31.10.06

O Voto do Rengo

O Voto do Rengo

Por Paulo Heuser

Quis o destino que eu ganhasse uma tala de gesso na perna, às vésperas do segundo turno das Eleições 2006. Gesso só tem graça em busto de deusa grega, rodapé de teto e na perna dos outros. Recebi ordens médicas para não pisar de maneira nenhuma com o pé direito. Votaria com o pé esquerdo então? Seria uma mensagem do destino, mancomunado com o médico?

Seria minha primeira abstenção nas não sei quantas eleições. Coisa cômoda, não é? Passar um domingo tranqüilo, sem tapete de santinhos nem velhinhas indutoras nas esquinas. Tantas coisas a fazer. Dar um passeio de cadeira de rodas na Redenção, servindo de poste de pipi para todos lulus presentes. Poderia furar a fila da galeteria da moda, às 13 horas e assistir ao filme na primeira fila do cinema. São privilégios dos temporariamente (espero eu) inabilitados fisicamente. Há também o outro lado da moeda. Começando pelo banheiro. E terminando nele também. O banho num pé só é um espetáculo a ser filmado. Aquele filme plástico que se utiliza na cozinha foi inventado para o banho do entalado, que não deve ser confundido com o empalado. Enrola-se toda a perna com aquilo e cobre-se tudo com um saco de lixo de 100 litros, vedando com fita de fraldas, preferencialmente aquelas com desenhos de bichinhos. Fica mais bonitinho.
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Vedado o pacote, resta entrar no box do banheiro, de muletas e pulando sobre o degrau. Esta é a melhor parte. Depois é só relaxar, segurando cada muleta com uma das mãos, enquanto passa sabonete e xampu com as outras, as mesmas que abrem e fecham torneiras e pegam a toalha. Secar-se é muito fácil, desde que haja muito vento, preferencialmente quente.

Não me dei por vencido no domingo. Esqueci todos os maravilhosos programas e decidi votar. Não seria uma mísera perna o que limitaria de forma tão truculenta o pleno exercício da cidadania. Além do que, esse pessoal está habilitado a lidar com esses problemas, não são marinheiros de primeira viagem. Mas eu era, pelo menos com uma perna.

O carro me deixou em frente à porta do colégio onde está minha seção eleitoral. Enquanto descia consegui ouvir a buzinaria dos que estavam atrás, certamente imaginando o que aquele sujeito queria ali, de muletas. Atrapalhar o trânsito, com certeza. Tudo pela democracia. Vamos em frente. Surpresa! Havia rampas de acesso para cadeirantes, que podiam ser utilizadas pelos muletantes como eu. Plec, plec, fui subindo a rampa em direção à democracia. A dor crescia à medida que avançava, mas não há democracia sem sacrifício. Dei uma parada para gemer melhor, escorado na parede. Pessoas passavam olhando curiosas. Mais duas caminhadas e duas paradas e enxergo a placa da minha seção. Nessas alturas a dor era tanta que eu já estava achando o voto indireto mais simpático.

Dei sorte, apenas duas pessoas na fila, uma senhora que fez questão de dar o lugar, ao me ver, e um sujeito com cara de coronel das SS que me olhou de cima a baixo enquanto pensava consigo mesmo: “o que esse defeito ambulante quer aqui?”. Lá dentro foi tudo mais simples, utilizando a terceira mão para entregar o título, assinar e apertar os botões da democracia. Feito o trim-trim e recolhidos os documentos, restou voltar. Dos eventos da volta, uma repetição de paradas e gemidos, apenas um merece destaque. Eu posso jurar que aquela mulher que subia a rampa caminhando alegremente, e me pediu para lhe dar lugar, pensava: “Sai da frente, rengo!” Foi nesse momento que eu gritei: viva a ditadura!

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Informação e Mercado

Informação e Mercado

Por Paulo Heuser

Câmbio e bolsa de valores são instituições extremamente sensíveis à conjuntura internacional. Também eram sensíveis à conjuntura nacional, até há pouco. Algo fez com que as bolsas e o câmbio ignorassem completamente os últimos dois anos da conjuntura política, apesar das inúmeras tentativas de desestabilizá-los. Não houve CPI que conseguisse impedir uma grande estabilidade nos mercados. Esta estabilidade deveu-se à falta de perspectiva de grandes mudanças no cenário econômico.

Tanto na bolsa como no câmbio, há quem ganha e há quem perde. Quando alguém ganha, outro perde. Quem compra na alta perde, quem compra na baixa ganha, pelo menos no curto prazo. Não há mágica, há informação. O hábil investidor sabe reagir rápido às mudanças e prevê as reações do mercado frente às mudanças de cenário. Vulcões, terremotos, pestes, guerras – menos a do Iraque, que já virou nicho de mercado -, tudo o que pode afetar o desempenho econômico afeta a bolsa, e o câmbio, em conseqüência.

Diz o folclore que um antigo ministro da fazenda solicitava à Polícia Federal que soltasse boatos sobre derrames de cédulas de dólares falsas para evitar a sangria na poupança, sempre no final do mês. É o tipo de factóide que mexe com os mercados.

As épocas de mercados estáveis são boas para os investidores sérios. São muito ruins para os especuladores, no entanto. Sem abalos, não há como lucrar muito da noite para o dia. O economista norte-americano Alan Greenspan (1926-) chefiou o FED – banco central dos EUA – entre 1987 e 2006. Cada vez que Greenspan abria a boca o mundo ouvia calado e as bolsas reagiam imediatamente, subindo ou caindo. Os EUA continuam a ser a locomotiva da economia mundial. Devido à capacidade do Greenspan de espalhar a (geralmente) má nova, pelo menos para o Terceiro Mundo, não resisti à tentação de apelidá-lo de Shitspam econômico – espalhador de, digamos assim, subprodutos da digestão, vá lá, econômica. A globalização fez com que uma azia do todo poderoso chefe do FED fosse sentida pelo mais humilde trabalhador de qualquer setor da economia dos outros países. O sucessor de Greenspan, Ben Bernanke, mostra uma capacidade ainda maior de espalhar subprodutos da digestão, apesar do nome pouco dado a trocadilhos digestivos.

É impressionante o poder de abalo dos mercados que algumas palavras, ou a sutil ausência delas, podem produzir. É aí que os especuladores entram em cena, vendendo aqui, comprando ali. Realizando rápido, o lucro é grande e certo. Daí a importância da informação do que acontecerá, do que será dito e do que deixará de ser dito.

O governo de transição na esfera federal - dele para ele mesmo - parece já ter sua versão nacional do Greenspan.

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Creusa e o Sabiá

Creusa e o Sabiá
Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 09/11/2006:

Por Paulo Heuser

A futura mamãe sabiá coloca seus ovos no ninho, construído de acordo com o projeto contido na memória biológica, transferido de geração para geração.

Creusa dorme sob uma marquise, em cama improvisada com pedaços de caixas de papelão. Descobre estar grávida. Enquanto puder continuar se prostituindo, tudo bem. Depois, o futuro dirá. Depois é amanhã, distante do hoje.

O casal sabiá constrói seu ninho no interior de um orelhão, em São Paulo. Local abrigado do vento e da chuva, sabiamente escolhido.

Creusa reconstrói sua cama diariamente. Na semana passada conseguiu um colchão velho. Durou apenas duas noites. Foi levado enquanto fazia ponto na segunda esquina.

Um pássaro preto coloca mais cinco ovos no ninho, em algum momento de distração da mamãe sabiá.

Creusa perde parte da freguesia à medida que a barriga fica mais evidente. Descobre que há clientes com um gosto estranho. Perguntam se continuará por ali nos próximos meses.

A fêmea do sabiá choca todos os ovos, inclusive os do pássaro preto, sem distinção nem discriminação. O pessoal do bairro chama a companhia telefônica e um órgão de proteção ambiental.

Creusa começa a enfrentar dificuldades na sua profissão. Seus clientes nunca foram muito fiéis, mas agora sumiram de vez. Arrancam o carro quando notam a barriga mal-disfarçada sob a jaqueta de imitação de couro.

Uma bióloga analisa o problema que o casal sabiá criou ao instalar seu ninho no interior do único orelhão da rua. Conclui que o ninho não pode ser removido, sob pena da perda da ninhada dos sabiás e parasitas. Faz-se necessário interditar o orelhão, até 30 dias após o nascimento da prole sabiá.

Assistentes sociais tentam levar Creusa até um albergue. Ela recusa, perderá os dois últimos fregueses, estes assíduos, muito assíduos. Ela tem medo do jeito que a olham, mas pagam bem.

A companhia telefônica instala um novo orelhão próximo daquele onde está o ninho dos sabiás. Constrói uma cerca de tela ao redor do orelhão-maternidade para proteger o ninho, dos curiosos.

