Roberto Heuser

Um Estudo Em Vermelho

Um Estudo Em Vermelho

Neste chuvoso feriado a cama pareceu mais aconchegante do que nunca. Algum tipo de magnetismo me prendia ali. 11 horas, panela fora do fogo e barriga vazia. Entro na cozinha tentando achar inspiração para algum prato que contraste com o dia horrível. Tem de ser algo que não me obrigue a sair de casa, nem que seja só até o armazém do Sérgio, ou pior, até o supermercado. Examino a geladeira e a despensa, opto pela massa com um molho bem vermelho. Ainda há lingüiça calabresa na geladeira, excedente de um arroz de moçoila remediada preparado na véspera. Maravilhosa calabresa, por sinal, cortada a faca, quase sem gordura, feita na linha Dezenove, em Carlos Barbosa. Comprada no Mercado Público, naturalmente. Na TV toca o hino de Trinidad e Tobago. Curioso, se parece com um mini hino inglês. Não combina com um país caribenho. Panela no fogo, um fio de azeite de oliva puro, a calabresa cortada em fatias ali mergulha. Meia cebola picada, dois dentes de alho e duas folhas de louro. Sem pimenta vermelha, já há na calabresa. Um pouco da do reino apenas. Reduzido o refogado, meio cálice de vinho tinto até reduzir novamente. Vá lá, um cálice para o refogado e outro para mim. É justo e iguala o pH do cozinheiro com o do molho. A prova do vinho, antes de colocá-lo na panela, elimina o risco de estragar o refogado com um ruim. Se não há certeza absoluta quanto á qualidade do vinho, paciência, outro cálice para contra-prova. Aprovado finalmente, adicionado e reduzido, entra a massa de tomate, muita. Vermelho e espesso o refogado borbulha. Entra uma cenoura inteira para corrigir a acidez. Um pouco de água apenas para ajustar a espessura, não demais. Apurado, provado e corrigido o sal, uma colherinha de açúcar para corrigir a acidez. Cor maravilhosa, textura perfeita, hora dos aromáticos. Um ramo de manjericão fresco. Onde o consegui em pleno feriado, morando em apartamento, sem sair de casa? Ora, na geladeira, onde mais? Mantém-se por vários dias. O ramo cozinha por três minutos, não muito mais, para não perder o aroma. Molho pronto, escolha da massa. Massa longa, bavette. Há penne, mas acho que perde a graça comer massa curta com esse molho. Molhos assim pedem massa longa. Por que não uso spaghetti? Porque não o há em casa. O bavette é a armadilha para os incautos, por ser chato e grudar com facilidade. Não dá para descuidar no cozimento. Cozido, escorrido e misturado com o molho imediatamente, leva azeite de oliva virgem extra sobre tudo. Parmesão ralado na hora completa o prato. Chega à mesa, ansiosamente aguardado, trazendo luz e calor para este dia tão lúgubre. Servido o vinho, a massa tinge de vermelho o prato fundo branco. Conversar? Muito, após as primeiras garfadas, enrolando a massa, auxiliado pela colher. Um dia feio pode ter muita cor também. Improviso um guardanapo de mafioso, aqueles de prender no colarinho. A opção é vestir camisa vermelha. É humanamente impossível safar uma camisa branca de ter algumas manchas vermelhas. Há quem use massas curtas, considero isto um truque baixo. O desafio das massas longas é irresistível. Protegido pelo meu elegante guardanapo, feito com papel toalha, saio ileso. E o molho vermelho ilumina nosso almoço. Buono Appetito!

Paulo Roberto Heuser

13.6.06

Das Frustrações II - A Poesia

Das Frustrações II – A Poesia

Além da frustração com a música, há aquela com a Poesia. Não chega a ser uma frustração completa, pois sei ouvir música - bem inclusive - só não sei produzi-la. No caso da poesia, não consigo sequer lê-la e, sem entendê-la, como fazê-la? Isto me fez rir, pelo menos. Por mais que eu tentei, aquilo não parecia fazer sentido. São como textos de psicologia, onde se fala, fala e fala e, no final, qual era o assunto mesmo? Devo ser burro demais para entender dessas coisas. Como técnico me dou bem com as coisas mais diretas, menos abstratas e nada metafóricas. Sou pouco artístico. Confesso que o tal de Camões me entusiasmou pela sua biografia. Se filmarem o Duro de Matar Zero, troquem o Bruce Willis pelo Luiz Vaz de Camões e dramatizem sua biografia. Se é que é possível dramatizar mais aquilo. A façanha de nadar usando um só braço, salvando o livro com o outro, enquanto a bem amada se afoga, supera qualquer façanha heróico-masoquista do detetive John McClane – do filme. Caolho, presidiário, miserável, viúvo, pensionista do INSS de D. Sebastião, Camões foi o maior coitado da história. E o maior poeta português (explica o estilo de natação). Talvez seja este o segredo! Não sou tão miserável, apesar de contar com apenas um dos olhos, como ele. Também não o furei em cactos e nado usando os dois braços. Portanto, não posso entender a poesia dele. Isto parece mais lógico. Confesso que uma vez tentei. Escondi às sete chaves o resultado. Hoje ouso mostrá-lo. Foi um minúsculo poema apenas. Não se preocupem se não entenderem. Tampouco eu.

