27.7.07

Blabadabóóóu!

Blabadabóóóu

Por Paulo Heuser


Rote Grütze nasceu na periferia pobre de Korrupt, capital do Principado de Dunkelstein, encravado entre a Phallacia Ocidental e a Sofísmia do Norte. Grütze foi o terceiro presidente eleito pelo voto direto, desde a saída das tropas. Gozava de uma popularidade inabalável, graças ao seu discurso salsicha com batata (versão dunkelsteiniana do feijão com arroz).


- Blabadabóóóu! – gritava Grütze, antes de iniciar qualquer discurso. Lembrança da época em que militava no Demoli – Democracia e Liberdade, organização clandestina de resistência contra as tropas. Grütze gostava do barulho das explosões. Fabricava bombas por prazer. Elas foram sua ferramenta de trabalho. Ele estudou na Universidade Maurice Kumbuka, na Phallacia Ocidental, no período de exílio voluntário. Já que não o prenderam nem torturaram, exilou-se voluntariamente, em protesto. Quando voltou para Dunkelstein, graduado em Direito Negativista, protestou contra a sua não-anistia. As autoridades alegaram que não poderiam anistiá-lo, pois nunca fora condenado, sequer indiciado. A base parlamentar da Demoli conseguiu aprovar uma lei que o condenava por crimes políticos, lhe concedia anistia e indenização vitalícia pela condenação injusta, tudo em um só pacote. Grütze recebeu uma polpuda quantia a titulo de indenização por danos morais, já que conseguiu depoimentos corroborando o imenso sofrimento de exilar-se sem sequer ser perseguido pela pátria. Alegou que o governo lhe tirara qualquer possibilidade de virar um herói nacional, ao não perseguí-lo.


- Blabadabóóóu! – gritou novamente, com a boca colada no microfone.


A platéia recuou, de susto. Grütze gostava da onda de susto que se propagava pela massa. E o povo também gostava. Tanto que respondia em coro, logo que refeitos do susto. O jingle de campanha foi exatamente esse. Grütze, o Homem Bomba, foi eleito com ampla maioria. O povo queria que as instituições se explodissem. Portanto, nada mais natural que eleger um fabricante de bombas que gostava de explodi-las.


O discurso de posse não podia iniciar com algo diferente do que se ouviu durante toda a campanha.


- Blabadabóóóu!


- Blabadabóóóóóuuuuu! – ecoou a massa.


- Graças a vocês, tenho certeza da vitória no próximo pleito!
Silêncio. Grütze repetiu a frase. Constrangimento, até que um assessor cochichou:


- Vossa Excelência já venceu a eleição! – ao que Grütze retrucou:


- Como? Ninguém me avisou?! – parecia acordar de um pesadelo.


- Blabadabóóóu! – gritou, para ganhar tempo, enquanto pensava em algo para dizer.


- Blabadabóóóóóuuuuu... – reagiu a massa, já delirante.


- Não sei o que dizer! – cochichou de volta, para o assessor – Nunca podia imaginar que isso pudesse acontecer!


- Fale do plano de governo! – orientou a escudeiro.


- Mas, qual plano? Qual governo?


- Ora, diga qualquer coisa...


- Blabadabóóóu!

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26.7.07

O maior despertador do mundo


O maior despertador do mundo

Por Paulo Heuser


A criatividade do ser humano é ilimitada. Veja só o exemplo de Michael Faraday (1791-1867), um dos maiores cientistas experimentais que o mundo já viu. Filho de pais pobres, Faraday somente aprendeu a ler aos 13 anos de idade. Teve acesso aos livros ao trabalhar para um livreiro. Autodidata, efetuou diversas descobertas relacionadas ao eletromagnetismo, como a indução. Mesmo sem a formação acadêmica, Faraday dedicou-se à pesquisa pura. Conta o folclore que a rainha da Inglaterra visitou o laboratório do cientista, depois dele adquirir fama. Após uma descrição das engenhocas misteriosas, e das descobertas relacionadas, a rainha lhe teria perguntado:

- Para que servem todas essas coisas? – debochando da pesquisa pura.

Ele respondeu à pergunta com outra:

- E para que servem os bebês?

Eu próprio tive minha fase de cientista experimental leigo. Não me recordo da idade, mas deveria estar entre os sete e os nove anos. Impressionado com a batalha que o meu pai travava com as formigas cortadeiras do quintal, resolvi ocupar meu tempo vago, que era muito, na pesquisa de um veneno final para formigas. Foram dias consumidos em relação aos materiais e métodos. O galpão de ferramentas era um ótimo laboratório. Após uns três dias de pesquisa, parti a campo (quintal) para realizar a parte experimental. Havia formigas de sobra. Acrescentando um pouco disso, tirando um pouco daquilo, cheguei à fórmula mágica. Nunca registrei a descoberta, com medo de que a copiassem e usassem para fins não-pacíficos. Eu não queria me transformar num novo Alfred Nobel (1833-1896), o inventor da dinamite, que viu sua descoberta utilizada para outros fins, muito distantes de paz. Não, comigo seria diferente. Creio que hoje já posso revelar a fórmula, assim ficará de domínio público.

Pode anotar aí a relação de materiais:

- 100 ml de querosene da marca Jacaré;
- 100 ml de álcool etílico 96 (aqueles 45 não servem!);
- 100 g de veneno para formigas, de boa marca;
- 10 ml de xarope (capilé) de groselha;
- suco de um limão galego;
- 1 folha de louro;
- 1 caixa de fósforos.

Antes de tudo, vai um alerta: NÃO TENTEM FAZÊ-LO, CRIANÇAS DE HOJE, AS ANTIGAS SOBREVIVIAM MAIS! Feito esse alerta de segurança, vai o método: Misturar todas essas coisas imediatamente antes do uso. A seguir, pincelar as formigas com a solução obtida, logo tacando fogo. Não se esqueça de retirar o pincel antes de acender o fósforo. É fogo e queda! Todas formigas pinceladas morrem. NÃO TENTE PROVAR A SOLUÇÃO PARA DESCOBRIR QUE GOSTO TEM! Feito outro alerta de segurança, vamos ao fulcro da questão, que permaneceu irresolvida: por que as formigas não levaram a solução para dentro do ninho? A maioria parava antes mesmo do fósforo acender. Talvez um dia me dedique novamente ao experimento.

Às vezes alguém descobre coisas por acidente. Percy Lebaron Spencer (1894-1970) observou em 1945 que uma barra de chocolate derreteu no seu bolso, enquanto realizava experimentos com um radar, utilizando microondas. Acabou criando o forno de microondas. Conheço um sujeito (1973-) que ampliou a gama de utilização do forno de microondas ao constatar que o magnetron - peça que gera as microondas - estava quebrado. Ele encontrou novo uso para o aparelho, já que o relógio e o temporizador ainda operavam corretamente. Criou um misto de relógio, mesa de cabeceira, despertador e luz de leitura. Antes de dormir, programava no timer do forno a hora em que queria despertar. Esse não foi o maior despertador do mundo. O maior foi o protótipo de Spencer, que media mais de 1,80 metros de altura e pesava mais de 300 kg. Porém, cozinhava pipocas.
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25.7.07

O fim

A Batalha de Issus
Albrecht Altendorf

O fim

Por Paulo Heuser


Quanto tempo após cessar a respiração ocorre o fim do metabolismo celular? Ou, em outras palavras, o sujeito parte definitivamente desta para a melhor? Depende. De quatro a dez minutos, segundo o artigo publicado na edição eletrônica de 24/07 da Scientific American. Depende da temperatura, do tipo de tecido – não aquele da roupa -, e de outros fatores. Ou seja, não há resposta precisa. É a procura do fim. Muitos dirão que não se trata de um fim, apenas de uma passagem. Poderemos então falar no fim de uma etapa. Um fim, portanto.

