27.6.06

Tia Fogueteira

Tia Fogueteira
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2 de junho de 2006
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Minha tia se foi. Suavemente, sem alarde, apenas se foi, após uma longa vida que marcou as vidas de muitos. Tenho inúmeras lembranças da minha infância, quando vinha passar parte das minhas férias em Porto Alegre na sua casa. Como minha prima era mais velha, eu era a única criança na casa nesses períodos. Aquilo que tinha tudo para se transformar em algo maçante, para uma criança, passar férias com a tia velha (na minha visão da época), tornava-se uma sucessão de dias emocionantes, repletos de surpresas. Além de ser tratado como um rei, a base de Coca Cola Família e cachorro quente feito no grill, havia televisão na casa! Nenhum dia era igual ao outro. Desde a chegada, após uma poeirenta viagem de ônibus, desde Santa Cruz, a chegada na Rodoviária da Conceição, o táxi-mirim - como se chamavam os fuscas - e o sobrado da Eça de Queiroz. A manhã seguinte iniciava com a ida até o galinheiro cheio de perus (seria um perueiro então?). Sim, havia perus em plena Eça. Assoviava minutos a fio, para ouvi-los produzir o glu-glu. A rua transbordava de sons, verdureiros em carroças, afiadores de facas e vendedores de amanteigados. Destes fiquei enfarado, após comer 1kg, de uma sentada. Estratégicas idas ao centro, de bonde, descendo a Protásio, para tomar um chá (ugh!) com torta (oba!) nas Lojas Krahe, com direito a andar na primeira escada rolante de Porto Alegre, cuidando para não pagar mico na hora de pisar. Chá nas Lojas Krahe apenas para menores de 12 anos, acompanhados de adulto, pois alguns playboys haviam aprontado e escandalizado as senhoras da sociedade. A Rua da Praia, nessa época, era algo semelhante à Padre Chagas de hoje. Inevitável dar uma passadinha na Hobby, na subida da Rua da Praia, para comprar um Matchbox - miniatura inglesa de carros. Aquela loja era minha projeção do paraíso, com uma enorme pista de autorama. Em outro dia, para não acumular todas emoções num só, um pulo na Praça Ruy Barbosa, lá no Varner Oliveira, para comprar aeromodelos movidos a elástico. O segredo da tia era apenas um: ela realmente gostava de participar dessas aventuras. Ajudava a montar o aeromodelo, achava rádios velhos, no porão, para que eu os desmontasse. Não é preciso dizer o que acontecia quando ligados, após a remontagem. Uma troca do fusível - não havia disjuntores - resolvia, não ocorreu nenhum incêndio muito grande. Essa tia era mais uma cúmplice do que uma tia. Nos meses de junho, próximo de São João, Tia Marga retribuía as visitas, indo passar uns dias em Santa Cruz, onde nascera. Suspeito que escolhia esse período devido aos rojões. Enquanto meus pais trabalhavam, ela nos dava dinheiro para comprar os rojões, os maiores, os mais barulhentos e os mais fumarentos. Nosso quintal ficava transformado numa praça de guerra, repleto de fumaça e cheiro de pólvora queimada. A gurizada da vizinhança trazia latas para serem explodidas. E ela participava ativamente. Meu pai comentava que a fumaça era visível a uma quadra de distância. A tia gostava tanto de bombas, que sempre as tinha na mesa de cabeceira. Quando os cachorros começavam a uivar, nas noites de lua cheia, ou os gatos faziam a chorosa corte, a Dona Marga acendia um rojão, sem levantar da cama, e jogava pela janela. Ela tinha um cão, da raça Boxer que, apesar de ter uma cara horrível e chamar-se Boca Negra, era uma versão canina do maricas. Durante um dos bombardeios noturnos, Boca Negra escondeu-se sob o tanque, na lavanderia. Passado o pavor, Boca Negra viu-se entalado. Tiraram o tanque para libertá-lo. Essas coisas passaram pela minha mente enquanto me despedi. E percebo que estamos entrando em junho. Será mera coincidência o fato da Tia Marga estar nos deixando agora? Neste junho irá soltar rojões em outros quintais? Chegando lá, estoure um rojão por nós.
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Paulo Roberto Heuser

4 Comments:

At sábado, 05 agosto, 2006, Blogger Inconstâncias... said...

Você já assistiu "brilho eterno de uma mente sem lembranças"? não lembro o diretor, mas ele sempre me faz lembrar...
AH, tem como protagonista o Jim Carey ( nada contra e até por que esse filme é muito bom).
penso que quando algo, alguém nos deixa tentamos apagar, principalmente os momentos mais lindos e mais legais ( ou até os mais chatos).
tentamos apagar o próprio tempo...
abraços
midy

 
At sábado, 05 agosto, 2006, Blogger Inconstâncias... said...

Realmente... tias fogueteiras( e não so pelos fogos) sempre explodem o coração).
Os gostos são tão diferentes quando se deixa de ser criança...

 
At sábado, 12 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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At quinta-feira, 17 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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