Esdrúxulo Delírio

Anáforas opõe-se às epístrofes
Aliterações destas palavras próximas
Cavalgamento separa’s máximas

Contagem estranha de sílabas
Torna estes versos esdrúxulos

Elisão fenômeno poético
Funde vogais átonas
Apena’s idênticas

Das sinalefas leva sinérese
Hiatos em ditongos, juízo célere

Inversão pelo hipérbato
Transferência pela metáfora
Solto risos espasmódicos
.
Podem, como eu, não ter entendido nada, mas é pura técnica! Prometo nunca mais tentar. O meu Bife, no piano, ficou melhor. Mas, pelo menos tentei. Sei lá, se ao menos a Bruna Lombardi o lê-se...
.
Paulo Roberto Heuser

Das Frustrações I - A Música

Das Frustrações I – A Música

De frustrações e arrependimentos todos vivemos um pouco. Alguns, muito. Prefiro me incluir entre os primeiros. Na categoria das frustrações, meu Oscar vai para a música, um Grammy, portanto. Sempre gostei de música. Nasci e cresci numa casa onde a música esteve presente. Na família da minha mãe todo mundo arranhava algum instrumento, predominando o violino. A família do meu pai era mais dada aos gramofones e seus sucedâneos. Incluo-me no segundo grupo. Juro que tentei aprender música. Pedi e ganhei um violão, novo, laqueado em preto. Coisa fina. Fui estudar com uma conceituada professora de teoria e prática. Hoje vejo que a culpa pelo meu fracasso não foi somente da minha inaptidão musical. Mesmo idiotas musicais conseguem aprender alguma coisa. Eu não. Fui aprender a tocar violão nas intermináveis férias de verão. Minha rotina iniciava às 8 horas com treino de natação, no clube. Após o almoço, às 13h30 jogava tênis, até às 16 horas. Às 17 horas, treino de atletismo – arremesso de disco. Banho tomado, às 18 horas, aula de violão. A meia-luz e o silêncio de um casarão antigo substituíam a luz e o calor de verão do mundo ao ar livre. Enquanto aguardava a professora iniciar a aula, o tic-tac de um relógio de pé, de carrilhão, começava a agir sobre o meu sistema nervoso central. Gente, se alguém sofre de insônia, compre um desses relógios, a cura é certa. A aula iniciava com o aprendizado de solfejo. Após um dia de braçadas, raquetadas e arremessos, era tudo que eu pedi ao Tio Lá De Cima. Para quem não conhece, solfejo é uma técnica para se obter a afinação correta, ou algo que o valha. Adrenalina pura! O livro, Solfeo de Los Solfeos, com capa cinza-macrobiótico, foi recheado com desenhos de personagens do conto da cigarra e da formiga, desenhados sobre uma série de linhas horizontais feito varais estilizados. Das sete notas musicais fiquei no dó. Ou melhor, morri no dó. Foi de dar dó mesmo. Tentava imitar aquele dóóóóó.... - a mão em postura de dança egípcia. Dormia no meio. De dar dó era a cara da professora, assistindo ao bizarro espetáculo sem conseguir assistir o aluno. A única coisa que aprendi, além de um pedaço do dó, foi dedilhar uma música que falava de um tal de Miguel a navegar e tinha Aleluia no final do estribilho. Nem para o Parabéns a Você deu. Aos insones recomendo também aquele aparelhinho, chamado metrônomo – viu, google também é cultura -, usado para marcar o ritmo. Faz um tac-tac com período ajustável através de um peso no pêndulo. Você pode ajustar para dormir mais rápido ou mais lento. É um contador de carneirinhos pendular automático. Nunca tive aulas de piano, mas aprendi a tocar o Bife, com uma só mão! Talvez um dia volte às aulas de música. Quem sabe não chegarei ao mi ou até um sol?
(continua)
Paulo Roberto Heuser