O condomínio do prédio onde Creusa dorme, sob a marquise, coloca uma grade de ferro para impedir que os moradores de rua se instalem ali. Creusa procura nova casa.

Esta historia não tem realmente um fim. Está sempre se repetindo. Bom para o bicho.

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30.10.06

A Grande Redação

A Grande Redação

Por Paulo Heuser

As escolas de ensino médio viram-se frente a um grande dilema. Para o quê preparariam seus alunos? Para o vestibular ou para a vida? Supondo que há vida após o vestibular, bem entendido. Muitas escolas transferiram a decisão aos pais dos alunos, realizando autênticos plebiscitos. Ocorreram profundas transformações na forma de aplicar os exercícios, naquelas onde o vestibular venceu. Passaram a aplicar os exercícios e as provas no formato das provas dos vestibulares das mais conceituadas universidades e escolas de nível superior do País, auxiliados pelos livros didáticos recheados com questões dos vestibulares do ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica.

As provas e os exercícios de escolha simples contribuíram para a produção de uma geração de alunos que conseguem ler. Quanto à escrita? Bem, aí a coisa se complicou. Criaram peritos nos x das questões, desde que os x não fizessem parte de uma equação presente em prova dissertativa. Alguns vestibulares trazem problemas cujas respostas estão sutilmente contidas nas próprias questões. Os alunos aplicados se saem bem nessas questões. Uma legião de espertos também se dá bem, mesmo os não tão aplicados. São os peritos em soluções de escolha simples, treinados pelos cursinhos. Decoram algumas propriedades que permitem soluções mais rápidas, sem grandes cálculos nem entendimento teórico.

Conquistada a vaga, vem a surra, conforme o curso e a universidade escolhidos. Ainda há provas dissertativas no ensino superior. E agora, como se escreve uma resposta?

A introdução da redação nas provas dos vestibulares foi uma tentativa de selecionar os candidatos alfabetizados. As escolas com ênfase no vestibular passaram a treinar seus alunos para a redação de textos, nos formatos estabelecidos pelas provas de vestibular. Algo melhorou, sem dúvida. Foram treinados, exaustivamente, na redação de textos com mais ou menos 40 linhas, não menos de 30 e não mais de 50 linhas.

Artemícrates - filho de Artemísia e Sócrates – foi inaugurar o Título de Eleitor. Havia se engalfinhado numa discussão política com os amigos, na noite anterior, no posto de gasolina (e de cerveja). Alguns defendiam o voto na nova tia do soco no ar, outros o voto no tradicional bigodudo dos gestos amplos. Ele sabia o que queria. Passada a ressaca do aquecimento para a eleição, levantou-se no início da tarde e foi aos fatos.

Acabrunhado, Artemícrates voltou meia hora depois que saiu. Seu abatimento não passou despercebido. Sócrates lhe perguntou sobre a experiência do exercício do direito e do dever do voto:

- Como te saíste, filho?

- Médio...

- Médio como? Votaste apenas para governador ou apenas para presidente?

- Pô pai, sacanagem aquilo lá! Eu não sabia que não era de cruzinha. E quando é de se escrever mandam a gente fazer de 30 a 50 linhas. Lá tinha apenas uma! E não havia letras, apenas números. Não sei se fui bem...

E a vida? A vida se acerta após o vestibular, se é que realmente há vida após o vestibular.

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28.10.06

A Carta

A Carta

Por Paulo Heuser

Faz mais de um ano que cruzo pela senhora que segura o olho. Ela sempre está sentada no mesmo lugar, na mesma avenida, cedo pela manhã. Falta apenas quando chove. O Minuano encanado não a espanta. Refiro-me a ela como “a senhora que segura o olho” porque é exatamente o que ela faz: segura o olho, um olho azul. Quando solta a pálpebra o olho se fecha. Como o outro, já fechado, cuja cor ignoro, pois nunca o vi aberto. Não há como disfarçar a curiosidade. Aprendi desde pequeno que não devemos encarar ostensivamente as deficiências alheias. Tento disfarçar, não sei se consigo.

Enquanto segura uma pálpebra aberta, com o polegar de uma das mãos, escreve com a mão restante. Concentrada, murmura algo enquanto escreve em folhas de papel A4 branco, utilizando canetas esferográficas azuis. Outro dia contei quatro delas na mão que segurava a pálpebra. Fico tentado a lhe perguntar sobre o que escreve. Seria um livro? Um livro sobre a bizarra experiência de enxergar o mundo apenas quando abre manualmente uma das persianas naturais?

Aprendemos cedo que na cidade grande cada um cuida da sua vida e segue seu caminho. Por outro lado, como seguí-lo ignorando cenas como essa? Por que senta ali, junto à fachada cega de um prédio comercial? Não está vestida nem age como indigente. Estará esperando alguém que a deixa ali para buscá-la depois? Vindo de onde, indo para onde?

Talvez seja outra daquelas pessoas que não vêm nem vão, apenas estão. Estão apenas fazendo parte do cenário de fundo, na nossa passagem. Se vão quando o cenário se vai. Normalmente são figurantes, as pessoas mais comuns na nossa vida. Cruzamos com elas diariamente, sabendo o que são, sem saber quem são. Como o jornaleiro, o chaveiro e a multidão de moribundos sociais. Não têm nomes, apenas apelidos, colecionados ao longo dos anos. Essa senhora pertence ao grupo dos figurantes surreais. Não tem apelido, é apenas a senhora que segura o olho.

Em algum dia da semana passada, passando a seu lado, consegui espichar o olho e descobri que escrevia cartas. Havia três ou quatro esparramadas pelo chão, outra redigia cuidadosamente. Cartas manuscritas com estrutura formal, começando pelo local e a data, em caligrafia caprichada, letras grandes e arredondadas. Não olhei muito, pois poderia estar violando a correspondência alheia, apesar de estar morrendo de curiosidade. Já pensei em esperar que o vento leve uma daquelas cartas esparramadas pelo chão, assim que eu possa juntá-las longe dali. Não poderia, no entanto. Seria uma invasão de privacidade inaceitável. Nada ali me diz respeito. Não posso interferir no cenário.

E se uma dessas cartas for endereçada a mim, respondendo às perguntas há muito guardadas?

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27.10.06

Cozinha Frugal

Cozinha Frugal

Por Paulo Heuser

Uma das maiores contribuições da Itália para o mundo foi o risoto. A maior foi a mulher italiana, sem dúvida. Rasgações de seda à parte, o risoto é um prato fantasticamente simples e sofisticado ao mesmo tempo. E pode-se fazer risoto de qualquer coisa. Cogumelos, frutos do mar, carne, tomates secos, morangos, tudo vai bem no risoto. Tudo mesmo. Folheando o caderno de gastronomia do jornal, constato que é verdade.

Mais uma das intermináveis receitas de risotos: 400g de arroz italiano, 200g de abóbora, 200g de urtigas frescas, sal a gosto, etc, etc. Tudo básico. Dos itens relacionados, só não tenho as urtigas frescas. Sempre posso apelar à vizinha: “Bom dia Dona Heloisa, a senhora não teria urtigas frescas para me emprestar? Hoje me pegaram no contra-pé, esqueci de comprá-las com o pão e o leite”. Dei-me mal, ela usara o resto no suflê de ontem. Se a vizinha não as tem, vamos ao mercado então. “Boa tarde! As urtigas estão fresquinhas?”. Esperava que dissessem: “Estão sim, o rapaz que as trouxe está cheio de urticárias, só de colhê-las!”. Mas ouvi um: “Estamos em falta, uma senhora passou por aqui e levou tudo!”. Seria a Dona Heloísa?

Ponto e barra de retrocesso. Urtigas frescas?

Li novamente, não seriam formigas? Não, são urtigas mesmo, frescas ainda por cima. Deve se tratar de um risoto realmente estimulante. Não, estimulante é fraco, urticante talvez seja melhor. Se a Banca 643 do mercado não as tem, aonde irei encontrá-las? O Seu Zé me sugeriu procurá-las no mato. Boa idéia, como descubro que cara tem uma urtiga? Esfregando as folhas na mão? Sempre há aquelas histórias sobre alguém que estava “apertado” e acabou descobrindo empiricamente a cara da urtiga, não exatamente na cara.

Caso não as encontre, haverá substituto? Os chefes de cozinha dirão: “Sem urtigas frescas, esqueça!”. Como não sou chefe da cozinha, ocorreu-me que poderia haver um substituto mais fácil de se obter: rúculas. Já sei, rúculas não queimam como urtigas, nem tem cara de urtigas. Aí é que entra a criatividade culinária. Urtigas queimam porque contêm ácido fórmico, produzido pelas formigas vermelhas (e pelas urtigas). Basta um pedaço de pão para atrair as formigas. Depois é só centrifugá-las, em qualquer centrifuga, dessas de laboratório mesmo, e extrair o ácido por destilação. Pode usar o destilador de pinga do vovô. Aspergindo o ácido sobre as folhas, - Voilà - temos urtigas sintéticas frescas. Como apenas o sujeito “apertado” deve lembrar-se da cara da urtiga, e olhe lá, a rúcula fórmica passa despercebida.