Há coisas que procuram um fim, desesperadamente, como as obras que nunca são concluídas. As reformas de banheiros são as piores, por razões que parecem evidentes. Todo mundo que já as enfrentou, sabe que o relógio da obra anda em outro ritmo, bem mais lento. Lá dentro do banheiro o tempo se arrasta de forma imperceptível. Dá para se colocar roupa para secar no ponteiro dos segundos. O Princípio da Incerteza de Werner Karl Heisenberg (1901-1976) se aplica perfeitamente às obras em banheiros. É impossível determinar simultaneamente a posição do vaso sanitário e velocidade dele. Pelo menos de forma instantânea. Fatos científicos, coisas da Mecânica Quântica. Albert Einstein rejeitou as idéias de Heisenberg, durante muito tempo. Dizem que Einstein enfrentou alguns problemas no banheiro, por conta disso, ao não conseguir encontrar o vaso onde esperava, num dado momento de aperto instantâneo. A determinação passa a ser estatística. Existe uma probabilidade de o vaso estar em um local definido. Portanto, não se deve ir procurá-lo na última hora. Em todo caso, provou-se mais cautelosa a aplicação da Mecânica Quântica nas reformas de banheiros. É melhor pensar sempre na pior hipótese, prevendo uma alternativa. Rápida.

Quase todas os eventos devem ter um fim. As festas, por exemplo, devem ter fim, que não precisa necessariamente ser pré-determinado. Alongá-las demasiadamente pode ser um suplício. Como nas festas em que aplicam o Princípio da Incerteza ao garçom. Nunca descobrimos onde ele anda, quando precisamos dele. Em outras, qualquer fim parece prematuro, temos vontade de alongá-las indefinidamente. Lembro-me de algumas. Provavelmente guardo boas lembranças porque tiveram um fim. Festa sem fim é o Carnaval baiano. Não tem fim porque não tem início. Apresenta períodos de latência que não caracterizam início ou fim. O Carnaval anda paralelo ao tempo, ora se aproximando, ora se afastando, mas nunca cruzando com ele. O que deve ter fim, em qualquer festa, é o discurso. Alguns discursos terminam com a festa. Fuja de qualquer festa que homenageie alguém importante. O cordão dos puxa-sacos vai infernizar com os intermináveis discursos encadeados.

Alguns artistas não conseguem terminar suas obras. Que vê O Massacre dos inocentes, de Peter Paul Rubens (1577-1640), é tentado a acreditar que os pintores barrocos eram renascentistas que não sabiam quando terminar suas obras. Sempre havia mais algo a ser pintado, no mesmo quadro. Encomendavam-lhes um retrato de mulher e eles ilustravam a história da humanidade, em apenas uma tela. Pensando bem, até que faz sentido. Porém, nada se compara à Batalha de Issus, de Albrecht Altendorf (1480-1538). Levaram dois anos para completar essas obras. Terminaram porque não havia mais espaço nas telas.

O que dizer dos textos, então. Sei, entendi. É melhor colocar um fim neste.
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24.7.07

Desdém com as baratas


Desdém com as baratas

Por Paulo Heuser


Pois eu já vinha estranhando o desempenho das equipes norte-americanas em alguns esportes como a natação, nos Jogos Pan-americanos 2007. Não se trata de nenhum tipo de simpatia. Sei, no entanto, que aqueles que vivem ao norte do Rio Grande (o do Texas) investem um monte de dinheiro, que não lhes falta, no esporte. Deu para estranhar mais quando o treinador da equipe, sei lá do que, deles disse que só competiriam em campo molhado se o COB cobrisse o valor do seguro deles, todos amadores de universidades, já com contrato previsto para a próxima temporada. Coisa pouca, questão de um ou dois milhões de US dólares por cada, sem trocadilhos. Tudo que eles mandaram tinha cheiro de equipe B. Sacanagem. Nos debulhamos em esforços, ganhamos medalhas, e eles confessam agora que mandaram as equipes B. Podemos alegar que o alfabeto deles começa no B, apesar de haver palavras em inglês iniciando com A.

O New York Times e os outros jornais deles sequer cobrem o Pan 2007. Fingem que não existimos. Nem nós, nem os demais cucarachas latino-americanos. Desconhecem até a existência dos chilenos, que, por sinal, também desconhecemos no Pan. E, o que é pior, fingem desconhecer até os argentinos, nossos mais notórios inimigos naturais, excluindo Cuba, naturalmente. Porém, com os cubanos mantemos relações aceitáveis fora do esporte. Os cubanos não vêm veranear em Santa Catarina e não se gabam de fazer um vinho melhor do que o nosso. Tampouco dizem que Bariloche é melhor do que Gramado. Sem mencionar outras pequenas diferenças no futebol. Os cubanos gostam tanto de nós que alguns deles até ficam por aqui, após os jogos.

O que irrita na atitude norte-americana é exatamente a indiferença. Estão aqui, sorriem, competem, mas é como se não estivessem. Cumprem protocolo, apenas. Ganham algumas medalhas, para disfarçar a indiferença. Mais medalhas que os outros, para disfarçar melhor. Pois é hora de lhes dar o troco. Não aqui, no Pan, já que nos ignoram. Daremos o troco no território deles, onde lhes dói mais. Vamos fingir que o Disneyworld não existe. Deixaremos de mandar nossos filhos para lá. Deixaremos de implorar por vistos que levarão dólares para eles. Ficam com o nosso dinheiro e fazem beicinho. Vamos mandá-los ao Beto Carrero e ao Circo Tupã. Custa muito menos e não exigem visto. E, não precisam ir de avião! Nem voltar após horas de vôo, porque o eletricista da selva confundiu o fio verde com o vermelho. Vamos mandá-los até para Bariloche, sem luz e sem gás, para que lembrem como a casa é quentinha. Quem puder, mande-os à Europa. Poderão tomar rengo-cola olhando mulher pelada em Paris. Comerão pizza de verdade na Itália. Onde não lhes exigirão visto. Poderão sair à noite, sem medo. Sem medo de serem confundidos com a equipe B.
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A vida no intervalo


A vida no intervalo

Por Paulo Heuser


Não tenho sorte com algumas coisas. Com as caixas de leite, por exemplo. Sempre faço uma sujeira danada ao abri-las. Já tentei usar facas, tesouras, bisturis e cortadores de pizza. Não adianta, sempre derramo leite. Ainda bem que voltaram às garrafas. Lacre chatinho aquele de alumínio, não? Porém, bem melhor que a maldita caixa inexpugnável. Dou-me mal de verdade defronte a TV. Sento-me, pego os controles remotos e começo a pressionar aquela seqüência de teclas, até que apareça alguma imagem útil. Cento e poucos canais e somente os que não me interessam apresentam algum programa. Os outros, os que poderiam me interessar, apresentam chamadas de programação ou créditos de filmes que terminaram naquele momento. No exato momento em que me sentei para ver alguma coisa. Sempre, não há exceção. Naquele momento há apenas cultos, missas, pajelanças, descarregos, sessões legislativas, ofertas de câmeras fotográficas e programas sobre gatas do Sião no cio. Bem, há também uma emocionante partida de futebol entre o Khankendi, do Azerbaijão, e o Cordofão do Norte (o do Sul não veio), do Sudão.

Paciência, entre o bispo, o deputado e o Cordofão, fico com o último. Dá para rir dos nomes dos jogadores. Bem coisa de ignorante. Quem manda não estudar... aquilo que eles falam lá. Enquanto bola e cabeças rolam no campo, tento entender por que infeliz razão sempre ligo a TV na hora dos créditos do filme que eu gostaria de assistir. Dos próximos, quero distância. Lassie, Noviça Rebelde, Free Willy, Guerra nas Estrelas, Batman, sempre os mesmos. Por que não escalonam o início das sessões de forma que infelizes como eu consigam pegar o início de algum filme? Na nova tentativa de achar alguma coisa passo pela propaganda da câmera digital que tira fotos embaixo d’água, dentro do vulcão e até na geladeira. Fico preocupado, pois se eu não ligar nos próximos 10 minutos, as linhas vão congestionar. E eu perderei a condição especial sem holerite, sem entrada, sem pagamentos e já vem com as fotos batidas - é só mostrá-las.