12.6.06

Xampu, Depressão e Futebol

Xampu, Depressão e Futebol

Leio hoje que o laboratório Glaxosmithkline lançou o primeiro antidepressivo de inverno, cuja substância ativa é a bupropiona. Quem consegue soletrar o nome do laboratório, de olhos fechados, leva um suprimento vitalício de laxante. Astigmáticos não conseguem sequer ler o nome. Parece que um monte de agás e de kás fica andando de um lado para o outro. A indústria farmacológica surpreende a todo instante. Segmentaram a depressão de acordo com as estações do ano! Nos países de clima temperado essa receita pode funcionar razoavelmente bem. O sujeito faz em estoque compatível com cada estação. Podem pintar as pílulas conforme o clima, vermelho para o verão, azul para o inverno, etc. Para evitar daltônicos depressivos cantando: “Y los libres del mundo responden; !Al gran Pueblo Argentino, Salud!” em cima de um poste, no meio da torcida brasileira, é recomendável escrever o nome da estação no comprimido. Aqui a coisa pode ser mais complicada. Melhor carregar no bolso um conjunto quatro estações. Inverno para o início da manhã, primavera para o meio dela, verão para o almoço e outono à tardinha. Quem sabe não inventarão algo que sirva para as quatro estações, em um só comprimido? Seria um golpe de gênio! A criatividade do homem é infinita. Faz-se papel higiênico com sabor e sabão para lavar roupa que nos transporta para uma linda mansão branca, cercada por um jardim fantástico e habitada pela família mais bonita e feliz do mundo. Basta comprar uma caixa de 1 kg. Imagine só o que a caixa de 2 kg proporciona. Ora, duas casas, em dois jardins, com duas lindas famílias e o dobro da felicidade. Parece bobo! Adoro mesmo comprar xampus (shampoo ficava mais bonitinho), os encontro para cabelos ressecados, oleosos, gordurosos, sebentos, seborréicos, quebradiços, com caspas, tingidos, com pontas múltiplas, em queda livre, com nós e com piolhos. Para os carecas também. Só não encontro xampu para quem tem, como direi, apenas cabelos. Meu sonho é encontrar um cujo rótulo traga “Xampu Para Cabelos”. Apenas cabelos. Comecei a tomar banho usando óculos. Não porque não enxergue a torneira ou o sabonete. Alguém teve a brilhante idéia de começar a escrever xampu e condicionador, nos rótulos dos ditos, usando Times New Roman tamanho seis. Não consigo ler os rótulos para descobrir quem é quem. Tudo é perfumado e foi-se há muito o tempo em que o condicionador era padronizado na cor rosa. Durante um tempo eu peguei cada um daqueles 17 tubos deixados dentro do banheiro e passei um pouco do conteúdo nos cabelos. Até encontrar algo que fizesse espuma. Fazendo espuma, era xampu. Depois de algum tempo descobri que as mulheres da casa guardavam o xampu contra pulgas do cachorro junto aos outros. Apelidaram-me de garoto fróntiláine. Desde aí passei a tomar banho usando óculos. Voltando ao assunto original, após este pequeno devaneio, leio também que a FDA – órgão federal americano de controle das drogas - considera a depressão grave quando alguém apresenta cinco de nove sintomas durante pelo menos duas semanas: abatimento, perda de interesse, transtorno de peso, insônia, agitação, fadiga, sentimentos de culpa, dificuldade de concentração e pensamentos suicidas. Amanhã o Brasil jogará o primeiro jogo da Copa. Dependendo do resultado, precisaremos de muita bupropiona. O que não nos falta é o genérico nacional, a burropropina. Bom jogo!

Paulo Roberto Heuser

Subversivo aos 11!

Subversivo aos 11!

