21.6.06

O Case Raimundo

O Case Raimundo

Ontem encontrei o Raimundo, na rua. Colega do colégio, na infância, não o via há mais de 30 anos. Não o reconheci, foi ele quem me abordou. Estava enfiado em um elegante terno, tudo na moda. Estranhei um pouco, pois o Raimundo não era exatamente o aluno que projetava uma imagem de sucesso. Veio a conversa mole, como está, tem família, no que trabalha, etc. Raimundo disse que não chegou a entrar em nenhuma universidade, resolveu trabalhar logo que saiu do colégio. Empregou-se como digitador em um banco. A vida ia sendo levada, casou e teve filhos. Um belo dia foi chamado ao RH do banco e lhe comunicaram que fora demitido devido à automação dos processos em que trabalhava. Explicaram-lhe que deveria se sentir feliz. Deixaria de exercer aquela função tão enfadonha, que causava doenças ocupacionais, e poderia dedicar-se a um trabalho mais digno. Raimundo abriu sua própria firma de digitação com o dinheiro da rescisão. Após alguns meses de atividade teve de demitir metade dos seus digitadores. Os clientes da sua empresa estavam automatizando os processos, não necessitavam mais de digitação. Antes da firma completar seu primeiro aniversário, foi necessário fechá-la. Não havia mais clientes. Decorridos seis meses de procura de algum emprego, Raimundo aceitou o convite do sogro para trabalhar com ele na sua afiação de tesouras de jardinagem. Para o azar dele, e do sogro, as tesouras começaram a sumir do mercado, substituídas pelas máquinas de cortar grama elétricas. O sogro aposentou-se. Antes, conseguiu um emprego, para o genro, na loja de tintas do seu Natanaiel, o compadre. Raimundo adorou a nova ocupação. Orientava clientes na escolha das cores, misturava tintas para obter novas cores e podia ter até alguns momentos de descanso entre os clientes. Um pouco antes do Natal seu Natanaiel veio com a grande nova, comprara uma máquina para preparar tintas a partir de uma base. Levou pouco tempo para descobrir que Raimundo passara a ser um enfeite na loja. Novamente no olho da rua, Raimundo perambulava pensando no que fazer, quando encontrou dois dos seus ex-digitadores. Em uma mesa de bar tiveram a idéia de fundar a COTRAPROTRAMDIG – Cooperativa dos Trabalhadores à Procura de Um Trabalho Mais Digno. Fundaram uma entidade que, antes de deixar a empresa explorar o homem, faria exatamente o contrário. Nas reuniões que se seguiram, procuraram encontrar alguma atividade que fosse tão adaptável à realidade do mercado que não se colocasse em risco a cada pouco. O sogro do Raimundo, convidado a dar pitacos, tomou um gole do liso, olhou para todos e mandou: - tem de criar o mercado! A princípio todos pensaram que o velho tinha tomado uns goles a mais. Agora sorrindo, completou: - é isso, tem de criar o mercado! Convidado a explicar-se, não tinham nada a perder mesmo, o velho demonstrou sua idéia de uma forma até bem simples: - vocês perdem o emprego porque o mercado deixa de existir. Então, tem de fabricar o mercado para a coisa que fazem. A ficha do Zé Tongo foi a primeira a cair: - já entendi, inventamos uma coisa que os outros não precisam, mas os convencemos de que precisam! O velho sorriu marotamente, lembrando-se do multiprocessador que a patroa pedira no Dia das Mães. Apenas abanou a cabeça afirmativamente, tomou mais um gole, apontou o dedo para o Zé Tongo e sussurrou: - ele pegou a idéia. Mas, criar o quê? Não poderia ser um produto, pois teriam de fabricá-lo e logo poderia obsoletar-se. Um serviço então, mas qual? Zé Tongo seguiu o raciocínio que iniciara e sugeriu uma linha de atuação: - temos de atacar exatamente onde nos fizeram perder os empregos, na redução de custos. Vamos vender redução de custos! – Como? – Vamos criar um método. Duas semanas depois a mesa do botequim estava cheia de papeis. Todos concordaram com a idéia de convidar o Yobushi, japa que havia trabalhado na ex-firma para dar um ar de credibilidade ao negócio. Japoneses pareciam mais confiáveis e eficientes. O japa lembrou de um programa da Emater, aplicado nas áreas agrícolas, os Clubes 4S - Saber, Sentir, Saúde e Servir. Sua mãe e irmã participaram dele. Optaram por criar algo mais impressionante: o Método 5S. Raimundo estava questionando os 4S já existentes e imaginando que os empregados e os sindicatos não iam gostar muito do “Servir”. Os patrões não gostariam do “Sentir”. Como ainda faltava um S mesmo, resolveram apelar mercadologicamente e trocar todos por coisas japonesas, ficaria uma imagem sólida de eficiência. Olharam para o japa e pediram cinco palavras, em japonês, que começassem com S. O japa coçou a cabeça e confessou que não falava japonês. Disseram-lhe que poderia ser qualquer coisa, já que ninguém entenderia mesmo. Surgiu um brilho nos olhos fechados do japa quando lembrou da cozinha da mãe. Lá vai: - sushi, sashimi, sukiyake, shoyu e sarapatel. Zé Tongo estranhou e perguntou: - sarapatel é japonês? – sei lá, a