Nova zapeada e já assisto ao depoimento de uma testemunha na CPI do Escândalo Genérico, na TV de graça dos legisladores. Começou há tanto tempo que ninguém mais se lembra do assunto. Acabaram entrevistando o novo garçom, confundido com um depoente. No canal ao lado, trocaram as imagens da cirurgia de hemorróidas pela de implante de dentes. Sim, televisão também é saúde, começando pela saída, terminando na entrada. Céus, o que eu não daria por um aparelho de plasma de 43 polegadas! Que espetáculo esse. Melhor do que foto de maço de cigarros!

Devo estar sincronizado com os intervalos dos programas de TV por assinatura. Três cliques acima, ou abaixo, o apresentador que é dono do prefeito lhe dá 15 minutos para tratar de alguma emergência com a defesa civil. Só quinze. Depois, deve retornar, ao vivo. Ordens são ordens. O show não pode parar. Tudo fede a pipoca, pois estamos no intervalo. Pelo menos aqui temos algum controle. Podemos zapear, mesmo que seja para ver Timão e Pumba ou os Piggley Winks, melhores opções no momento.

Às vezes tenho a impressão de que vivemos num grande intervalo, sem programas decentes. Perdemos o filme anterior e nunca assistimos ao próximo. Lemos créditos, empanturrados de pipocas. Será a hora da mudança na grade de programação, através daqueles botões do grande controle remoto? Claro, sempre poderemos conferir o resultado do clássico Khankendi x Cordofão (o do Norte, pois o do Sul não veio).
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23.7.07

Fanática


Fanática

Por Paulo Heuser

O tempo ali não só pareceu parar, como efetivamente parou. Nem a Igreja era tão antiga quanto a Fanática. A data exata da sua fundação ninguém sabe. Há um afresco na galeria dos ex-presidentes que retrata um tal de Enéias, que teria sido o fundador, no Século XII a.C., na Planície do Lácio. Seu retrato leva o No. 1. Até hoje a sede permanece exatamente no mesmo local, no Monte Palatino, entre o Fórum Romano e o Circo Máximo, em Roma. A história da empresa começou quando um tal de Enéas, fugindo de Tróia, resolveu se vingar do mundo, fundando uma agremiação chamada Fanática. O nome foi um acrônimo de Fábrica Nacional de Tiranos Capitólio, pois instalar-se-ia no monte de mesmo nome. Trocaram o endereço da sede, mas mantiveram o nome. Fanátipa (do Palatino) ficaria feio.

Não é fácil encontrar a portaria da Fanática. O local até que é bem visível. Quem parar naquele barranco entre o Domus Tiberiano e o Circo Máximo estará próximo da Lupercal, caverna onde nasceram os fundadores de Roma. A portaria da Fanática está localizada a uns 30 metros da Lupercal, naquela construção com cara de depósito de ferramentas. Difícil mesmo é conseguir um cartão magnético que permita o ingresso no prédio. Podem ser obtidos naquela banca de revistas ao lado do Anfiteatro Flávio. Conhecendo a senha, é claro.

Tibério e Caio estavam sentados à mesa de reuniões, olhando para aqueles milenares cálices de vinho. Seria mais apropriado chamá-los de vasos, pois era com o que se pareciam. Mas, antes os cálices do que o vinho. Milenar, seria intragável. A também milenar atmosfera estava mais pesada do que de costume. Pudera, venderiam a empresa, caso os estrangeiros trouxessem uma boa oferta. A última vez que um estrangeiro pisara aquele mármore foi em 1945 d.C. Um ex-aluno germânico se viu em apuros e precisou pedir abrigo. Deram-lhe casa, comida, roupa lavada e material de pintura, em troca da sua notória especialização. Tornou-se um excelente professor. Seu aluno mais brilhante foi o menino ugandense que viria a ser conhecido como “Senhor do Horror”. Um típico exemplo de pupilo que superou o mestre. Não era costume treinar novos alunos na sede da empresa. Porém, aquele austríaco foi muito visado. O procedimento usual era o treinamento in loco dos protótipos a tiranos. Criaram também a prata da casa. Orgulhavam-se em especial do Calígula, do Nero e do Benito, il Duce. Uma obra prima estrangeira foi um menino humilde da pequena cidade caucasiana chamada Gori, na Geórgia. Chamava-se Josef. O menino tornou-se rapaz, que se tornou homem, que se tornou um tirano de dar inveja a qualquer candidato.

Bons tempos aqueles. Não havia a maldita globalização. Tibério e Caio hoje sabem que seu erro foi não enxergar a evolução dos mercados. Hoje as coisas acontecem muito rápido. Antes se levava de dez a 20 anos para formar um bom tirano – no mau sentido. Hoje, querem tudo para ontem. Em Portugal, para hontem. O que pesou mesmo para a decisão de venderem a Fanática foi a idéia desses estrangeiros de pulverizar os tiranos centralizados, em milhares de microtiranos, que se inserem nos governos. Tiranos são difíceis de formar e difíceis de depor. Os microtiranos são substituíveis. Foi coisa do Novo Mundo, que inviabilizou a Fanática. No princípio pareciam modismo. Acabaram intestinados na maior parte das nações. Descobriram que o seu poder de destruição era muito maior do que aquele dos tiranos centralizados. São franquias, como as de hambúrgueres e refrigerantes de cola. Chamam-nos simplesmente de lobistas. São mais fáceis de criar e de manter. Porém, quando somados, sangram os tesouros em tempo recorde.

Tibério e Caio sentiram calafrios, quando a campainha soou. Chegaram, afinal. Após 32 séculos.
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21.7.07

Com quantos estagiários se faz uma canoa


Com quantos estagiários se faz uma canoa?

Por Paulo Heuser


Na sexta-feira tomei um chope com o Raimundo. Vá lá, dois. Fizemos uma hora feliz. Em meio a tanta felicidade, surgiu o assunto dos estagiários. Raimundo comentava sobre as dificuldades de se montar bons estágios, que sejam bons para a empresa e para os estagiários. Muitas empresas empregam estagiários em substituição à mão de obra fixa, causando uma série de problemas.

Curioso foi o caso de uma empresa onde Raimundo foi contratado para prestar consultoria em motivação ocupacional. A direção chegara à conclusão de que aquela empresa deveria tornar-se socialmente útil. Abriram duas frentes de ataque à inutilidade social: estágios supervisionados para estudantes e voluntariado. Acolheriam estagiários para treiná-los nas funções, sem trata-los como mão-de-obra substituta. O voluntário passou a ser incentivado, inclusive com premiações aos que se destacassem nas atividades pós-expediente. Criaram também um programa de atividades voluntárias no horário de expediente da empresa. Poderiam ocupar um turno de trabalho por semana.

Após um mês de programa, nada de sucesso. Os únicos estagiários que não estavam matando moscas eram os da ginástica ocupacional, estudantes de Educação Física. Ficavam malhando sozinhos, sem adesões por parte dos funcionários, talvez porque o pessoal estava meio enferrujado. Próximo da aposentadoria, também. As geladeiras da cantina passaram a exibir diversos tubos de catchupe e maionese em sachê, mantidos pelos estagiários. Contrastavam com os tubos de sal de frutas e magnésia dos empregados.

Foi o Seu Nestor, diretor de RH, quem virou a mesa, figuradamente, é claro. Havia de escolher bem as palavras, frente aos estagiários, pois eles apresentavam uma curiosa tendência a levar tudo que era dito ao pé da letra. Virariam a mesa, portanto. Seu Nestor determinou que cada setor abraçasse, também figuradamente, um estagiário. Foi um resmungo geral, apenas menor do que aquele que surgiu quando a ginástica ocupacional se tornou obrigatória. O pessoal alegava não saber o que fazer com a rapaziada. O que causou um certo espanto foi o silêncio da Dona Norma. Não reclamou. Logo ela, que reclamava de tudo, da qualidade do papel higiênico, do cheiro do desinfetante da limpeza, do catchupe derramado nas mesas, da música do pessoal da malhação, etc. Agora, Dona Norma parecia até feliz. Havia algo de muito estranho acontecendo. Antes que começassem a pensar bobagens, Seu Nestor resolveu investigar o incomum comportamento da Dona Norma, especialmente após o pedido de mais 11 estagiários para o seu setor. Havia 12 funcionários, por que 12 estagiários? O que causara esse espantoso entusiasmo com o estágio?
O Alecxssandro foi o primeiro alvo da investigação, por ter sido o primeiro a trabalhar com a Dona Norma.