É verdade, descobri ser um subversivo aos 11 anos de idade. Era escoteiro e fui detido enquanto tentava introduzir material impresso suspeito nos pavilhões da FENAF – Festa Nacional do Fumo de 1966, em Santa Cruz do Sul. Fui incumbido de levar o material para ser distribuído durante um desfile de carros alegóricos. Interceptado por dois soldados quando passava pelas roletas carregando o pacote, fui levado para um barracão de madeira no interior do parque, hoje da Oktoberfest. Após um interrogatório que deve ter durado 20 minutos, mas que pareceu durar 20 horas, um tenente entrou no barracão, ouviu o relato de um sargento, examinou o material suspeito e olhou ao redor com a expressão de quem dizia: “O que fiz para merecer isto?”. Deparou-se com um escoteiro completamente apavorado, detido por carregar panfletos contendo o programa do desfile de carros alegóricos da FENAF, que meu pai organizara. Ele fez parte da comissão organizadora da festa. Até aquele dia eu nem sabia o que era um subversivo. Não deixa de ser curioso o fato de alguém deter um escoteiro, membro de uma organização paramilitar, considerada de direita na época, como elemento subversivo. Estranhos tempos aqueles. Alguns anos mais tarde, um amigo teve a brilhante idéia de ir ao baile de carnaval, no Corinthians Sport Club, vestindo uma farda camuflada do exército. Se não bastasse, tinha o cabelo raspado porque passara no vestibular da UFRGS. Naqueles tempos, tantos os cabeludos como os carecas eram subversivos em potencial. Os primeiros o eram porque lembravam Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. Dos últimos, não sei o porquê. Por parecerem diferentes, reacionários talvez. Em todo caso, o amigo foi gentilmente convidado, por uma patrulha da PE, a trocar a noite entre confetes e serpentinas pela noite no quartel, discorrendo sobre suas crenças políticas. Uma das diversões do pessoal que estudava química, no segundo grau (ensino médio), era a construção de foguetes. Participei de um grupo que conseguia elevar apenas pedaços, já que derretiam, sem sair do chão, ou explodiam. Algo como Werners Von Braun que não deram certo. Não como fogueteiros. Lembre-se que não havia Google nem http://www.feiradeciencias.com.br/. Era tudo muito empírico. Os testes de combustível eram realizados no antigo Campo dos Eick (creio ser um nome informal), próximo a Casa Textor. Esse campo era tomado por mato e pés de mamona. A rua que hoje liga a Rua Marechal Deodoro à Rua Tomás Flores estava sendo aberta. Enterramos no leito da nova rua uma lata de aerosol, sem a válvula, contendo o combustível de teste. Papel higiênico recheado com pólvora preta fez às vezes de rastilho. Temendo nova explosão, nos escondemos atrás de um barranco. Ignição, não explodiu! Não logo, pelo menos. Após uns dois segundos iniciais de sucesso, levantamo-nos para ver melhor. Vimos pedras, terra e mamonas voando para todos os lados, após violenta explosão. Saímos correndo como loucos. Na debandada fui ultrapassado, em meio a fumaça, por um aluno interno do colégio que apresentava uma deficiência em uma das pernas. Ele tinha múltiplas razões para correr mais do que todos. Acabara de detonar uma involuntária bomba, era cabeludo, barbudo e pertencia ao grêmio estudantil do colégio. Um verdadeiro prototerrorista. O diretor do colégio tentava barrar o fornecimento de produtos químicos, pelas farmácias, falando com os proprietários. Para burlar o boicote íamos, um de cada vez, a diferentes farmácias. Enxofre era conseguido argumentando que seria usado como remédio para o estômago do vovô. Carbono se comprava na Ferragem Mailander, defronte ao Quiosque da Praça, na forma do insuspeito Pó de Sapato (negro-de-fumo). A todo custo deveria ser evitado um laboratório de análises em especial, pois o proprietário era professor de química do colégio. A mistura dos compostos era feita em locais como o orquidário do meu pai. Realmente somos sobreviventes. Apenas um dos fogueteiros, hoje médico e professor universitário em Porto Alegre, resultou ferido, sem gravidade, sem todos os pêlos do rosto também, em decorrência de uma explosão. Nessa época emprestei, para alunos internos do colégio, um radiotransmissor, construído pelo meu irmão. Assim foi fundada no internato, para desespero da direção, a Rádio Interno Livre. As freqüências e os horários de transmissão eram passados, de aluno para aluno, durante o dia, dificultando a localização através de equipamentos de busca. Tempos realmente estranhos. Estranhos, porém inesquecíveis.

Paulo Roberto Heuser

9.6.06

Constantinopla Não Caiu

Publicada pelo jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 20/06/2006, coluna Opinião:
.
Constantinopla Não Caiu

