30.6.06

Os Miseráveis

Publicada no portal do Sinepe-rs, em 04/07/2006
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Os Miseráveis

Porto Alegre, Largo Glênio Peres, 7h50. Do meio da cerração surgem figuras humanas, apenas o contorno. São como cascas de gente, aparentemente desprovidas de conteúdo. O que teria acontecido, para chegarem a esse estágio de miséria? Seriam dementes, antes trancafiados em sanatórios? Viciados em álcool, ou outras drogas, nos últimos estágios da doença? Teriam uma história? Não tenho coragem para lhes perguntar. Há muito cruzaram a fronteira entre a sociedade e aquele lugar em que se encontram, seja onde for, onde não nos atrevemos a ir. Marginais não estão mais, foram muito além da fronteira, mergulhados em outro mundo, do qual nunca retornarão. Mais perguntas. O que comem? Como conseguem dormir neste frio? Ao passar ao lado deles, tranco a respiração, sem pensar. Quero manter um isolamento biológico. A rotatividade ali parece ser alta, não fixo nenhum na memória. As crianças já saem em grupos ruidosos, à cata de loló – cola de sapateiro -, para se drogar, colorindo seu mundo cinza. E aplacando a terrível sensação de fome. Seus olhos não são olhos de crianças. Se parecem mais com bonecos montados a partir de corpos de crianças e cabeças de adultos. Alguns dos adultos compartilham um líquido laranja, cor que contrasta com aquele ambiente. A Borges, finalmente. Aquele mundo fica para trás. Em outros tempos, os moradores de rua chamavam mais a atenção. Em menor número, acabavam na memória dos passantes. Quando havia o terminal de ônibus no Largo do Mercado, Iiiióóóóó era o mais conhecido. Passava recolhendo esmolas em uma caixa de sapatos. Sacudia a caixa, ouvia-se o tinir de algumas moedas, cutucava cada um que estivesse na fila, para tomar o ônibus, e soltava um Iiiióóóóó, som semelhante a um zurro. Nas redondezas do City Hotel habitava o Zé do Éter. Devia o apelido ao peculiar vício de cheirar éter, por anos a fio. Dizia-se que o seria objeto de pesquisa nas universidades. Ninguém poderia viver tanto cheirando éter daquele jeito. A meia quadra de distância já se sentia o cheiro de éter. Seria ele um eterno personagem de O Dia Em Que O Mundo Acabou, de Sir Arthur Conan Doyle? Não sei quem fez o perder a corrida, a idade, o éter ou a miséria. Quando juntava esmola suficiente, ia até um atacado de produtos químicos, de onde saía feliz com outro tubo imenso de éter. Outra figura dessas morava na vitrine de uma loja que vendia moto-serras, creio eu, na esquina da Farrapos com a Conde de Porto Alegre. Mantinha uma espécie de casa numa floreira junto à vitrine. Quando deixou de virar um agosto, foi notícia de jornal. Quem mora, há muito tempo, na Ramiro, entre o Bom fim e Rio Branco, deve se lembrar do Boca. Mendigo de plantão, Boca proferia longos discursos, sempre gesticulando com uma das mãos, a outra segurando uma bagana, com dois dos dedos, enquanto os demais entravam no paletó, em posição napoleônica. Mantinha a postura altiva de alguém que um dia fora importante. O folclore local menciona um erudito poliglota que perdera tudo na vida. Deveria ter sido poliglota mesmo, pois do que falava, ninguém entendia palavra. O gênero feminino também nos apresenta figuras peculiares, nos dias de hoje. Uma senhora idosa, longe de apresentar sinais de pobreza, vende panos-de-prato bordados, sentada em uma cadeira de praia, na esquina da Caldas Júnior com a 7 de Setembro. Nestas manhãs gélidas, de junho a agosto, ali corre um vento denominado Mata Bancário. Sempre sorridente, anuncia o produto com uma voz fininha: - hoje tá barato, cinco reais, hoje o freguês leva... Perto dali, na Siqueira Campos, está sentada outra senhora, também idosa, que deve ter sofrido alguma doença que afetou nervos da face. Escreve coisas misteriosas em um caderno enquanto levanta uma pálpebra com a mão. Quando retira a mão, o olho fecha. Dá uma agonia terrível assistir àquela cena. Tem de ter estômago para andar no Centro. Nos embrutece com o tempo. Lá há apenas uma certeza: nenhum daqueles virá a ser o Jean ValJean, em Les Misérables, de Vitor Hugo. Ele ainda conseguiu estudar. E havia o bispo para lhe dar uma segunda chance. Onde fica mesmo a Padre Chagas?
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Paulo Roberto Heuser

6 Comments:

At sexta-feira, 30 junho, 2006, Anonymous Anônimo said...

vou te dar uma passagem pra analisar o centro aqui!

 
At segunda-feira, 03 julho, 2006, Blogger José Elesbán said...

O "Iiiióóóóó", eu achava que era "Aaaiii", e se é a mesma pessoa, acho que o vi lá na praça Dom Feliciano, sentado no chão e com uma caixa de sapatos pedindo esmolas...

 
At sábado, 12 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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Clomid and Other Ovulation Inducti
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