- Então, rapaz, como estão as coisas?

- Normal, tio.

- E o estágio, está gostando?

- Normal, tio.

- A Dona Norma está lhe dando as orientações, direitinho?

- Normal, tio.

Se ele ainda me chamasse de vovô, tudo bem. – pensou Seu Nestor.

- Bem, rapaz, o que você está fazendo no momento?

- Tô falando contigo, tio.

Seu Nestor começou a duvidar da utilidade do programa de estágios.

- Sim, sei. Mas, e com a Dona Norma?

- Nada, né. Eu tô aqui e ela ta lá...

Paciência, muita paciência.

- Certo, mas quando vocês dois, você e a Dona Norma, estão lá, o que ela lhe pede para fazer?

Seu Nestor chegou a temer a resposta, porém ficou imediatamente aliviado quando o rapaz lhe respondeu:

- Ah, tem a ginástica.

- Você é estagiário de Educação Física?

- Não, de Gestão de Passivos Circulantes.

- O que tem isso a ver com a ginástica?

- Sei lá, faço o que me pedem. Ela me pede para fazer a ginástica no lugar dela, pois tem bico-de-papagaio.

Seu Nestor ficou pensando que o rapaz tinha razão, só que tiraria os hífens. Ela parecia ter um bico de papagaio, literalmente. Ele percebeu também que a Dona Norma não se queixava mais da ginástica. O mistério estava resolvido. Dona Norma terceirizara a ginástica ocupacional. Porém, algo lhe dizia para ir adiante. Pensou nisso, enquanto espiava o saguão através da persiana. Pode ver um estagiário malhando alegremente frente a outros onze.

- O que mais você está fazendo?

- Tem o negócio de ler, tio.

- Que negócio?

- Qualquer um com letra pequena, tio. Ela disse que não enxerga as letras miúdas. Aí me manda ler.

Seu Nestor chegou a entendê-la, por um momento. Quem era o desgraçado que mandava coisas em Times New Roman 8? Somente um estagiário - pensou para si mesmo. Os funcionários antigos estavam utilizando os estagiários para suprir as deficiências trazidas pela idade. E a Dona Norma deveria ter espalhado a dica. Daí, o súbito pedido de novos estagiários.

- Bem, obrigado, rapaz! Foi muito útil.

- É tio, eu tenho que ir mesmo. Hoje é sexta-feira, e Dona Norma tem voluntariado de tarde.

- Você fica aqui, no lugar dela?

- Nada, tio. Ela vai para casa e me manda no lugar dela!
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20.7.07

Avatares do mundo real


Avatares do mundo real

Por Paulo Heuser


Kátia comandou nova ligação no sistema de telemarketing. Empreguinho bom esse. Ficava sentada frente ao computador e deixava que ligasse para um dos novos clientes, tão novos que nem eles próprios faziam idéia do vínculo que se estabeleceria, na relação predador/vitima, ou provedor/cliente. Estabelecida a conexão, ela entraria em cena. Orgulhava-se de deixar poucos escaparem. Seu nome estava no painel dos bem-sucedidos do mês, há oito meses. Batia levemente com a caneta nos dentes, enquanto pensava no próximo. Seria homem, mulher, nem um, nem outro? Jovem, velho, crédulo, desconfiado?

Tuuut, tuuut, tuuut, click. Silêncio…

Com essa Katia não contava. Esperava um alô, um pronto ou pelo menos um gemido. Silêncio não era bom sinal. Um dia pegara um que apenas fungava.

- Alô! – ela tentou.

- Ommmmmmm... – ?

- Alô, há alguém aí? – ela tentou novamente.

- Ommmmmmm... – duplo “?”.

Seria a criança da casa colocando um boneco para mugir no fone? Ela já ia desligar e tentar outro número, quando ouviu uma estranha voz:

- Simmmmmmm?

- Desculpe-me, senhor. Estava ouvindo um ruído, deve estar acontecendo defeito na linha.

- Era um mantra.

- É o seu filho? – ela gostava de entrar na intimidade das vítimas. Facilitava as vendas.

- Não, é uma sílaba religiosa do Om mani padme hum.

- Percebo! – disse ela, alegremente, sem nada perceber.

- Com quem eu estaria falando? – ela seguiu.

- Sou Kalki, o décimo avatar de Vishnu!

- Percebo, Senhor Cáqui?

- Não, é Kalki, ká-a-ele-ká-i!

- Percebo, Senhor Kalki.

- Ommmmmmm...

O zumbido começou novamente. Kátia começou a ficar preocupada. Clientes muito esquisitos faziam-na perder muito tempo. Era apenas uma comissão, ao invés de cinco ou seis, em uma hora. Mas, gostava de desafios, e esse era um deles.

- Com o que o senhor estaria trabalhando?

- Sou espadachim.

- Percebo, o senhor está trabalhando em um circo...

- Não, sou o último avatar de Vishnu, o Preservador, o que ainda estava por vir, o espadachim sobre o cavalo, seguindo Sidarta Gautama!

- Ah, o senhor trabalha naquela construtora, aquela daquele negócio do governo...

- Ommmmmmm...

- Bem, Senhor Kalki, o senhor estará recebendo, em sua casa, inteiramente sem despesas, o nosso cartão. O senhor estará ligando para nossa central de relacionamento, fazendo o desbloqueio e já estará usufruindo dele.

- Ommmmmmm...

- O senhor estaria tendo alguma dúvida, senhor Kalki?

- Na verdade, tenho. Qual é o seu endereço?

- Bem, senhor Kalki. Essa informação é confidencial. Eu nem me chamo Kátia, na verdade. O senhor entende desse negócio de avatar, não é? Sou um avatar da empresa, assim como o senhor é um avatar do tal de, como é mesmo?

- Vishnu, o Preservador!

- Isso, mas por que o senhor gostaria de saber meu endereço? – disse ela, adivinhando a resposta. Ouvindo sua voz, ninguém conseguiria associá-la à aparência real. Divertia-se com isso.

- Minha missão na Terra é governar um novo mundo, após eliminar este. Não sabia por onde começar, mas agora, já sei!




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19.7.07

Os Especialistas


Os Especialistas

Por Paulo Heuser


Eles aparecem em qualquer roda de conversa, mesmo quando não há roda. Sobressaem em qualquer discussão, na proporção direta da polêmica. São os Especialistas. Deveríamos chamá-los de generalistas, pois entendem de tudo. Porém, entendem tudo de tudo. É o que os torna Especialistas. São os especialistas universais, que dominam qualquer assunto. Sabem onde surgiram o sanduíche Farroupilha e o hábito de grudar tatu sob a classe da escola. Os especialistas – minúsculos – dominam apenas uma ou duas áreas do conhecimento humano. Assim são os médicos especialistas. O oftalmologista entende de olho, o neurologista entende de nervos, o ortopedista entende de gesso. Há médicos generalistas, que entendem de tudo um pouco, recorrendo aos médicos especialistas que entendem muito de pouco, caso julgarem necessário. Contudo, quase não há médicos Especialistas, pois aprendem a medir sua ignorância.

Os Especialistas surgem daqueles que não estudaram as disciplinas, os leigos. Ignoram a ignorância. Assim, podem externar qualquer coisa com a máxima convicção, sem freios internos. Sentem-se à vontade. Normalmente falam alto, no limiar do grito. Não opinam, exaram sentenças de última instância. Última e única, sem dar margem aos recursos. O que mais irrita os generalistas, e os apenas especialistas, é o fato de os Especialistas sempre estão certos. Ou, pelo menos, incontestes. Ninguém tem coragem de contestá-los, pois ignorantes da própria ignorância, ignoram também o processo dialético. Quando o impossível ameaça acontecer, apesar da impossibilidade, os Especialistas realizam convenientes adaptações da realidade. Passam a viver num mundo de para-realidades, no qual escolhem a mais conveniente.