Lendo os jornais da manhã (expressão do tempo que os havia também à tarde), imaginei algum repórter daquela afamada revista masculina correndo atrás da loira da demolição da Câmara Federal. Daria a capa perfeita para um dos próximos números. Assim como no passado o foram a fogueteira da copa e a caminhoneira não me recordo do quê. Seria a do MST? Imagine, ela na capa brandindo uma barra de ferro com concreto na ponta, mostrando a bela tatuagem, enquanto destrói um computador? Arriscando uma pequena paródia de Para Não Dizer Que Falei de Flores, do genial Geraldo Vandré: decididos cordões fizeram da tatuagem seu maior refrão, acreditando na loira vencendo o canhão . A invasão a Câmara Federal conseguiu obscurecer até a cobertura, pela imprensa, das bolhas do Ronaldo, às portas da Copa! Quem ainda se lembra das ambulâncias? Coisas de um passado longínquo, mais de uma semana, com certeza. Sempre procuro buscar paralelos aos fatos do cotidiano na história ou na literatura. Acredito nas funções periódicas que levam a história a se repetir, adaptada aos tempos. O cinema americano reduz progressivamente o período desta função. Em breve deverão lançar o Código da Vinci 3. O 2 não ficará pronto à tempo. Fiquei tentado a comparar a invasão da Câmara Federal com a Tomada da Bastilha. Não deu certo, pois lá foi o povo urbano, aqui foram os campesinos. A Queda de Constantinopla (1453), capital do Império Bizantino, quem sabe? Vejo dois grandes senões: primeiro, nossa capital do Novo Império Bizantino não caiu. Segundo, o tal de Maranhão não faz jus à figura do glorioso Maomé II cavalgando seu corcel branco. Este, a titulo de esclarecimento, é um cavalo, não é um carro velho. Tanto não faz jus que foi preso e nossa Nova Constantinopla retomada. O resto até que combina razoavelmente bem. Veja o caso do automóvel vermelho, mimo que seria sorteado entre os patrícios neobizantinos, utilizado pelos exércitos invasores como aríete contra os portões da Nova Constantinopla. Pesa em torno de 800 kg, apenas um pouco a mais do que os 550 kg de peso das balas do terrível canhão turco que pôs abaixo a amurada da Constantinopla original, hoje Istambul. No poder de destruição, se igualaram. A fúria mostrada pelos 537 campesinos ou não, ao adentrar muros, comparou-se àquela mostrada pelos
70.000 soldados de Maomé II. Atrás dessas tropas aguardavam mais 50.000 soldados, estes de elite. Para a sorte e felicidade dos neobizantinos, o que seguiu Maranhão foi a Polícia. Graças ao Aldo, que se rebelou, e fez o que Constantino XI não conseguiu, expulsar os neo-otomanos. Ah, que infame trocadilho! Ao olhar para nosso dublê de Maomé II, o vejo também como um personagem da literatura, uma espécie de Dom Quixote que faz estragos. O vizinho do Dom Quixote (o de Cervantes), Sancho Pança, foi um agricultor engambelado pela conversa delirante do cavaleiro. Assistimos às andanças de Dom Quixote e 536 Sanchos Panças, importados das mais distantes e variadas terras. Maranhão se vê como um subcomandante Marcos do EZLN – Exército Zapatista de Libertação Nacional. Pelo menos a logística foi semelhante. No México, em 1994, e na Nova Constantinopla, em 2006, foram de ônibus. Toda aquela gente recolhida ao estádio Nilson Nelson lembrava o Estádio Nacional, na Santiago do Chile de Pinochet, só que de lá muitos não saíram, vivos pelo menos. Não chega a ser segredo o nível de (im)popularidade do Congresso Nacional. Há uma forte campanha, a favor do voto nulo, visando renovar o plantel da casa. Após a invasão da Câmara dos Deputados, talvez caia a ficha de Suas Excelências. O que acontecerá se tentarem mostrar serviço, a qualquer custo, às portas de eleição? Se toda essa lambança que aí está foi feita enquanto ocupados com seus folguedos de autofagia, do que serão capazes quando descobrirem o Brasil? Bem, mudemos de assunto, vamos à Copa do Mundo.

Paulo Roberto Heuser

6.6.06

Churrasco à Gaúcha (Parte II)

Churrasco à Gaúcha (Parte II)