Está querendo saber por que alguém em sã consciência colocaria urtigas na receita? Bem, não sei a resposta. Tem algo a ver com o dia das bruxas. Certo, alguém que ofereça um prato desses só pode ser chamada de bruxa. O argumento de que a fervura retira o ácido não é muito convincente. Alguém deve ter provado esse negócio antes e errado o ponto de entrada da urtiga. Silenciou sobre o assunto. Ninguém conseguiu entender os gritos.

Cozinha chique é assim mesmo. Tem essas coisas de coar o molho no saco do aspirador de pó, adicionar raspas de palmilhas de botas velhas e musgo de telhado.

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25.10.06

Groenlândia Sunny Park

Groenlândia Sunny Park

Por Paulo Heuser

A poodle sacode-se toda na sacada, livrando-se das pulgas, reais ou virtuais. Dois dinossauros enfrentam-se em um debate político televisivo, sem som nem tom. Do aparelho de som, Lulu Santos canta "... Nada do que foi será...". Na mão, o exemplar da revista que traz a perturbadora entrevista com o pesquisador inglês James Lovelock (1919-), autor de Vingança de Gaia (2006). Pode haver algum elo comum entre toda essa miscelânea de sons, imagens e textos?

Lovelock acredita que a mudança climática da Terra já ultrapassou o ponto de retorno. Há quem o acuse de ser alarmista, quando prevê que aí por 2040 a Terra será um planeta inóspito. Oitenta por cento da humanidade desapareceria até o final do século. Ele alega que apenas reuniu os fatos e os expôs em linguagem acessível aos leigos. Sintetizou os resultados de trabalhos isolados e especializados, que chegariam a uma parte restrita da população. Começamos a enfrentar os não tão primeiros efeitos da mudança climática. Secas terríveis alternam-se com inundações igualmente terríveis. Gente morre de calor nos países de clima temperado, efeito estufa e tudo aquilo que aparece diariamente nos jornais.

As causas do aquecimento global aparentemente são muitas, uma primordial, de origem geológica, e outras provocadas pela passagem do homem. O homem deve ter apressado a coisa, enchendo o planeta com gente que rebenta tudo para alimentar-se e para alimentar os bolsos sem fundo. É difícil falar em culpa. O homem faz parte disso. Não pode ser separado do resto do planeta e do resto das espécies. Na Hipótese de Gaia, pela qual a Terra seria um organismo vivo complexo, o homem é parte, como são as outras criaturas que habitam sua biosfera. Por esta hipótese, Gaia se livraria daquilo que tira o equilíbrio do conjunto. O nome Gaia foi inspirado na deusa grega da Terra.

Se for possível culpar alguém, pela parte não-geológica, o homem merece a culpa. Derrubamos as florestas, queimamos combustíveis fósseis, não renováveis, ainda bem que não o são, desperdiçamos água e todas aquelas outras coisas. Não damos ouvidos ao Nacional Kid, Ultraman e outros tantos defensores do planeta. Julgamos José Lutzemberguer e Gert Schinke, com sua motocicleta vermelha, figuras excêntricas que lutavam contra moinhos de um imaginário muito longínquo. Este se torna uma realidade próxima, os moinhos se tornaram dragões.

Considerando as previsões de Lovelock, quem pensa em investimentos, no longo prazo, deverá considerar seriamente a comprar de terras na Groenlândia, Sibéria e outros poucos locais que ainda serão habitáveis. Dá para imaginar o sucesso dos novos condomínios, como o Groenlândia Sunny Park, e os novos resorts de praia, como o Islândia Beach?

Lovelock não estará aí em 2040, portanto pode prever o que quiser, sem o perigo de ser cobrado depois. Os dinossauros no embate do debate não falam em ecologia. Lulu Santos continua: "... tudo muda o tempo todo no mundo... Não adianta fugir nem mentir a si mesmo...".

Gaia, à moda da poodle, sacode-se para se livrar das pulgas, digo, dos homens, mesmo que tarde demais.

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24.10.06

Grandes Problemas, Pequenas Soluções

Grandes Problemas, Pequenas Soluções

Por Paulo Heuser

Foi difícil ficar em casa neste último domingo de sol. Tudo convidava a um passeio. Como não ia a Ipanema, faz algum tempo, para lá me dirigi. Onde estacionar, em meio a tantos carros? Acabei encontrando uma vaga logo após aquele morro que divide Ipanema do Guarujá. Encontrei uma vaga e três flanelinhas. Ou melhor, flanelões. O que me chamava de tio era pelo menos dez anos mais velho do que eu.

Não sei quantos carros há em Porto Alegre, mas deve haver três flanelinhas para cada um. Surgem do nada, como baratas saindo dos bueiros. Há um eufemismo legal que os denomina “guardadores de carros”. Uma forma de institucionalizar a extorsão. A expressão “Tá bem cuidado, tio”, significa que ele não pretende atentar contra o seu patrimônio, desde que pago para tanto. Não pode responder pelos outros dois terços – os outros dois flanelas -, no entanto. Tem a crise, sabe?

Ninguém gosta dos flanelas, nem eles mesmos, pois rosnam uns para os outros e trocam imprecações na disputa pelos melhores pontos. Os melhores pontos são conquistados pelos jovens, mais fortes e competitivos. Numa verdadeira injustiça social, a rapaziada sarada conquista a Padre Chagas, relegando os mais idosos às pizzarias do Muito Baixo Morro Ricaldone.

Enquanto tomava um sorvete, extorquido pela segunda vez no dia, percebi que pode haver solução para o problema. Os flanelas não cuidam de coisa nenhuma, além do próprio ponto. Portanto, estando ou não estando lá, pouca ou nenhuma diferença farão. Não estando, os desagradáveis contatos pessoais serão evitados e a presença de pessoas paradas junto aos carros chamará à atenção, melhorando a segurança. Já sei, há o problema social dos que jamais conseguiram um emprego - alguns jamais tentaram -, e toda ladainha que vem atrás disto.

Certo, que o problema social existe, isso existe. Não dá para ignorá-lo. Aí vem a segunda medida: a criação do FNEIMF – Fundo Nacional da Extorsão Institucionalizada no Meio-fio. Este fundo, a fundo profundamente perdido, pagaria um salário a cada flanela que abandonasse as ruas. Algo semelhante ao seguro-defeso, pagos aos pescadores durante a época do defeso, adaptado àqueles que pescam otários junto ao meio-fio.

A receita para a criação e manutenção do fundo seria obtida através da criação da CPMF – Contribuição Provisória do Meio-Fio, com alíquota de 0,38 % sobre todas transações monetárias relativas aos veículos, como compra e venda, emplacamento, prêmios de seguros, manutenção, aquisição de combustíveis, lubrificantes, bebidas alcoólicas nas lojas de conveniência, pedágios, IPVA, multas e quaisquer outras despesas relacionadas. Seriam considerados veículos, para fins de aplicação da CPMF, quaisquer coisas que tenham rodas, como veículos automotores, bicicletas, carrinhos de bebê, carroças de tração animal e ou humana, carrinhos de controle remoto, carrinhos de mão, carrinhos de supermercado, carrinhos de feira, carrinhos de chá, patins normais ou em linha e skates. Carrinho no futebol não, não tem rodas.

Para receber o seguro-defeso do meio-fio, bastaria requerê-lo, sem grandes burocracias. Como pode ser simples a solução dos problemas sociais!

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23.10.06

O Profeta e o Harmônio

O Profeta e o Harmônio

Por Paulo Heuser

Gênesis, Êxodo, Levítico, ..., Jó, Salmos, ..., Ageu, Zacarias e Malaquias. Ufa! Lembro da ordem de quase todos os 36 livros do Velho Testamento, até hoje. Sempre me esqueço do Sofonias. Por vezes, me lembro do Obadias, mas do Sofonias, nunca. O ato de decorar a ordem dos livros do Velho Testamento da Bíblia não foi exatamente um ato de extrema religiosidade. Deveu-se, na verdade, à peraltice praticada enquanto cursava o Ensino Confirmatório, na Igreja Luterana. Em um mês de junho, enquanto aguardávamos a chegada do pastor, estouramos alguns rojões defronte à igreja, comemorando inconscientemente a efeméride do apóstolo João, este do Novo Testamento. Não chegamos a conhecer a ira do Senhor, mas a ira do pastor caiu impiedosamente sobre nós. O castigo imposto foi decorar a ordem de todos os livros do velho testamento, incluindo o sempre esquecido Sofonias.