Um autêntico Especialista desconfia da opinião do médico, seja de generalista ou de especialista. Aliás, o Especialista não crê em médico generalista, vai direto ao especialista, levando exames não-solicitados, auto-entrevista, diagnóstico, prognóstico e determinação do tratamento. O Especialista só vai ao médico para obter uma receita, já que o ignorante farmacêutico ignora sua Especialidade.

O futebol é um campo fértil para os Especialistas. Conhecem até os calos dos jogadores. Sabem quem é a mãe do juiz e a amante do dirigente. O Pan ofereceu excelente oportunidade para que os Especialistas mostrassem sua Especialidade nos mais variados e incomuns esportes, como badmington e bola de gude olímpica. Criticam a forma como o sujeito segurava o cabo da raquete e o balanceamento das plumas da peteca.

Nenhuma área do conhecimento humano atrai mais Especialistas do que a aviação após um acidente aéreo. Descobrimos Especialistas na TV, no elevador, no táxi, no restaurante, na fila. Três minutos após o acidente, eles já têm certeza sobre as causas que levaram ao desastre. Especialistas não morrem nos acidentes aéreos, pois não entrariam naquele avião, daquela companhia, com aquele piloto, com aquele lanche, para aquele aeroporto, controlado por aquele controlador, governado por aquele governo e oposto por aquela oposição. Seria muita ignorância!


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18.7.07

Impacto profundo

Impacto profundo

Por Paulo Heuser


Cada vez que noticiam uma dessas desgraças aéreas, procuro me lembrar de algo pitoresco da minha curta carreira de piloto privado, como contraponto. Foi fácil lembrar as inesquecíveis – será um pleonasmo vicioso? – festas de banho de óleo do Aeroclube Santa Cruz, na cidade de mesmo nome. Após o primeiro vôo solo, o manicaca (aprendiz de piloto) tomava um banho de óleo de motor usado, guardado especialmente para esse fim. Com certeza, ninguém se esquece do primeiro banho de óleo de motor. À noite, o recém-lubrificado devia pagar um churrasco para todo o pessoal do aeroclube.


O churrasco era assado pelo Seu Geib, misto de zelador, ecônomo, assador e controlador de vôo. Pois o Seu Geib dominava uma técnica interessante para reduzir as despesas com a festa. Consistia em servir apenas pão, durante uma hora. A seguir, uma hora servindo salada de batatas. Finalmente, quando a revolução se avizinhava, vinha a carne. Assisti a uma cena impressionante, quando o Hildo Ney foi garfado na mão, ao tentar conquistar seu quinhão. Alguém não pode esperar sua vez.


Não sei se foi proposital, mas agendaram meu banho de óleo para o dia do baile de debutantes do Clube União, evento imperdível para quem estava rondando os 18. Baile de gala, por sinal. Apesar de todos os esforços para remover o óleo do corpo, através de estopa embebida em sei lá o quê, ducha com sabão mecânico, banheira com Rinso e, finalmente, um banho convencional, algo sobrou. Descobri que algo sobrara, durante o baile, quando o colarinho e os punhos da camisa branca tornaram-se pretos como a borboleta. O cheiro de oficina mecânica também chamava à atenção. Fui atração no baile, porém não fiz muito sucesso com as meninas.


O impacto profundo ocorreu em outra festa de banho de óleo, quando eu já havia completado o curso. Como de hábito, o chope corria solto. E na cabana do aeroclube não havia toaletes. Os mais próximos ficavam no hangar, do outro lado do pátio de estacionamento das aeronaves. Certo, dos teco-tecos. Lá pelas tantas, bateu a preguiça de caminhar até o hangar. Fiz o que o pessoal costumava fazer, saí pela porta dos fundos da cabana e me dirigi ao mato de eucaliptos. Reinava um breu completo. Não havia luz do lado de fora e deveria ser época de Lua Nova. Dei mais alguns passos, em meio à escuridão, pois sabia que não havia árvores nos próximos metros. Realmente, não havia árvores. Porém, alguém cavara o buraco. Um profundo buraco, que fez o chão sumir debaixo dos meus pés. Desorientado, tateando em meio ao barro, concluí que não era apenas um buraco, era uma imensa vala, que ia da casa de combustível até algum local próximo do hangar. Tive de percorrê-la, para sair lá de dentro, tendo apenas as estrelas por companheiras. Acabei indo ao hangar, para retirar um pouco do barro.


Quando voltei à cabana, com parte das roupas molhadas, reparei que eu não havia sido o primeiro, nem seria o último a cair naquela vala. Havia mais gente com roupas molhadas e sapatos embarrados. E o sorriso maroto do Seu Geib dizia tudo.



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17.7.07

Terraplenada

Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 26/07/07:
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdEdicao=1221&intIdConteudo=79380
Terraplenada

Por Paulo Heuser


O recente terremoto ocorrido no Japão trouxe imagens impressionantes de devastação da infra-estrutura das cidades atingidas. Fica-se a imaginar por que as pessoas voltam para suas casas completamente destruídas. Sofrerão novamente, com novos abalos, nos próximos anos? Não têm medo? Trata-se de caso diferente daquele observado nas devastações provocadas pelas guerras, civis ou forâneas. As guerras geralmente apresentam um fim, comemorado com o povo nas ruas. Algumas não terminam, caso dos conflitos étnicos ou de interesse alienígena, como os do Oriente Médio. No geral, após as guerras a população reconstrói suas casas, na esperança de que novo conflito não virá. Terremotos se repetem, inesperadamente. Cataclismos provocados pela natureza e as guerras são eventos distintos, tanto pela sua previsibilidade como pela sua repetição.

Às vezes o raio cai duas vezes no mesmo lugar. Tome-se o exemplo da linda cidade de Reims, na região de Champagne, França. Reims foi palco de terríveis combates nas duas guerras mundiais. Quem hoje anda pelas suas belas ruas arborizadas, nada percebe, senão as marcas deixadas nos monumentos, como na fantástica catedral de Notre Dame. Reconstruíram a cidade, duas vezes.

O que dizer do povo de Nagasaki e Hiroshima, no Japão, e Dresden, no vale do Elba, Alemanha? Viram o fogo consumir suas cidades e seus habitantes. As duas primeiras foram o teste de campo das primeiras bombas atômicas, matando 170 mil pessoas. A terceira, alvo de duas mil toneladas de bombas, muitas incendiárias, matando cerca de 200 mil pessoas, pelas estimativas pós-guerra. Nos três casos, como sempre acontece nas guerras, quem sofreu foi a população civil. Mesmo nos modernos bombardeios cirúrgicos quem sofre é a população civil, pois destruído o poder controlador, assume a barbárie do terror dos grupos que tentam assumir o controle. Talvez por isso, as alterações mais recentes da Convenção de Genebra se focaram nos direitos humanos da população civil.

Uma breve leitura das manchetes nos permite observar que nossas instituições foram terraplenadas, em decorrência de uma guerra civil não declarada, apenas lutada. Somos uma nova Dresden, com as construções em pé, apesar de pichadas, e as instituições arrasadas pelo constante e ininterrupto bombardeio com artefatos de efeito moral. Não aquelas bombas de efeito moral utilizadas no controle dos distúrbios. No nosso caso, são bombas que eliminam a ética, queimando as instituições e a norma. Nagasaki, Hiroshima e Dresden foram arrasadas em apenas um dia de trabalho das forças aéreas aliadas. Nós somos bombardeados faz muito tempo, silenciosamente, lentamente. Contudo, o estrago já se faz ver, em todas as instituições que compõem o País. As cidades japonesas foram bombardeadas pelos norte-americanos. Dresden, pelos ingleses e pelos norte-americanos, a pedido da Rússia. E nós, somos bombardeados a mando de quem?