A discussão, sobre o que é o churrasco autêntico, é interminável. Há até uma Lei Estadual, de No. 11.929, de 20 de Junho de 2003, que define o que é churrasco. Este é o único prato que pode ser preparado por quem não sabe cozinhar. Segundo a FAO, em 2002, 97,56% dos churrasqueiros eram homens (senão seriam churrasqueiras!). Destes, 91,13% não sabiam preparar nada além do churrasco. Os demais sabem preparar pão com alho e cebola no espeto. Conforme a lei, supracitada, basta colocar sal grosso e assar sobre brasas de carvão ou madeira. Até agora não consegui entender por que as mulheres, em geral, não sabem assar churrasco. Creio em um complô mudo, para não ferir o ego masculino. Elas apenas fingem que não sabem assar. Pode imaginar no que transformariam aquele ambiente sagrado? Manteriam a churrasqueira limpa. Trocariam o corno, dependurado na parede, por um quadro de flores e o cocho de madeira encardida pela travessa de aço. Lavariam as mãos, espetos e panos antes de utilizá-los. E o pior: temperariam a carne, com sal fino! Para o desespero do índio velho, a canha brava, com fumo em corda, daria lugar ao refrigerante light de cola, com limão e espumante Asti. A cerveja seria substituída pelo vinho tinto. Assim como há enochatos, em relação ao vinho, há os assadores chatos, em relação ao churrasco. Conhecem carne melhor do que o açougueiro. Utilizam facas que não podem ser lavadas – perdem o fio, degustam sal grosso e inventam estranhos cortes. Viram carnes ao avesso e adoram assá-las, por horas a fio, até que se desmanchem. Os paranaenses copiaram um antigo rolete, de tortura romana, e se especializaram em dissolver costelas inteiras. Os carvões, de acácia negra e de eucalipto, julgam coisa de amador. Exigem toras de Pau Trembaúva, dos dormentes da extinta ferrovia Madeira-Mamoré. Amam o ritual. Sobre o acendimento do fogo, escrevem livros. Os mais puristas exigem que as toras sejam incendiadas com restos da Chama Crioula de 1947, guardados numa pira particular. Admitem o uso de fósforos, em casos excepcionais. Acendedores artificiais, papel de jornais e álcool são heresia pura - dão gosto à carne. Nenhuma churrasqueira lhes agrada, constroem uma nova, sob medida, para cada churrasco. Estudam técnicas complicadas para salgar a carne. Uns salgam 48 horas antes. Outros, dois dias depois. Ao degustar a carne, conseguem identificar a raça, o sexo, a idade, o pasto, o veterinário, o açougueiro e a origem do sal ingerido pelo defunto. Salada, nem pensar, coisa para ruminantes. Não ligo muito, posso estar na minha churrasqueira, salgando a minha carne, com o meu sal, assando como bem entendo, observado pela minha cadela!

Paulo Roberto Heuser

Churrasco à Gaúcha (Parte I)

Churrasco à Gaúcha (Parte I)

Domingo preparei um churrasquinho, observado pela cadela, fiel escudeira nessas horas. Numa casa onde se é o único homem, só os cães, seja qual for o sexo e a raça, quebram a solidão desse ato. Enquanto espetava um pedaço de vazio, fiquei pensando na difusão do churrasco pelo País. Meu primeiro contato com um churrasco alienígena ocorreu em São Paulo, em 1977 creio eu. Jantava no Hotel Normandie, na Ipiranga com Santa Ifigênia. Chacrinha e sua equipe se hospedavam lá. Era lugar comum tomar café da manhã ao lado do Velho Guerreiro, Aracy de Almeida e Pedro de Lara. Olhando de perto as Chacretes, percebi o milagre operado pelas meias e pela maquiagem da TV. No cardápio, um item chamava a atenção: churrasco à gaúcha. A curiosidade me levou a escolhê-lo. Já reparou como o tempo não passa, quando se janta sozinho, em restaurantes de hotéis? Chegado o prato, perguntei ao garçom: "O que é isto?". "Churrasco à gaúcha", respondeu. Em São Paulo, faça como os paulistanos, pensei. Resolvi encarar o curioso prato. Chuleta (bisteca) grelhada, guarnecida por batatas fritas, farofa e arroz. As batatinhas até que estavam boas. Em outra incursão noturna, pelo centro da Paulicéia cada vez mais desvairada, me deparei com uma autêntica churrascaria, bois pintados na fachada, roda de carroça na entrada, garçons pilchados, com cara de gaudérios. Encontrei costela (espetada!) no cardápio e pedi salsichão, como entrada. A imagem da churrascaria desabou quando o garçom trouxe um espeto com três fatias grossas de uma imensa mortadela. Nosso conceito de churrasco era, e de certa forma ainda é, completamente diferente daquele vigente ao norte do Mampituba. Como dizem os cariocas: “xurraxco xem fritax não é xurraxco!” Depois, em São Paulo, fui conhecer casas que servem carnes especiais, nas proximidades do Largo do Arouche, na época, hoje na Alameda Santos. Um vaqueano, dos quatro costados, diria que aquilo é coisa de fresco! O preço, coisa de magnata fresco! Carne assada, sobre o calor da pedra, sem fumaça, não é coisa de macho. Outro tipo de churrascaria surgiu no Rio de Janeiro, com incríveis bufês, espalhando-se rapidamente pelo Brasil, inclusive nesta terra do Borghetinho. Nas versões lá de cima, lagostas ostras, vieiras, polvo e outras tantas iguarias da culinária campeira (?). As daqui, um pouco mais simples, mesmo assim, um verdadeiro festim. Sinceramente, após uma entrada de carpaccio, queijo granna padano, cogumelos frescos, azeitonas pretas, alcachofras e metade do estoque de uma loja de especiarias, refugo a carne de churrasco. Ali a carne virou acompanhamento. Uma dessas churrascarias oferece um colete de Playmobil, para aparar eventuais pingos da carne. Nas fotos fica uma maravilha, falta apenas o cabelo preto cortado em forma de serra. O vaqueano só não dá de relho nos viventes porque não consegue parar de rir. (Continua...)