O pastor era um sujeito que realmente impressionava. Ninguém dormia durante suas preleções, nem após. Severo, com grossas sobrancelhas, óculos de lentes grossas, voz firme e retumbante, realizava sermões que davam o sentido exato à palavra.

No local do curso, havia um instrumento musical curiosíssimo, chamado harmônio. Para quem nunca viu, ou seja, todo mundo, um harmônio é um instrumento semelhante ao órgão de tubos, só que não há tubos. Agora ficou claro, não é? No harmônio há teclado, como em um piano ou órgão, que aciona um sistema de palhetas e fole, produzindo o som. Para ajudar, há diversas chaves com legendas em alemão gótico. Na base há um grupo de pedais, sendo que um destes faz a função de bomba de ar.

O harmônio exercia uma atração irresistível sobre os alunos. Por quê? Creio que era porque não saía som algum dali. Enquanto o temido pastor não chegava, ficávamos tentando tirar qualquer som que fosse. Nada, o máximo que saía era um pfffffff... Até o dia em que alguém resolveu pedalar enquanto tentava. Eis que o harmônio criou vida, emitindo uma série de notas musicais. Um som alto e rico. Alto demais para aquele momento em que o pastor começava a se dirigir à casa paroquial, local do curso. Por alguma razão que até hoje desconheço, aquela estranha máquina continuava tocando sozinha, sempre a mesma nota, quando abandonada, lembrando uma solitária oitava trombeta do Apocalipse. O segredo da nossa salvação, de mais algum castigo, estava naquelas chaves com inscrições em gótico. A salvação chegou no momento exato. Alguém foi até o harmônio e mexeu em todas as chaves do painel, conseguindo transformar o terrível toar em um novo pfffffff..., logo desvanecido. No momento exato em que o pastor adentrou o local.

Há um profeta do Velho Testamento que está na moda. É um dos denominados Pequenos Profetas, vizinho de Bíblia de Miquéias e Habacuque. Vira e mexe, recebo alguma coisa pelo e-mail, referente ao profeta Naum, enviado por Deus (o profeta, não o e-mail) para prever a destruição de Nínive, capital da Assíria. Estranho apenas é o fato de que o nome de Naum esteja sendo invocado pelos jovens, em textos que aparentemente nada têm a ver com o Velho Testamento.

Ontem ainda, vi um texto contendo a frase: “Eu tbm naum sabia q tinha aquela enquete pra votar...” (Sic). Fará parte de uma nova profecia, escrita em alguma flor perdida e extremamente inculta do Lácio?

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22.10.06

Dessa Água Nunca Beberei!

Dessa Água Nunca Beberei!

Por Paulo Heuser

Quantas vezes afirmamos, com toda convicção do mundo, que não beberíamos d’alguma água que cruzou nossa vida? Jamais usarei pantufas de ursinho! Nunca comerei arroz-de-leite! Chuchu jamais entrará no meu prato! Dançar ao som da Egüinha Pocotó? Sem chance.

Há cláusulas pétreas no nosso contrato de vida que nos impedem de fazer determinadas coisas. Algumas, como a do não matarás, são mais pétreas do que outras. Entra ano, sai ano, nos surpreendemos dançando ao som da Egüinha Pocotó, vestindo pantufas de ursinho, comendo chuchu e... não, isso é nojento demais... arroz-de-leite não! Eis uma cláusula realmente pétrea, entre outras areníticas, digamos.

Nossas cláusulas pétreas atuam como empecilho definitivo à tão sonhada globalização. Sonhada pelos que vendem coisas globalizadas, pelo menos. O Tio Sam quer vender fast food para os tuaregues, que não querem vender gafanhotos fritos aos noruegueses. É a mão única e visível do mercado globalizado. Meu plano secreto de vingança contra o Tio Sam é a abertura de uma rede de fast food de arroz-de-leite, na terra dele: a Milky Rice Way – Via Rizi-Láctea.

Noutro dia assisti a um documentário sobre os costumes do povo de algum daqueles Azerbaijões, ou outro baijão qualquer. Documentaram uma festa de casamento, era para ser uma, eu creio. Seguindo rígidos preceitos religiosos, os homens festejaram numa grande tenda, isolados das mulheres, que festejavam em outra. Festerê danado, coisa louca mesmo. Cada um ganhou uma garrafa plástica de água mineral sem gás e ficaram conversando, sentados no chão. Faltou apenas o arroz-de-leite para completar a orgia. Qualquer promoter de festas poderia enriquecer lá.

Penso em tudo isso para fugir um pouco da minha água da vez. No meu contrato de vida há uma cláusula que me proíbe de atuar na política. Coisa pétrea, dogmática mesmo. Quando se entra na política, todas as cláusulas deixam de ser pétreas. Tornam-se gelatinosas. Com exceção daquela do arroz-de-leite, bem entendido. Pois é, agora me convidam para concorrer a um cargo eletivo, como candidato a vice. Não, está bem claro lá no contrato: política não! Daí argumentaram bastante, nem sei por que foram se lembrar de mim. Vice não dá nada, não é? Não dava, agora pode dar notícia.

Ainda não sei bem o que fazer. Meu lado mais acomodado diz para ignorar o convite e cumprir o contrato à risca. O outro está cutucando, o tempo todo, para que eu aceite. Já estou quase indo com ele. Afinal, não é todo dia que me convidam para compor uma chapa, concorrendo à vice-presidência da pasta social da paróquia.

Pronto, lá se vai outra cláusula pétrea. Só não comerei arroz-de-leite!

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21.10.06

Alphons e Alvin

Alphons e Alvin

Por Paulo Heuser

Ambeves, filha do meu amigo Raimundo, casou com um alemão, o Alphons. Alemão legítimo, nascido na terra de Goethe, daqueles que caminham emitindo um som de trombone. Pela boca! Como boa parte dos alemães, pelo menos dos que não usam turbante, Alphons é maníaco pela organização e pela prevenção de tudo que possa dar errado. Fez seguro de vida, todos tipos de seguros patrimoniais e até mesmo algumas formas mais pitorescas de seguro, como os das plantas e animais domésticos, inclusive da gralha. Sim, Alphons tinha uma gralha. Digo tinha, pois morreu.

O primeiro sinal de que algo não ia bem foi o cinzeiro limpo. Apenas cinzas, nada de baganas. A gralha parou de roubar baganas. Ambeves foi a primeira a notar, pois teve de limpar o cinzeiro. O que foi amolação para ela, foi motivo de preocupação para Alphons. “Se o Kralha parrou de roupar tem alko eraado!”. Pensou em levá-la (a gralha) ao veterinário no dia seguinte. Tarde demais. Na manhã seguinte, Ambeves ouviu um choro violento, espasmódico e compulsivo. Descobriu o Alphons sentado ao lado do cadáver da amada gralha. Alemães não costumam chorar, mas quando o fazem, vira uma catástrofe. Aliás, em alemão, uma Katastrophe, coisa infinitamente pior do que a versão local, sem “ká” nem “pê-agá”.

Mas, Katastrophen são catástrofes, organização é organização. Alphons parou de chorar sobre o corpo inerte da gralha e fez aquilo que o momento exigia: comunicar à seguradora o óbito da gralha. Consultando sua pequena agenda, encontrou o quatro-mil-e-tanto e discou.

- Você discou para a Central de Atendimento da Prudência Seguradora. Para comunicar sinistro, tecle dois; Para renovar sua apólice automaticamente, tecle cinco; Para solicitar um corretor virtual, tecle sete; Para encomendar esfihas de carne, tecle nove; Para repetir o menu, tecle zero.

- Alô, Alphons no aparelho.

Silêncio...

- O Kralha moreu!

Silêncio...

- Alô, o Kralha moreu, ist tot (está morta)!

Silêncio...

Após sete minutos de aperta aqui, aperta ali, o novo software Empaty IIIB, de próxima geração, detectou uma anomalia na conversação (monólogo) do Alphons e a transferiu automaticamente para uma atendente humana. Ou quase. Cybernia VIII era um software avançado de simulação de atendente humano, conectada diretamente ao Empaty IIIB, utilizando redes neurais de inteligência artificial. Uma voz calma e surpreendentemente sensual interrompeu os gritos de Alphons, a estas alturas, tão vermelho como só um alemão que toca trombone e toma cerveja sabe ficar.

- Bom dia, esta é Cybernia às suas ordens. Em que posso ajudar?

- É Alphons, o Kralha moreu, ist tot!

- Entendo... O senhor deseja comunicar um sinistro?

- Ele moreu!

- Percebo... o Sr. Élfons O Cralha morreu. Meus profundos sentimentos, em meu nome e da Prudência Seguradora. O senhor poderia informar o nome completo do Sr. Élfons? O “O” seria de Oliveira?

No desespero, Alphons teve de pedir ajuda ao deus nórdico de plantão:

- Odin, hilf mir! – Odin, me ajude!