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16.7.07

O presente de Elizabeto

Foto: Rui Rezende - www.fotosdachapada.com



O presente de Elizabeto

Por Paulo Heuser


Eleutério deu duro na roça, de sol a sol. Chamá-lo de agricultor implicava certo otimismo. Garimpeiro, talvez. A cultura de qualquer coisa era dura, naquele solo árido do Nordeste. A terra se assemelhava à argila cozida, seca e quebradiça. Eleutério só perseverou por causa dos filhos. Nove bocas abertas esperando pelo alimento que, por vezes, não vinha. Ele passou muitas noites acordado, tentando tapar os ouvidos para aquele choro de fome, choro de miséria. Foi esse chorou que o motivou a garimpar plantas naquela região inóspita. Não foi em vão. Dos nove, sete vingaram. Dois se foram, tragados pelo redemoinho da miséria.

Dos sete filhos do Eleutério que vingaram, o Elizabeto foi o que lhe deu mais orgulho. Ele era a prova viva de que a garimpagem de plantas havia valido a pena. Eleutério estudou em Anagualândia, desde os sete anos, graças à intervenção divina, ou dos representantes Dele na Terra. Adotado pelo colégio religioso, Elizabeto viu-se frente a frente com as maravilhas da cultura e da ciência. O mundo abriu-se para ele, após o mestrado em Antropologia. Ele tentou explicar ao pai o que estudava, através das cartas que enviava a Carontelândia, mas era muito difícil fazê-lo entender, por se tratar de coisa abstrata. Eleutério conhecia apenas o mundo real, onde o sol nascia e se punha, sem dar margem a abstrações. Parte dos primeiros salários de professor foi investida em uma poupança para que o filho realizasse um dos sonhos do pai: comprar uma cabra. A cada carta recebida, e lida pelo padre, Eleutério teve mais certeza do acerto. Após uma delas, encheu-se de um misto de medo e orgulho. Medo porque Elizabeto viajaria para o outro lado do mar, orgulho porque Elizabeto fora o escolhido para fazer doutorado, patrocinado pelos Invasores Sem Fronteiras, Ong européia. Elizabeto seria doutor!

As cartas minguaram, enquanto a saudade cresceu. Elizabeto andava muito ocupado nos estudos. Passados três meses, veio uma carta dizendo que ele fora contratado por uma grande companhia que tinha interesses de investimento no Brasil. Assim, Elizabeto ficaria morando na Europa. Eleutério não sabia se ficava feliz pelo sucesso do filho, ou triste por não tornar a vê-lo tão cedo. No seu estado de saúde, carcomido pela miséria, talvez nunca voltasse a vê-lo, de qualquer forma. Ledo engano. Na carta seguinte veio algo mais: bilhetes de passagens aéreas para que Eleutério e Raimunda Nonata, sua mulher, fossem visitar o amado filho. Eleutério custou a entender que aqueles pedaços de papel lhes permitiriam ver um novo mundo: o Velho Mundo. O padre teve de lhes explicar que precisariam de passaportes e malas, coisas que desconheciam, pois nunca haviam viajado. Nasceram em Carontelândia e lá morreriam, sem nunca haver saído, caso o filho não os tirasse dali, mesmo que por apenas alguns dias. Junto com a passagem veio um cheque, que lhes permitiu cobrir as despesas para a viagem.

Três semanas depois, Eleutério e Raimunda Nonata deixaram o País, rumo à Europa. Fariam conexão em Madri, antes de chegarem ao seu destino final. Levaram as malas surradas, emprestadas pelo padre, e uma caixa de papelão contendo a grande surpresa para o filho. Levaram algo que ele muito apreciava: frutas-do-conde. Ao retirar a bagagem em Madri, após muita confusão, Eleutério resolveu levar a caixa das frutas-do-conde como bagagem de mão, já que ela parecia maltratada pelo manuseio como bagagem despachada. Tudo ia às mil maravilhas, até que passaram pelo raio-X dos pertences de mão. Para o pai do Elizabeto, 11 de Setembro era dia de São Jacinto e 11 de março, dia de São Eulógio. Atocha seria algo para se queimar, alumiando o caminho. Talvez por isso o nervoso Eleutério respondeu equivocadamente à pergunta feita pelo apavorado oficial que operava o aparelho, indagando sobre o que diabos havia naquela caixa. Assustado com todo aquele aparato, e desconhecendo a língua, o pobre homem gritou o nome do destino da viagem: Granada!

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13.7.07

Alcatraz?


Alcatraz?

Por Paulo Heuser


Sextas-feiras são dias diferentes. E esta, 13, não fugiu à regra. Após tentarem me assassinar no trânsito, diversas vezes, ingressei na batalha da Riachuelo, novamente. Lá estavam novamente os caminhões de entregas, estacionados por toda parte. Naus corsárias entregando a pilhagem. Até aí, tudo bem. Já me acostumei com o congestionamento diário. Acabei de sair do viaduto que tem faixa de passagem para pedestres e parada de lotações. Por que não sigo por outro caminho? Porque não há outro, para chegar à garagem. Contudo, hoje houve um novo fato, assustador, por sinal.

Eu já havia reparado nas estranhas pessoas que amanhecem na Riachuelo. Como baratas flagradas pelo acendimento repentino da luz, elas andam de forma errática, caem sobre os automóveis estacionados e agarram-se aos postes, na tentativa de permanecem de pé. Seus labirintos apresentam sérias disfunções. Os olhos dessas baratas humanas lembram aqueles olhos das... baratas. Já olhou uma barata, olho no olho? É bem assim. Quando conseguimos vê-los. Geralmente estão cobertos por capuzes que não têm apenas a função de protegê-los contra o frio matinal deste inverno.

Pois hoje as baratas entraram em luta, aos bandos. Começaram pelo passeio público, do lado esquerdo, atravessaram a Riachuelo e estabeleceram um campo de batalha na esquina da Vigário. A turma do deixa disso e mata de uma vez apareceu logo, somando-se à confusão generalizada. E eu parado ali, assistindo a tudo de camarote, me borrando de medo, no Cirque du Soleil da vida real. Sem rede, sem ingresso nem tapis rouge. Lá só havia asfalto rouge de sangue, sem tapete. Procurei não respirar. Não olhei para os lados. Fingi apenas que estava esperando o sinal abrir, o que não deixou de ser verdade. As baratas respeitaram a legislação de trânsito, pelo menos. Quando o sinal mudou para o verde, foram brigar na Vigário, obsequiosamente deixando a passagem livre na Riachuelo. Havia pelo menos uma barata ninja, que fazia cinematográficos movimentos circulares com as pernas. Acertava apenas paredes, latões de lixo e postes. Não sei como, não acertou nenhum carro, apesar de rodopiar no meio deles. Deve ser um dublê de Kung Fú. Lugar confuso aquele, entre Dr. Flores e a Vigário. Será que tem algo a ver com o nome de um bar que por lá se instalou: Alcatrass (sic)?

A sexta-feira prosseguiu como deveria prosseguir a de número 13. Recebi uma mala-direta. Malas indiretas são aquelas que seguem enquanto o dono fica, ou vice-versa. A mala-direta que recebi começou com o texto: “Este contato é para ajudar você a deixar uma questão importante completamente resolvida”. Interessante, pois veio de um crematório. Oferecem até cartão fidelidade! Será um aviso?

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La revolución


La Revolución

Por Paulo Heuser


- Viva la revolución!

- Viva a revolução, camarada chefe! – em uníssono.


- Hoy tenemos una muy importante fecha a comemorar: Lo cumpleaños de lá Gran Revolución!


- Por que você fala nesse portunhol, camarada chefe?


- Porque es la língua de las más grandes revoluciones del mondo! Es la língua de Sierra Madre, de Los Andes y de lo Morro de lo Vidigal, de onde descieram los nuestros más grandes heróis!


- Morro do Vidigal, camarada chefe?


- Si, los lehítimos donos de las tierras descieram de las montañas de las Américas, para promoher la libertación!


- Camarada chefe, mondo não é italiano? Não seria mundo, mesmo em portunhol?