Paulo Roberto Heuser

5.6.06

Estranhos Esportes

Estranhos Esportes

A profusão de canais estrangeiros, na TV por assinatura, nos traz imagens de esportes exóticos, como pelota basca e beisebol. O golfe e o tênis, inacessíveis à maior parte da população, ali estão, na telinha. Não consigo encarar como esportes, alguns assim classificados. O automobilismo e o boxe, por exemplo. O primeiro está mais para um jogo tecnológico. O segundo, resquício de antigas práticas de guerra, está mais para a selvageria. Talvez o esporte mais estranho já criado, findos os torneios de futebol chutando crânios, seja o chess-boxing, combinação de assaltos de boxe, de um minuto, intercalados com partidas de xadrez, de quatro minutos. Que tipo de jogada faz alguém que foi surrado na cabeça? Ataca o oponente (não o rei) com uma "voadora"? Esporte inquestionavelmente democrático é o futebol. Basta uma área, de qualquer tamanho, e algo semelhante a uma bola, para sair jogo. O número de jogadores pode ir de dois a qualquer coisa que o campo permitir. Com o excesso de cotas publicitárias vendido, para a cobertura da Copa do Mundo, não apenas os jogos, mas também o cotidiano dos atletas e da comitiva, são acompanhados de cima. Sabemos quanto arroz e feijão cada jogador comeu, se a mãe do craque mandou doce de jaca, se urinaram contra ou a favor do vento e outros fatos importantíssimos do cotidiano da Seleção. O bom disso tudo é que acabamos conhecendo os locais, por onde esta passa, e seus costumes. Descobrimos com quantas vacas se faz um Rahmschnitzel! Quem conseguir responder o que é um, concorre ao sorteio de uma (ou será um?) Kleinenfrischgeschlüpftenfedrigenkühen. Chego a babar, só em pensar! O esporte tem o lado positivo, o do preparo físico, e tem um lado negativo, o da tensão e do estresse que acomete o atleta. Ultimamente tenho praticado um jogo automobilístico que não faz bem, à minha saúde. O jogo exercita a capacidade de reação às situações de perigo, exigindo extrema habilidade. O jogador vê-se sentado ao volante de um carro. Afivela o cinto, ajusta espelhos e vira o arranque, tudo completamente real. A cada fase superada, crescem os desafios. Na fase Quintino, sem aviso nenhum, as três pistas se transformam em duas, a da esquerda se transforma em um prédio. Um pouco adiante, na mesma fase, os desafios são os semáforos escondidos atrás de galhos de árvores. Na etapa Protásio, o desafio principal é desviar dos ônibus que entram no, e saem do, corredor de ônibus. Desviam subitamente, levando de roldão quem estiver no caminho. Em todas as fases, os ônibus arrancam no sinal vermelho. Superada a fase Osvaldo, relativamente tranqüila, segue-se a Túnel e a Elevada. Nesta, a dica é seguir pela esquerda. Os ônibus, trafegando pela direita, efetuam bruscas mudanças de pista, aleatoriamente. Quem aí ainda estiver vivo, enfrenta uma das fases mais difíceis, o X da Rodô. Não se trata de comer um cheeseburger em algum trailer da Rodoviária. O desafio é cruzar entre ônibus, caminhões e carros, todos andando em diagonal, da esquerda para a direita, e vice-versa. Quando você acha que a fase foi superada, há novo estreitamento de pista, na entrada da fase Mauá. Quem completa todas fases tem direito à seqüência chamada Volta. Seguindo a moda criada pelos jogos de videogame criminosos, como GTA, infrações de trânsito vão sendo cometidas a cada instante. Carros na contra-mão, sem iluminação, motoristas falando ao telefone celular, pedestres imprudentes e, desafio supremo, motoboys ultrapassando pela direita. Táxis são desafios importantes, pois viram em todas direções, sem utilizar as luzes indicadoras. Suspeitei de uma economia de lâmpadas. Ontem, um motorista comentou, de passagem, que este seria o oitavo carro que comprara, equipado como uma misteriosa alavanca, no lado esquerdo do volante. Não conseguia entender o porquê de colocarem ali uma alavanca, apenas para ligar uma luzinha, em forma de seta, no painel. Em algo, este jogo difere do GTA, lá a polícia vem atrás. Aqui você pode morrer.
Paulo Roberto Heuser

1.6.06

Quem Será Sérgio Barata?