- Entendo... Odinilfmir... O nome completo seria Élfons Odinilfmir Cralha? A apólice está em nome do Sr. Élfons?

Após 27 minutos de um caótico diálogo a central de atendimento travou. Cybernia repetia apenas “entendo...”. Empaty IIIB deu tela azul em todos os terminais das seguradoras integradas na rede. Os técnicos levaram três dias para restabelecer o sistema.

Alphons acabou ganhando uma gralha, nova em folha, e o número telefônico do diretor da Prudência Seguradora, para o caso de um eventual novo comunicado de sinistro. Quem perdeu nesta história foi Alvin Toffler (1928-), autor da trilogia O Choque do Futuro (1970), A Terceira Onda (1980) e Powershift (1990), tendo de rever alguns conceitos que defendeu durante mais de 30 anos. Alphons demonstrou que a automação das funções humanas apresenta alguns problemas de difícil solução. Nas escolas superiores de Administração, fala-se de uma continuação de Terceira Onda. O título provisório seria O Tsunami Alphons.

Ambeves continua chateada. A nova gralha não rouba baganas.

E-mail: pheuser@gmail.com

20.10.06

Revoltantes Rituais

Revoltantes Rituais

Por Paulo Heuser

Hipérbole Degenerada voltara de uma missão exploratória no planeta RX8979A. Apesar de não ser a sua primeira missão extragaláctica, sempre voltava profundamente abalada psicologicamente. A barbárie dos povos que habitam esses planetas é revoltante. Presenciara um ritual em RX8979A que deixaria qualquer ser civilizado profundamente revoltado. Teve de se conter para não exterminar aquela raça. Tolerância e autocontrole fizeram parte do seu treinamento.

Agora, de volta ao lar, iniciou o relato da missão. Como descrever aquilo, sem provocar nojo e mal-estar generalizado? Escolheu bem as palavras, mas não pode deixar de ser fiel às cenas que presenciara. RX8979A abriga inúmeras espécies vivas, mas há uma dominante. Exatamente esta, que aparenta um certo grau de inteligência, mostra-se absolutamente repugnante. Fisicamente, são de dar nojo, já à primeira vista. Tem o corpo disforme e estranhamente articulado, coberto por uma membrana que não melhora em nada a aparência. Inúmeros tipos de apêndices saem do corpo, apresentando simetria, ou não, alguns de orifícios que contém líquidos viscosos. Superando o mal-estar, Hipérbole descreveu o ritual:

“Quando cai a noite, os seres, objeto deste relatório, reúnem-se em bandos. Os locais ritualísticos têm aparência muito semelhante, determinando um padrão aparente. Após apoiarem seus corpos disformes em estruturas padronizadas, inicia-se o ritual propriamente dito. Através de um repugnante orifício, situado ao lado do que parece ser a parte responsável pela inteligência primitiva, introduzem uma mistura azeotrópica de C2H6O e H2O. Este ato parece predispor os seres à barbárie em si, quando estraçalham outros seres utilizando apêndices simétricos que se projetam das laterais do corpo. A selvageria do ato é indescritível. Introduzem os pedaços dos seres através do mesmo orifício, auxiliados por um apêndice vermelho pegajoso. No interior do orifício situam-se estruturas esbranquiçadas de projeções simétricas, cobertas com hidroxiapatita, que aparentemente complementam a função dos apêndices simétricos, na dilaceração dos corpos das suas vítimas. Destes ainda escorrem fluidos viscerais, o que torna o quadro ainda mais repugnante, para qualquer ser civilizado.

Considerando o exposto acima, não recomendo a inclusão do planeta RX8979A no processo de galactização, justificando minha recomendação pela incompatibilidade evidente de hábitos e costumes com outras culturas já galactizadas.

Atenciosamente, Hipérbole Degenerada, Observadora Exobiológica Juramentada e Concursada de Primeira Classe”.

Hipérbole Degenerada, chamada Círculo, pelos íntimos, não dormiu naquela noite. A lembrança daqueles corpos disformes não permitiu. Se ainda fossem hiperbólicos puros ou até mesmo ortorrômbicos, vá lá. Mas, oblongos e cheios de projeções?

Na primitiva linguagem utilizada pelos RX8979Aanos o relatório seria diferente. Algo como: “O pessoal se reuniu, tomou umas que outras, e mandou ver um churrasco”.

E-mail: peheuser@gmail.com

18.10.06

História, Ideologia e o Voto

História, Idealismo e o Voto
Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 20/10/2006
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=63483&intIdEdicao=985

Por Paulo Heuser

Alienação e desencanto são as características mais marcantes deste Pleito de 2006. O desencanto se traduz na ausência de militantes, pagos ou não, pelas ruas das cidades. Em 2002 assistimos às guerras de bandeiras nas esquinas. Em 2006, os raros portadores de bandeiras parecem ter uma certa vergonha de desfraldá-las. Há razões para tanto. O caixa ficou curto, as manchetes longas. A alienação pode ser observada através da esmagadora quantidade de votos obtida pelos candidatos que têm a seu favor(?) unicamente a condição de nunca terem ocupado cargo eletivo. Estes candidatos deixaram para trás outros de longa história.

A História é o problema central desta questão. Não apenas a história dos candidatos. Há de se referir à História Geral. Dificilmente encontraremos candidatos ou agremiações que não se alinhem, pelo menos nas suas crenças socioeconômicas fundamentais, com alguma grande corrente do passado. Não me refiro aos dogmas, que, por sua natureza pétrea, impedem qualquer discussão ou reforma. Candidatos que acreditam em nada, nada farão, de útil pelo menos.

A maior parte das correntes ideológicas presentes no País, e em boa parte do mundo ocidental, deriva do Liberalismo ou do Marxismo. O liberalismo econômico pós-iluminista de Adam Smith (1723-1790), autor de Uma Investigação Sobre a Natureza e a Causa da Riqueza das Nações (1776), defende o laissez-faire – deixe fazer -, doutrina que prega a livre iniciativa e o estado minimalista. As idéias de Smith originaram o capitalismo. Outras correntes derivam das dialéticas, história e materialista, de Karl Marx (1818-1883), cuja maior obra foi O Capital (1872). Marx defendeu o trabalho do homem como fator de agregação de valor ao bem final. Das suas idéias derivaram o marxismo e o comunismo.

A História acabou reformando essas correntes, adaptando-as a novos tempos a partir de vivências práticas, corrigindo alguns vícios de origem e acrescentando novos. O eterno processo dialético aplicado tanto ao liberalismo como ao marxismo.

Quem estava certo? Ambos, parcialmente. Quem estava errado? Ambos, novamente. Há simpatizantes das duas grandes correntes e das suas recombinações. Há de se ter uma origem, no entanto. Voto consciente é aquele dado em favor de alguém que prega e acredita numa ideologia historicamente lastreada, mesmo que adaptada, e age de acordo com ela, seja esta seguidora de Adam Smith, Karl Marx ou das derivadas de ambos. É claro que ninguém mais espera ver seguidores de ambas as correntes no sentido estrito. Mas, os há.

Difícil mesmo tem sido a identificação do alinhamento ideológico dos candidatos, seja em decorrência da dissimulação, seja em decorrência das estranhas e inimagináveis composições partidárias de segunda hora, seja em decorrência dos seus atos. Será o processo dialético histórico de Marx operando? Ou a mão invisível do mercado de Smith?

E-mail: prheuser@gmail.com

17.10.06

Howard Carter e Eu

Howard Carter e Eu

Por Paulo Heuser

Quem não quis ser algo estranho, quando crescesse, que jogue a primeira pedra. Alguns amigos da infância sonhavam ser astronautas. Outros seriam caubóis do velho oeste. Havia quem quisesse tornar-se Zorro, Mandrake, legionário romano e até Sansão e Dalila. Sim, os dois ao mesmo tempo. Após assistir ao filme, julgava ser este o nome do personagem bíblico. Corria pela rua, gritando: - Sou o Sansão e Dalila!

Era uma época de sonhos e conflitos. Alguém me presenteara com um kit de PM – capacete, cassetete, algemas, coldre e pistola. Ah, eu ia me esquecendo do apito e do distintivo dourado. Alguns invejosos da rua começaram a chamar aquilo de “Penico Médio”. Quando a gozação se generalizou, fui obrigado a manter a ordem, utilizando o cassetete. Já estava de capacete mesmo. Brinquedos instrutivos aqueles.

Na biblioteca de casa havia um livro intitulado Deuses, Túmulos e Sábios (1949), de C.W. Ceram (1915-1972). Este livro me levou a escolher a profissão de arqueólogo, quando crescesse. Talvez foi esta a razão pela qual aceitei o convite feito por um amigo, tempos depois, na juventude, para auxiliar nas pesquisas de campo realizadas pelo professor responsável pelo museu do colégio. Sentia-me um novo Howard Carter – arqueólogo inglês - antes da descoberta da tumba do rei Tutankhamon. Eu não escavaria o Vale dos Reis, no Egito, é verdade. Escavaria uma roça em Candelária, RS, a procura de artefatos indígenas. Mas, até Carter deve ter iniciado em alguma lavoura no Egito.