vizinha ensinou minha mãe a fazer. Então lembrou do sake, por que não? Pronto, já tinham os 5S. Qual seria o significado disto? O gênio do Zé Tongo novamente teve a idéia fantástica: - tudo que é muito simples parece lógico. Compraram livros de auto-ajuda no sebo da ladeira e procuraram as frases feitas mais óbvias que puderam encontrar. A cada S atribuíram uma frase. Uma falava para jogar todo o lixo fora. Outra, mais inspiradora, mandava rotular tudo, inclusive as árvores e os lápis. Criam mantras para ficar repetindo as frases à exaustão, até que fossem realmente internalizadas. O sogro, feliz com o andar da carroça, levantou uma questão importante: - para impedi-los de notar que estão sendo engambelados é preciso mantê-los permanentemente ocupados. Montaram cronogramas de trabalho que incluiriam os finais de semana, quando ocorreriam atividades coletivas. Juntou-se ao grupo a irmã do Zé Tongo, recreacionista de jardim de infância. Nada melhor para manter um bando de empregados ocupados. Inventaram prêmios para serem entregues aos funcionários mais destacados no cumprimento das metas, mesmo que inexistentes. Bolinhas de borracha com ideogramas japoneses e bandanas de kamikases. Camisetas com a inscrição “Dispensável”, em japonês, seriam distribuídas para todos. Para mantê-los ocupados durante os dias úteis, formulários, muitos formulários. O café seria trocado por chás e os sanduíches por balas de algas. Empacaram na determinação das metas a serem apresentadas às empresas. O velho estalou a língua e disse: - deixe que eles mesmos criem as metas. Se não as cumprirem a culpa será duplamente deles. E completou: - o pessoal do chão de fábrica deverá fazer o planejamento. Criem muitos formulários que levem a novos formulários. Deixe o pessoal executivo vendado enquanto joga cabra-cega com a irmã do Zé. Raimundo estava preocupado: - e quando descobrirem o logro? – Não vão, ficarão ocupados preenchendo formulários por muito tempo. Vamos embora muito antes, após dar a metodologia por implantada. Depois, ninguém terá a coragem para admitir que passou o sábado à tarde vendado, tentando espetar o rabo do burro, enquanto entoava mantras incompreensíveis e os faxineiros montavam o planejamento estratégico. O passo seguinte foi comprar um terno bacana para o japa, conseguiram um baratinho na funerária, e mandá-lo apresentar parte da metodologia 5S num seminário sobre governança, seja lá o que for isto. Como o japa proferiu palestra, não foi preciso pagar inscrição e ainda descolaram um coffe break. Só foi preciso carregar bem no sotaque para que não entendessem muita coisa. A única parte inteligível falava da redução de custos e aumento da rentabilidade. Os cartões de visita, que mandaram fazer numa galeria do centro, esgotaram-se rapidamente. O telefone do boteco não parou de tocar. Zé Tongo fechou o primeiro contrato com uma grande empresa, cujo diretor organizara o evento de governança. Com o adiantamento, da assinatura do contrato, compraram ternos para o resto do pessoal. E um ábaco. Japa que se preze não usa laptop, usa ábaco, aqueles de bolinhas. Dá mais autenticidade. As primeiras duas semanas foram meio estressantes, os gerentes e os diretores do cliente estavam em pé de guerra, achando tudo uma idiotice. Até que a irmã do Zé Tongo entrou em cena, no sábado pela manhã. As sessões de cabra-cega, cântico de mantras e partidas de caiu-na-patente entusiasmaram os executivos, a ponto de pedirem para repetir tudo no domingo, trazendo a família. Depois disso, foi só administrar o preenchimento de formulários. Alguns funcionários, alijados de qualquer função importante, foram nomeados guardiões do método na empresa, os que garantiriam a continuidade do processo. Foram incentivados a criar formulários recursivos. Findos os três meses do contrato, numa emocionada cerimônia, ocorreram as despedidas, com os diretores usando crachás onde se lia “crachá”, tomando o microfone, onde se lia “microfone”, agradecendo aos consultores pela profunda mudança ocorrida na empresa. Só não sentaram para comer o churrasco porque as cadeiras e mesas foram jogadas fora pela patrulha da limpeza. Encerraram a cerimônia com um grande jogo de cabra-cega. A partir de então, Raimundo e sua equipe não pararam mais de assinar contratos. O tempo de espera, pelos serviços da COTRAPROTRAMDIG, chega a ser de dois anos. Raimundo pede licença, tem uma reunião agendada e não quer deixar os herdeiros do Peter Drucker esperando.

Paulo Roberto Heuser

3 Comments:

At quinta-feira, 22 junho, 2006, Blogger José Elesbán said...

Heuser,
Texto excelente!

 
At sexta-feira, 11 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

I like it! Good job. Go on.
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At quarta-feira, 16 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

Looks nice! Awesome content. Good job guys.
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