Quem Será Sérgio Barata?

Troquei de operadora de celular. Troquei porque encontrei um plano que me pareceu vantajoso. Com a troca de operadora, troquei também os aparelhos móveis celulares. Escolhi um modelo funcional, como telefone, bem entendido. Apesar da tentação tecnológica, continuo usando o aparelho móvel para comunicação, falada ou escrita. Está certo, deve ter mais umas funções, como agenda e alerta vibratório. O teclado de um celular sabe se apresentar um tanto complicado para quem não tem dedos de fada, nem é dotado de neurônios que associam, instantaneamente, uma tecla com quatro letras. Geralmente enfiamos novas entradas, naquelas agendas, enquanto conversamos com alguém, pelo mesmo aparelho(?). Após alguns meses - sim, sou conservador, não troco o aparelho todos os meses -, não consigo me lembrar de quem era o A, o X, o GRN#3 nem do Sérgio Barata. Pois é, ao passar a agenda, do aparelho velho para o novo, me deparei com o Sérgio Barata. E havia dois números de telefone, alguém importante com certeza. Comentei com alguém que me deu a pista. Ao pegar uma dica, com um colega, sobre desinsetização, este me passou o primeiro nome da pessoa que a faria. Acrescentei Barata para associar com o serviço. De pronto descobri também quem é Cardoso Lavadora! Minha filha escolheu outro modelo, um prodígio pirotécnico-sonoplástico. O aparelho já causa espanto pelo tamanho, semelhante ao de um ovo de galinha caipira (aqueles sem hormônios). Quando se abre o flip, soam trombetas e clarins, transformando aquele ovo numa verdadeira fanfarra móvel celular. Ao fechá-lo, nova fanfarra, com outra melodia. Do cardápio de sons, podemos escolher marchas, tangos, rock, boleros, sambas, pagodes, mugidos, miados, zurros e outros ruídos estranhos. Assisti, faz alguns anos, a um comercial português, de uma operadora de telefonia móvel, encenado em algum lugar que, corrijam-me os d’além-mar, deve ser o Baixo Alentejo, região pastoril. No meio de um rebanho imenso de ovelhas, que baliam aleatoriamente, estava um pastor, vestindo traje rústico de lã e portando o tradicional cajado. Repentinamente, soou um aparelho celular. Pastor e ovelhas permaneceram impassíveis, por alguns momentos, até que estas, aparentemente intrigadas, olharam todas para o pastor. Ao retirar o aparelho das vestes, surpreso, gritou: “É P’ra Mim!”. Com o novo aparelho, da minha filha, o pobre pastor acreditaria estar sendo seqüestrado pelos alienígenas, em Roswell, Novo México. Luzes coloridas acendem a qualquer pressionar de teclas, sempre acompanhadas por sons polifônicos. Lembra aqueles shows de águas dançantes, executados nos chafarizes das praças de outrora, antes de serem transformados em piscinas e tanques públicos para lavar roupas? Há até uma versão da Valsa do Imperador em ritmo de rap. Meu espanto continua com a destreza que ela apresenta, ao operar o minúsculo teclado do ovo, típica de quem pertence à geração pós-PacMan. O mais incrível disso tudo é que o dito aparelho serve também para falar! Conheço pessoas fascinadas pela tecnologia empregada nessas coisinhas. Não resistem a um novo modelo de qualquer coisa. Seus telefones móveis estão sempre à mostra e em uso, seja lá que uso for. Estão sempre prontos, para uma demonstração, narrando as especificações técnicas, explicando que, se você tiver dente azul (Bluetooth), estará apto a conectar seu notebook, que já está conectado mesmo, via banda larga Wi-Fi, com a Internet. Bluetooth é o que você adquire quando bebe muito vinho tinto de colônia, feito pelo nono. Olhando para a população do País, creio que seria melhor comunicar através de uma conexão banguela (toothless). Os tecnófilos são sujeitos frustrados, nunca estão satisfeitos com o próprio nível de atualização tecnológica. Mal adquirem um Bluetooth, logo surge algum consultor, numa revista temática, afirmando que agora a moda é Pinktail® (rabo cor de rosa). Só não dá para falar ao telefone, já que o modem wireless do palm que controla o home-theater da cozinha, sofre interferência do handset do wireless 2.4 GHz através do qual seu filho está pedindo uma pizza. Qual é a relação de um com os outros? Não sei, são estranhos os caminhos percorridos pelas ondas. Por via das dúvidas, não ligue o secador de cabelos.

Paulo Roberto Heuser