- Para la revolución, no hay língua! Es una língua de todos, inclusive delle Brigate Rossi!


- Ih, camarada chefe, você arranha melhor italiano que portunhol!


- La revolución non arraña, elaotra rasga! Elaotra crava las garras de la liberdad en la piel de la carne imperialista ianque!


- Qual é a agenda da reunião, camarada chefe?


- El paredón!


- Calma, camarada chefe. O pessoal anda aprontando algumas, mas não é para tudo isso!


- Alguién tien que consertar el maldito paredón de lo palácio. El paredón esta rahado, precisando de una argamassita!


- Ufa, camarada chefe, pensei que o senhor estivesse mandando fuzilar os camaradas que andaram aprontando! Pode deixar, contratarei alguém para consertar o muro.


- En verdad, los camaradas no aprontam, elesotros libertam las manifestaciones populares.


- Mas, camarada chefe, eles estão sendo acusados de roubo...


- No! No es roubo! Es la lehítima manifestación de las minorias oprimidas atraviez de los confiscos de lo capital corrupto de los imperialistas neocolonialistas. Viva la revolucíón!


Viva a revolução! – em uníssono.


- Mas camarada chefe, o povo anda meio descontente com o comportamento dos camaradas...


- El pueblo es fruto de la revolución, que es algo molto mahor que mieros comportamientos individuales de los camaradas libertadores! El pueblo es facto gerador y sumidoro de la democrácia popular de la libertación! No podemos oprimir los camaradas que confiscam el capital de los corruptos!


- Eles estão embolsando o confisco, camarada chefe!


- Si, lá distribuición de la rienda hace parte de la lehítima revolución proletária!


- Isso não é ilegal, camarada chefe?


- Lá legalidad no puede sobreporse a la liberdad de espreción de las minorias oprimidas. Viva la revolución!


- Viva a revolução! – em uníssono.


- Bien, hega de discussiónes, consertem el paredón, y peçam la conta!


- A conta está aqui, camarada chefe, é o Partido que vai pagá-la?


- Si, pero, quién foi lo maldito hicho de la p..... que robó mi carteira?





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10.7.07

Teozinho e a formiga


Teozinho e a formiga

Por Paulo Heuser


Todos os que tiveram infância, e mesmo os que não tiveram, conhecem a parábola da Cigarra e da Formiga. É importante não confundi-la com a hipérbole da Cigarra e da Formiga, pois a primeira tem equação do tipo (x – h)**2 = 4p(y – k), enquanto a segunda segue conforme a equação Ax**2 + Bxy + Cy**2 + Dx + Ey + F = 0. Evidentemente, apresentam apenas a cigarra e a formiga em comum. Ambas as figuras cônicas nada têm a ver com o Teozinho, filho do Raimundo. Estabelecidos os parâmetros iniciais da parábola, seguimos o desenvolvimento da história.

Teozinho nunca quis estudar Administração de Empresas, com ênfase em Parques Temáticos, como desejava Raimundo. O rapaz preferiu estudar Agronomia. Raimundo concordou, sem outra opção, pois respeitava o desejo do filho. Que fosse agrônomo, se era o que desejava. Formado, Teozinho planejou seu futuro. Apesar da insistência de Raimundo, não queria participar da Cotra, para a qual fora convidado como sócio estagiário. Um contrato de experiência de três meses.

- Quero me fazer por mim mesmo! – seria descendente de italianos?

Raimundo respeitou o desejo do filho e deixou que ele fizesse o que planejara: um negócio relacionado aos produtos naturais. Fazia sentido, pois o rapaz estudara Agronomia. A única coisa que Teozinho pediu, foi o acesso à empresa de publicidade que mantinha a conta da Cotra. Raimundo ligou para Boston Olivério, o dono da BO/Bresil, e pediu-lhe que atendesse às necessidades do filho, no que precisasse. Não queria nem saber do que se tratava. Poderia descontar tudo da conta dele, já que não misturaria família e cooperativa.

Passaram-se 24 dias. Raimundo chegou em casa, chutou os sapatos para os lados, ligou a tv e pensou em assistir ao noticiário das 8h23. Uma fabulosa propaganda lhe chamou à atenção. Mostrava quatro crianças correndo pelo campo florido, uma eurasiana, uma africana, uma indiana e uma havaiana. Uma maravilhosa melodia auto-ajudante, recheada de violinos e kenigís, melava o quadro impressionista. Impossível ignorá-la. As quatro Anas corriam em direção aos quatro maravilhosos pais, todos sorridentes, que lhes alcançaram pacotes cúbicos embrulhados em papéis de temas florais com grandes fitas coloridas, em formas de topes. Quatro vistosas mães assistiam a tudo, andando em balanços dependurados numa majestosa figueira, aplaudindo e rindo, em vestidos florais esvoaçantes e amplos chapéus de festa no campo.

- Céus, o que estarão vendendo? – disse Raimundo, para si mesmo.

Como que em resposta, veio uma voz celestial saindo da tv:

- Seus filhos merecem nada menos do que a Alternativa Naturum, a opção de respeito à Natureza. Não lhes dê menos do que o futuro. – o final da frase ecoou.

Na manhã seguinte, enquanto tomava café, Raimundo assistiu novamente ao comercial. Estava estampado também no jornal, página inteira, bem como nos outdoors das ruas. Ele notou também a fila de quatro quarteirões que se espichava até uma loja Eight-eighteen do bairro. Seria uma liquidação de cerveja vencida? Ele não chegou a ver a placa que anunciava a Alternativa Naturum.

Quando chegou ao seu escritório na Cotra, Dona Carmem lhe avisou que o Doutor Theobaldo estava na linha três. Pudera, era a única.

- Sim? Raimundo falando...

- E aí, Pai?

- Teozinho, é você?

- Não, Pai, é o seu outro filho único!

- Que história de doutor é essa?

- É a secretária, Pai. Ela insiste em me chamar de doutor...

- A Dona Carmem?

- Não, Pai. É a minha secretária...

- Você tem secretária? Para quê?

- Para organizar minha vida. Desde que a Alternativa Naturum explodiu, ando sempre ocupado...

- Foi você que lançou aquele negócio?

- Na verdade, fui eu.

- O que é isso, afinal? Na propaganda não aparece!

- Bem, Pai. Resolvi seguir seu conselho e bolar um produto que fosse simples e ao mesmo tempo chamasse as pessoas para comprá-lo. Apelei para a volta à Natureza.

- Certo, meu filho. Mas o que afinal está naquela caixa?

- A Natureza. Tudo necessário para realizar um experimento natural de sobrevivência das espécies. Um sachê de capim, um sachê de formigas cortadeiras hibernando e um sachê de emergência.

- Como funciona?

- É bem simples, Pai. Você coloca o sachê de sementes de capim num vaso de terra, vendido opcionalmente, no Kit A-plus. Depois basta regar o capim, até que atinja 10 centímetros de altura. Tudo muito natural...

- E as formigas?

- Ora, Pai, quando o capim estiver do tamanho certo, basta colocar o sachê de formigas hibernando sobre ele. As formigas vão devorá-lo rapidamente. Tudo muito natural. A criança começa a estudar a cadeia alimentar.

- E o que acontece quando as formigas comerem todo o capim?

- É só comprar o Kit-B – refil de capim.

- Mas, não há perigo de as formigas se multiplicarem, exigindo cada vez mais capim?

- É claro, por isso vendemos embalagens do Kit-B por atacado, de 10 kg de capim!

- E se as formigas fugirem ao controle, atacando outras plantas da casa?

- Aí entra o sachê de emergência.

- O que ele contém?

- Veneno contra formigas cortadeiras, é claro!

- Aí termina o Kit?

- Ora, Pai, parece idiota! Aí você pode comprar outro sachê de formigas hibernando, o Kit-C.

Raimundo falou qualquer coisa e desligou. Virou a cadeira giratória, olhando para o rio, enquanto pensava:

- Criei um monstro!