Chegado o grande dia, creio que era um sábado, lá estávamos nós, embarcando num grande carro americano antigo, ao estilo dos táxis de Cuba. Tomamos a proa de Candelária, através de uma poeirenta e esburacada estrada. Fazia um calor senegalês. Para tentar melhorar um pouco a temperatura dentro da poderosa banheira, da década de 50 eu suponho, abri a ventarola, espécie de janelinha dianteira, comum nos carros da época. O grito: - Nããããoooo! – chegou tarde demais. O vidro da ventarola caiu e estilhaçou-se na estrada. Poderiam ter colado um aviso para não abrir. O resto da viagem transcorreu sem mais surpresas, pelo menos a parte rodoviária. O pó invadiu o carro todo, mas a temperatura ficou mais suportável.

Chegando nas proximidades da localidade alvo da emocionante expedição arqueológica, descobrimos que a última parte seria coberta a pé, carregando pás, bacias, peneiras e outros apetrechos. Após uns dois quilômetros havia uma pinguela sobre um córrego, feita com tronco de árvore, facilmente vencida. Mais algumas centenas de metros e chegamos a uma lavoura de milho, bem crescido. O proprietário das terras encontrara artefatos, como cacos de potes e pontas de flechas, ao arar o solo. Iniciamos os trabalhos exatamente no que parecia ser o centro da lavoura. Digo parecia ser porque não se enxergava nada além de uma sucessão de pés de milho mais altos do que nós.

Em meio aos pés de milho o calor era sufocante, tórrido, pois não corria vento. A saliva deu lugar à substância pastosa que grudava na boca. Os lábios ressecaram. Quando o sol estava a pino veio a boa nova. O professor-em-chefe trouxera cantis com água. Ficaram ao sol, mas melhor água quente do que nenhuma. Só que não era exatamente água. Era xarope de groselha, muito açucarado e muito pouco diluído, quase tão pastoso quanto a substância que sucedera a saliva. O orgulho no olhar do professor era tão visível quanto o nosso olhar de desespero. Havia de suportar a sede, pois Howard Carter cavara no deserto. Junto com o xarope vieram os sanduíches, ou melhor, mistos quentes, após a longa exposição ao sol. Não conseguíamos engoli-los, a substância pastosa não permitia. Resignados, voltamos ao trabalho, que consistia em cavar e peneirar a terra em locais demarcados e fotografados. Vez por outra se encontrava algo mais sólido, que era levado ao professor.

Aí pelas 14 horas bateu o desespero nos caçadores das tralhas perdidas. Até a substância pastosa se fora. A língua procurava desesperadamente por algo molhado. O colega que peneirava um pouco adiante sentou ao meu lado e me confidenciou que ouvia som de água corrente. Cochichou apenas, a voz não saía mais. Guiados pelo maravilhoso som, encontramos um córrego, logo após o milho, à sombra de algumas árvores. O tifo que se danasse! Mergulhamos inteiros naquela maravilha, bebendo a água sem medo.

Voltando à peneira, comecei a rever meus conceitos sobre arqueologia. No meio da tarde ouvimos gritos de júbilo vindos do local onde o professor deveria estar. Encontrara uma fogueira indígena! Via-se apenas terra, muita terra. Certamente não tínhamos o treinamento necessário para reconhecer uma fogueira indígena. Também não sonhávamos em levá-la ao museu. Não apenas a terra da superfície, pois acabamos cavando ao redor e levando um torrão enorme, decorado com um pé de milho, feito bolo de aniversário silvícola. Como carregar aquela monstruosidade? Encontraram uma tábua junto à casa do agricultor, após uma pequena expedição. Próximo do ocaso, nós voltamos alquebrados e queimados do sol, carregando as tralhas da vinda e o nosso novo troféu, o torrão. O professor distribuía ordens, como um Lorde Carnarvon – o financiador das expedições de Howard Carter – moderno, enquanto se deliciava com os últimos goles do xaropento capilé. As centenas de metros da ida agora se pareciam com centenas de quilômetros. O peso nos ombros, de séculos de cultura indígena, se fazia sentir.
Não chovera, mas o córrego se transformara em algo parecido com um rio. E a pinguela sumira. Alguém devia ter aberto uma taipa em alguma represa, situada córrego acima. Levamos algum tempo para encontrar um local semelhante a um passo-de-rio para a travessia. Carregando o torrão. O destino deste, cientificamente classificado como fogueira indígena, foi selado pela pedra coberta com limo, sobre a qual eu pisei. Quando consegui me levantar, ainda vi o resto de pé de milho afundando como um periscópio.

Voltamos em silêncio ao táxi cubano e tomamos a proa de casa, carregando apenas as tralhas. Em meio à poeira que entrava pela ventarola quebrada, decidi que não queria mais ser um novo Howard Carter. E juro ter visto uma lágrima escorrendo no rosto do emudecido Lorde Carnarvon, enquanto guiava o táxi cubano.

E-mail: prheuser@gmail.com

16.10.06

Quatro e Dezoito

Quatro e Dezoito

Por Paulo Heuser

Acordo às 4h18. Sempre às 4h18. Dentre as formas mais cruéis de tortura está a privação do sono. Já tentei dormir mais cedo. Não dá. Deito, rolo de um lado a outro da cama, olhando para o frio brilho do visor do despertador. Acabo dormindo tarde e acordando às 4h18. Pontualmente às 4h18.

Ainda na tentativa de provocar o sono, tentei ler a Dama das Camélias, de Dumas Filho. Apesar de reler a mesma página, durante mais de uma hora, o sono não veio. Passei aos clássicos de coleção-de-jornal. Nada, apenas a frustração de ter a certeza de acordar às 4h18.

O que pode ser mais torturante do que isto? O corpo amanhece dolorido. A mente ressente-se da falta de mais 1h42 de sono. Acordava às seis horas, plenamente disposto. Às 4h18 ainda estou um caco. Tento dormir novamente, mas a raiva e a perplexidade não o permitem.

Ontem tentava avançar até a terceira página do Dama das Camélias, quando algo me chamou a atenção na tv, que deixara ligada. Um fabuloso filme francês de ação intimista, com certeza. Ao som de um monólogo interminável recheado com sons que levam a biquinhos nos beiços, seguiam-se cenas incríveis de tinteiros, papéis, canetas e de um mata-borrão (ninguém sabe o que é?). Cada objeto era enfocado por cinco minutos, enquanto os biquinhos nos beiços se sucediam. Aleluia! Dormi no mata-borrão, portanto não sei dizer se apareceu mais alguma cena tórrida e emocionante como aquela. Faltou um abridor de cartas?

Só descobri que havia dormido mais cedo quando fui acordado pela passagem do caminhão de coleta de lixo. Aquele verdadeiro prodígio sonoro sempre comprime o lixo sob a minha janela. Aquilo faz tanto barulho que quase consegue abafar os gritos dos sujeitos que alimentam o monstro com mais sacos pretos. Eles comunicam-se entre si, e com o monstro, através de berros semelhantes aos emitidos pelos vaqueanos conduzindo manadas. Pronto, logo no dia em que consigo dormir um pouco mais cedo, esta droga de caminhão me acorda à meia-noite e meia. Tento fingir que ele não está lá. Em vão. Acabo levantando e indo ao banheiro. Por que ali não há tanto barulho? Olhando no espelho, percebo as olheiras decorrentes do sono interrompido. Tenho de conseguir uma cópia do filme francês, cujo título não sei. Será que funcionará novamente? Haverá algo além do mata-borrão?

Exatamente às 4h18 acordo novamente. Começo a entender o que o pessoal enfrenta quando vai à Escandinávia, no verão, e fica acordado durante dias a fio. Ainda bem que este suplício terá um fim.

Quando a primavera der lugar ao verão, esse maldito sabiá deixará de cantar às 4h18. Epa, lembrei-me de algo. O horário de verão ainda não começou! Às 3h18?

E-mail: prheuser@gmail.com

13.10.06

O Dilema do Prisioneiro

O Dilema do Prisioneiro

Por Paulo Heuser

Emocionante o final da história de Márcio José Ramos, ex-vigia do Porto Alegre Country Club, que ganhou uma casa nova devido ao reconhecimento da sua honestidade. Devolveu um envelope contendo seis mil dólares ao empresário que o perdera durante um jogo de golfe. Em que outro esporte um atleta perderia tal quantia? Uma associação de trabalhadores da construção civil acabou lhe doando uma casa, entre outras coisas. Nestes dias tão obscuros, eticamente falando, trata-se de um feito importante. Melhor seria se fosse fato corriqueiro. Mas, não o sendo, é justo que se premie aquele que tanto se destacou. E que foi chamado de idiota, devido à sua honestidade.