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Travessia pelas trevas


Travessia pelas trevas

Por Paulo Heuser


O guia de turismo Lonely Planet, sobre a Itália, diz textualmente que somente um louco destemido deve se aventurar a dirigir em Roma. Esse guia, e outras fontes semelhantes, dão suas razões:

Os romanos convergem sem ligar as setas de direção;

Não respeitam a distância mínima do veículo que vai à frente;

Não respeitam faixas para pedestres;

Nem sempre respeitam as vias preferenciais;

Fecham os veículos que ultrapassam;

Buzinam e xingam Deus e a mãe;

Andam em ziguezague;

Excedem a velocidade permitida;

Não respeitam a sinalização de tráfego;

Estacionam onde não é permitido;

O autêntico motorista romano desconhece os espelhos retrovisores.

Ou seja, lá nos sentimos em casa! Voltamos ao aconchego do nosso trânsito. Os romanos também devem sentir-se em casa, quando dirigem por aqui - Sto a casa!. Estranharão os xingamentos, com certeza. Aqui são menos religiosos. Estranharão outro aspecto onde nossos esquemas de trânsito diferem.

O mesmo guia Lonely Planet dá dicas aos loucos que, mesmo avisados, insistem em dirigir na Cidade Eterna, com seus eternos congestionamentos. O guia estabelece uma regra básica para sair vivo de Roma: estabelecer contato visual com o motorista ou com o pedestre. Como princípio, não param nas faixas de pedestre, principalmente para pessoas idosas, inválidos, crianças ou mulheres grávidas. Na França se vê mulheres com carrinhos de bebê atravessando na faixa de pedestres sem olhar para os lados, em sinal de profunda crença nas instituições.
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Voltando à Itália, há uma espécie de código paralelo de trânsito, que estabelece a preferência mediante troca de olhares. O pedestre pode aventurar-se na faixa desde que consiga olhar diretamente para os olhos do motorista, olho no olho. Por incrível que pareça, funciona. Eles param, quando encarados. Funciona também entre veículos, nos cruzamentos. Quem olhar primeiro, tem a preferência, por uma minúscula fração de tempo. Por isso, nunca tente olhar ao mesmo tempo, dá colisão. Como acontece com todas as regras tácitas, não se deve acreditar piamente nelas. Porém, nunca tente atravessar a rua em Roma sem olhar diretamente para os motoristas. Eles não perdoam tal falta de conhecimento das regras de etiqueta viária. Por via das dúvidas, atravesse quando não vier veículo algum e prefira andar de metro ou o trem, nos quais não é necessário encarar o condutor.

Um romano não atravessaria ruas movimentadas por aqui. Ficaria horas tentando encarar os motoristas escondidos por detrás dos vidros escuros.
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8.7.07

Sorria, você está na tv


Sorria, você está na tv


Por Paulo Heuser



O principado de Mônaco tem a maior densidade populacional do mundo. Há mais de 16 mil habitantes por km2. As pessoas se amontoam em camadas, naquele pequeno paraíso de menos de 2 km2 de área. É o segundo menor país do mundo, perde apenas para o Vaticano, com seus 0,44 km2 de área. O resultado dessa concentração humana é uma arquitetura estilo panacéia em camadas, lasanha de diversos recheios. Prédios amontoam-se sobre outros. Prensado entre a França e o mar, ao lado de Nice, nos Alpes Marítimos da Costa Azul, Mônaco lembra aqueles clubes sociais localizados nas áreas centrais das grandes cidades. Como não há mais espaço lateral, crescem para cima. Neles o sujeito sai da piscina térmica, cruza pela sala do jogo de xadrez, pelo salão das veteranas do chá, pela chapelaria, pega o corredor ao lado da cozinha do salão menor, atravessa a sala dos escoteiros e, finalmente, chega ao vestiário, cinco andares acima. Seco, pelo menos. A água evaporou-se pelo caminho. Pois Mônaco é mais ou menos assim. O fato de situar-se entre dois contrafortes de dimensões respeitáveis, ajuda a aumentar a impressão de estarmos sempre à beira do precipício, mesmo quando se está no banheiro. Há até praia em Mônaco. Para usá-la, basta solicitar uma senha, com a devida antecedência. Estão liberando vagas para janeiro de 2018.

O que impressiona em Mônaco é sensação de nunca estarmos sozinhos. Em cada canto, em cada curva, em cada penhasco, há alguém. À população fixa somam-se os turistas, milhares de turistas querendo aproveitar cada metro quadrado do principado. Justiça seja feita, o lugar é muito bonito, limpo, organizado e caro. Abriga também a maior densidade de automóveis Rolls-Royce do mundo. Mônaco atrai os endinheirados, por ser paraíso fiscal.

A menor criminalidade do mundo contribui para a tranqüilidade que reina em conjunto com o príncipe. Fica todo mundo sorrindo, com um ar de paz. Talvez por isso, Jürgen chamava tanto à atenção na mesa do pequeno restaurante na Rue Emile de Loth, em Mônaco-Ville. Ele não tocou na comida. Estava sozinho e parecia à beira de um ataque de nervos. Aliás, sempre fico imaginando como seria um ataque de nervos. Milhares de coisas tubulares esbranquiçadas marchando como minhocas? Minhocas à parte, Jürgen enrolava uma mão na outra, nervosamente. Estava muito pálido também, coisa inimaginável para um europeu do norte, naqueles dias ensolarados de primavera. Ele deveria estar vermelho como camarão. Personificava o retrato da dor, emoldurado pelo paraíso. Certamente o homem estava em sérios apuros. Depois, descobri que ele estava naquele estado exatamente por não estar mais em apuros. Estivera, antes, mas não estava mais. Parece confuso, mas havia uma explicação. Comiserado, fiz aquilo que provavelmente não faria em outro lugar. Perguntei-lhe o que estava acontecendo. Ele estremeceu, enquanto respondia à pergunta:

- Sou alemão, de Lübeck, em Schleswig-Holstein, e fiz algo muito errado.

Sim, deveria ter feito mesmo, pois se encolheu quase em posição fetal. O que poderia ele ter feito de tão horrível? Contorcendo-se, em agonia, continuou:

- Me esqueci do mapa da cidade, no hotel.

E daí, pensei eu, como alguém pode se perder em um lugar pequeno e cheio de sinalização como aquele? Ele pareceu adivinhar meus pensamentos e seguiu narrando a sua desgraça:

- Eu fiquei com vontade de urinar, e não sabia onde.

- Por que não foi a um restaurante? – perguntei o óbvio.

- Não havia nenhum aberto, naquele horário. Procurei por todo lugar, até em uma igreja. Não havia toalete. Pensei que encontrara um, mas me disseram que era o confessionário. Não sou católico, pensei que era um banheiro químico de madeira.

- Você urinou lá dentro? – perguntei-lhe, visivelmente espantado.

- Nein, nunca! Não faria isso. Respeito a casa de Deus, mesmo que seja a dos outros! – ele parecia bastante ofendido.

- Certo, mas como resolveu seu problema?

- Sei que é muito errado urinar fora do toalete, mas eu não agüentava mais, quando entrei naquela galeria comercial com todas as lojas fechadas, por ser muito cedo.

- E você urinou na galeria? Onde?

- Eu sei que foi muito errado, mas urinei na parede, em um canto. Não havia ninguém lá. Fui educado para nunca, mas nunca mesmo, fazer algo assim!

Foi então que entendi o drama do homem. Ele quebrara uma regra fundamental, internalizada nos mais profundos porões do castelo da sua ética: nunca mijar na parede de uma galeria deserta em Mônaco.

- Ainda bem que ninguém viu! – Disse ele.

Eu não quis aumentar a desgraça do coitado, mas tive de lhe dizer algo que muitos desconhecem:

- Jürgen, tenho que lhe dar uma péssima notícia: em Mônaco nunca se está sozinho, mesmo em uma galeria aparentemente deserta.

- Mas, não havia ninguém lá!

- Jürgen, em Mônaco há câmeras de vídeo em todos os locais públicos, inclusive no interior das galerias, garagens, corredores de prédios e igrejas...







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