Não sei porque, lembrei-me do Dilema do Prisioneiro, ao ler a notícia sobre a premiação do justo. O Dilema do Prisioneiro é uma demonstração matemática de que nem sempre o que parece ser a melhor estratégia individual, dá os melhores resultados. Este teorema faz parte da Teoria dos Jogos. Em determinados problemas, como os oferecidos pelos mercados econômicos com diversos agentes, esta ciência procura encontrar as melhores situações estratégicas, levando em conta a existência de concorrentes com estratégias próprias e conflito pelos objetivos comuns. Quem notabilizou a Teoria dos Jogos foi John Nash, Nobel de Economia de 1994, cuja biografia inspirou o filme Uma Mente Brilhante (2001), de Ron Howard.

No Dilema do Prisioneiro, dois acusados por um crime menor, mas suspeitos de ter cometido também outro maior, são isolados em celas diferentes. A promotoria só dispõe de provas para condená-los a um ano de prisão, pena pelo crime menor. Se A delatar B, A sairá livre e B será condenado a três anos de prisão, pelo crime maior. Se B trair A, delatando-o, inverte-se a situação. Caso tanto A como B traírem-se mutuamente, cada um pagará pena de dois anos de prisão. Ou seja, a melhor estratégia individual seria a delação onde o outro não a pratique. Mas, sendo a melhor estratégia individual, ambos a utilizariam, acabando em perda geral, pois cada um ficaria preso por dois anos. Este é um tipo de jogo chamado de soma não-zero, que se aplica aos estudos em múltiplas áreas de conhecimento, como a Sociologia, a Economia e a Biologia.

Márcio acabou demonstrando o Dilema do Prisioneiro, na prática. Que cócega nos dedos sabe fazer um envelope com seis mil dólares. Ainda mais nos dedos de quem sente de perto o gosto da miséria. Márcio jogou com o que parecia ser a pior estratégia individual e levou o maior prêmio. Ponto para Nash que previu a existência de um ponto de equilíbrio - o melhor para todas as partes -, ponto para Márcio, que provou, contra tudo que se vê por aí, que há gente honesta. Ponto também para os que lhe doaram a casa. Com certeza, o ato rendeu-lhes, pelo menos, a publicidade.

Muhammad Yunus, Nobel da Paz 2006, com seu Grameen Bank, já concluíra que os pobres são os melhores pagadores de empréstimos, mantendo pontualidade superior a 97 por cento. Será a pobreza uma virtude ética?

Mas, o que marcou mesmo nesta história foi a cena do homem honesto chorando lágrimas de felicidade. Cena rara, extremamente rara.

11.10.06

Bratwurst Und Stetson

Bratwurst Und Stetson?

Por Paulo Heuser

Sala de espera do médico. Lugarzinho desagradável este. Gostamos tanto deste ambiente como gostamos de supermercados e funerárias, não necessariamente nesta ordem. Olho para o sujeito que acabou de entrar, cumprimentando-o com aquele boa tarde padrão de sala de espera. Qual será a pereba dele? Será grave, contagiosa? A mulher sentada à direita está preparando o bote. Vai puxar a conversa que não conseguiu travar comigo. Alguma troca de experiências sobre perebas. Quando entra outro sujeito, com uma pasta enorme, percebo que a coisa vai longe. Chegou o homem das amostras grátis e dos brindes. Ele sempre fura os horários marcados.

Alheio ao ataque, olho para a pilha de revistas com aparência sebenta. Por que não fornecem luvas para manusear revistas de consultório? Há uma revista de bordo Ícaro, do tempo em que o filho de Dédalo ainda não havia mergulhado no Egeu. Escolhi uma Isto É de – Cruzes! - 1999. Vou doar minhas revistas velhas ao médico. Ele parece precisar delas. E o filho dele poderá recortar coisas novas. Há um enorme artigo sobre a Festa do Peão Boiadeiro de Barretos. Já naquela época, quase dois milhões de pessoas acorriam á festa. Isto é, mais de um por cento da população do País! Haja agroboys e countrycinhas! Em apenas três dias haviam consumido dois milhões de latas de cerveja. E gastado horrores comprando chapéus da marca texana Stetson, bem como calças Wrangler e camisas Ralph Laurent. Mudaram o Texas para lá, com música e enormes fivelas de cinto. Nas esquinas, neo-texanos embriagados tentavam laçar, literalmente, as poucas mulheres que por lá se aventuravam. Um banho de cultura tradicionalista. Cada macaco no seu galho. Ou com o seu espelho? Lá, entre Alckmin e Lula, votariam no terceiro, George Bush, já que Lyndon Johnson se foi.

Cada etnia faz a sua festa. Os descendentes de italianos fazem a Festa da Uva, do Champanha, do Vinho, enquanto os descendentes de alemães fazem as Oktoberfest. Os tradicionalistas gaúchos têm a Semana Farroupilha e outros eventos culturais. Os afrodescendentes festejam o Carnaval e Iemanjá. Poloneses, portugueses e russos, todos tem seus eventos típicos. É a preservação da cultura pelos descendentes dos imigrantes. Por que os barretenses não podem manter sua cultura texana? São os ascendentes preservando a cultura dos futuros emigrantes. Na Oktoberfest de Blumenau, quem for em trajes típicos não paga ingresso. Se fizerem o mesmo em Barretos, a renda será zero.

Gosto muito da Oktoberfest. Pode-se sentar à sombra de uma árvore e comer Weisse Bratwurst (salsicha branca grelhada) com Sauerkraut (chucrute), batatas cozidas e pão preto. Com muita mostarda. Para não me engasgar, um chope. Ou dois, já que é fácil engasgar-se com o pão. Para os ouvidos, uma furiosa bandinha, preferencialmente um pouco desafinada pelo chope. Nas cidades de colonização mista ocorrem festivais maravilhosos, unindo culturas. Tendas oferecem o que há de melhor na gastronomia, música, dança e artesanato de cada cultura. Salsichas, espaguete, chucrute, galeto, polenta, churrasco, carreteiro, chope, cachaça ou vinho, vale tudo, dentro das tradições.

Só não esperem que eu vá trocar meu chapéu bávaro verde por um Stetson. Afinal, paguei 15 reais pelo meu, e já veio com uma pena! Tampouco esperem que eu troque Trink Brüderlein Trink, Funiculì Funiculà ou Canto Alegretense pelas Na Sola da Bota ou Vou Pra América.

Cada macaco no seu espelho.

E-mail: prheuser@gmail.com

9.10.06

Marquesas Portáteis

Marquesas Portáteis

Por Paulo Heuser

Não sou exatamente o tipo de sujeito que vive em comunidades. Descobri isso no Orkut. Devo ser o único usuário que tem apenas um amigo lá, eu próprio. Posso não ter facilitado muito as coisas, ao deixar de responder àquelas mensagens de pessoas conhecidas me convidando para alguma coisa. Mas, enfim, sou um usuário do Orkut.

Quando criei um blog para jogar meus textos fora, de forma mais ordenada, sempre tive a esperança de que alguém, além de mim, entrasse lá para lê-lo. Aquele tipo de esperança quase impossível, apenas quase. Quase não é tudo, é apenas quase. Como não sabia mesmo o número de acessos, nunca me preocupei muito. Até que outro dia alguém me sugeriu colocar um contador de acessos. Fiquei meio indeciso, a princípio. E se apenas eu, além de mim, estivesse acessando o blog? Eu sempre poderia iniciar o contador em 789 e acessar o blog várias vezes ao dia. Mas, meu ego, onde ficaria? Guardado na minha comunidade privê do Orkut? Afinal criei coragem e instalei. Descobri, impressionado, que vários acessos vinham sendo feitos, inclusive alguns internacionais. Meu blog é internacional!

Entusiasmado, comecei a atentar para os detalhes nos acessos. Calma, se você foi o outro que acessou meu blog, fique tranqüilo. Só aparece a parte inicial do endereço IP. Não tenho como identificá-lo. Pena, poderia lhe mandar cartões de felicitações nas efemérides mais importantes. Em compensação, o resto da estatística de acesso é bem detalhado, dando inclusive a página por onde o usuário entrou. Diversos usuários entraram pelo Google, através de pesquisas por argumentos. O que parecia ser uma decepção tornou-se diversão. Gente, vocês não imaginam o que as pessoas pesquisam através do Google!

Alguém de Terrugem, região de Lisboa, procurou por “gramofones em franca”. Incrivelmente, caiu no meu blog. Parabéns ao Google, eu não sonharia com tamanha capacidade de divulgar coisas estranhas. Outro de Faro, Portugal, procurava “logotipos peixarias”. Desenhe um peixe, homem, um peixe! De Lisboa também é um dos meus preferidos, procurando por “marquesas portáteis em promoção”. O que raios seriam marquesas portáteis? Não sabia do que se tratava, mas se estiverem mesmo em promoção, quem sabe, poderia levar umas duas ou três. Seriam bonecas infláveis vestidas em trajes da nobreza? Agora eu usei o Google. Marquesas são camas para massagistas. Viu, errei por pouco! Um usuário de Guarda, Portugal, procurava “máquinas para esmagar uvas”. Pena que não tenho o e-mail do gajo, pois poderia sugerir pares de pernas mecânicas. Há um mexicano que procura a “cura de la metodologia de las 5s de Hugo Maximo”. Fico feliz em saber que mais alguém pensa que 5s é uma coletânea de doenças (Sapinho na boca, Sarampo, Síndrome Osgood Schulatter, Síndrome de Parkinson e de Senhoras). Se ele caiu no texto que imagino, descobriu a cura.

Se alguém conhecer um sujeito de Luanda, Angola, por favor, lhe pergunte sobre o que esperava encontrar pesquisando no Google o argumento “parte ecológica de circuito que utiliza indicador de fusível queimado”.

E-mail: prheuser@gmail.com

Descendo a Rua

Descendo a Rua

Por Paulo Heuser

Descendo a rua vem a turba
Dançando e cantando marchas
De alegria e júbilo
Desde longe
Desde perto
Donde há gentes
De lá estão vindo
De lá virão
Defendem a queda do rei
Decidem ter novo rei
Dos estandartes tremulam
Doze panos coloridos
Dedicados às terras
De onde vêm os príncipes
Dedicando paixão
Durante suas vidas
Darão suas vidas
Derrotando as hordas
Das trevas sairão
Deixemos de paz
Deixemos de razão
Daremos lugar à paixão
Dominados pela emoção
Daremos lugar pois
Descendo a rua vem a turba
Dançando e cantando marchas
De alegria e júbilo

8.10.06

Quando o Futuro Chegou

Quando o Futuro Chegou
Publicada na Gazeta dos Sul, de Santa Cruz do Sul, em 13/10/2006
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=63069&intIdEdicao=979

Por Paulo Heuser

Tentei lembrar do nome de uma revista antiga, da década de 60, mas não consegui. Uma revista infantil trazendo previsões sobre a vida no futuro muito distante, o ano 2000. Minha maior preocupação era a possibilidade de não chegar a viver o ano 2000, já que estaria muito velho, com 45 anos de idade. Velho demais para os sonhos de alguém que beirava os 10. Fiquei realmente fascinado por alguns artigos daquelas revistas, que descreviam os meios de transporte do ano 2000.

Os passeios públicos fariam verdadeiros passeios – seriam móveis. O sujeito sairia de casa, pisaria no passeio, e seria imediatamente conduzido ao seu destino por um sistema de esteiras rolantes. Os carros, então, seriam de tirar o fôlego. Nada de rodas, literalmente voariam, como aquele táxi guiado por Korben Dallas no Quinto Elemento (1997) de Luc Besson. Os carros seguiriam por vias imaginárias pelos céus das cidades. O Lixo urbano seria devorado pelo próprio piso das cidades, sendo conduzido para algum lugar ignorado. Toda energia seria atômica, eliminando a necessidade de gasolina e diesel.

Sexta-feira, enquanto voltava para casa, percebi que eles e eu erramos. Errei duas vezes, ao acreditar naquele asneirol todo e ao acreditar que não estaria mais aí no ano 2000. Eles erraram mais do que todas as pesquisas eleitorais reunidas. Não previram o surgimento do novo veículo da virada do milênio: a carroça. Elas até existiam na década de 60, mas eram utilizadas nas áreas rurais. Nas cidades, se limitavam à entrega de alimentos, notadamente do leite e do pão. Os verdureiros eram reconhecidos de longe pelo ruído dos cascos dos cavalos no pavimento das ruas.

A grande novidade trazida pela carroça do ano 2000 foi o tráfego nas grandes avenidas, preferencialmente nos horários de pico e conduzidas por menores de idade. A carroça leva enorme vantagem sobre os automóveis e demais veículos formalmente existentes. Seria este o termo para compará-los? Os veículos motorizados estão hipoteticamente regulamentados pela legislação. Se as carroças estão, ninguém dá a mínima mesmo.

A principal vantagem oferecida pela carroça é a segurança. Nenhum motorista de veículo motorizado tem coragem de bater naquilo. Além dos danos materiais, seguir-se-ão intermináveis processos judiciais por eventuais ferimentos causados ao cavalo. Ninguém liga para os humanos. Ainda no quesito segurança, a carroça leva a vantagem de estar equipada com airbags pretos por todos os lados. Os airbags das carroças são muito mais eficientes do que os dos automóveis, pois já vêm inflados. Inflados com coisas macias como papéis e garrafas pet. Absorvem bem o choque. Nesta história, quem sempre perde é o cavalo.

Outra grande vantagem apresentada pela carroça diz respeito à prioridade no trânsito. Carroças não param nos sinais, não respeitam vias preferenciais e estacionam em qualquer local, inclusive no meio da rua. Certo, elas podem trafegar na contra-mão. Sem iluminação também. E creia, se você virar uma esquina, à noite, e colidir com uma carroça sem iluminação, vindo pela contra-mão e tripulada por menores de idade, a culpa será inteiramente sua. Afinal, você cometeu um atentado contra um movimento social inimputável.

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5.10.06

A Tragédia Americana

A Tragédia Americana

Por Paulo Heuser

Nascido na década de 50, eu cresci assistindo aos filmes de guerra recheados de heróis americanos, como Glenn Ford, e aos western com John Wayne e a sucessão de canastrões Mitchum. Comédias com Jerry Lewis, Dean Martin e Doris Day eram o programa de domingo. As matinées nos levavam à vida americana, em alguma época presente ou passada. Os códigos morais, a música, aquela ridícula moda de decoração dos anos 60, cheia de latas e canos coloridos, tudo era definitivamente norte-americano. Pato Donald, Margarida e Tio Patinhas foram os gibis da moda.

A Guerra do Vietnam começou a estremecer a credibilidade no american way of life. Nada, porém foi tão emblemático como o movimento de contracultura cujo símbolo máximo foi o Festival de Woodstock (1969), em Bethel, Nova Iorque. Entre outros, e entre meus preferidos, lá estiveram The Who, Jimi Hendrix com Hey Joe, e Ten Years After. Outros, dos quais não gostei tanto, como Joan Baez, já cantavam músicas intermináveis de protesto, num estilo “Zeca Perereca” imortalizado pela choradeira de Bob Dylan. Tudo bem, como o Zeca Perereca era americano, era moda.

Nas décadas seguintes começamos a confirmar que havíamos amarrado mal a égua, numa sociedade definitivamente estranha. Homens respeitáveis, ótimos pais, freqüentadores da igreja aos domingos, doadores do Partido Republicano, subiam ao campanário daquela e passavam a atirar a esmo nas pessoas. Isto que eram o esteriótipo dos WASP – White Anglo-Saxon Protestant - branco, anglo-saxão e protestante -, modelo étnico adorado pela sociedade americana do leste. Não foi apenas um. Uma sucessão desses genocidas-suicidas passou a fazer parte das manchetes. Foram celebrizados pelo cinema e pela tv. Apareceram também no Canadá, que não deixa de ser um 52o estado americano, contando o Distrito de Colúmbia.

No meio desse povo tão civilizado, no estado da Pensilvânia, vive uma comunidade de protestantes menonitas de origem helvética, conhecida como Amish. Esta sociedade, fechada culturalmente, vive na era pré-industrial, recusando-se a utilizar máquinas e as coisas modernas em geral. Recusa ajuda governamental e se nega a prestar o serviço militar. Até hoje os amish comunicam-se em alemão e um dialeto dele, falando inglês apenas com os englishmen – ingleses -, como chamam os vizinhos norte-americanos. Formam uma espécie de país dentro dos EUA. Apesar do imenso fosso que divide a sociedade americana dos amish, estes são bem tolerados e até admirados por aqueles, pois seguem rígidos padrões éticos e morais e praticamente inexiste o crime entre eles.

Ou melhor, não existia até que um imbecil englishmen chamado Charles Carl Roberts invadiu uma pequena escola em Bart Township e executou cinco meninas amish, ferindo outras tantas, antes de se suicidar. Os suicidas do Terceiro Mundo se contentam com o próprio suicídio. Os englishmen necessitam de espaço na mídia, levando uma dezena junto consigo. E logo dos amish, verdadeiros bastiões da vida decente e saudável.

O Terceiro Mundo continua enviando suas crianças para os parques de diversões daquela avançada sociedade, humilhando-se para conseguir um visto de ingresso. Afinal, os englishmen são muito exigentes quanto aos visitantes.

Desconfio que aquela cerca será erguida para evitar que eles consigam fugir lá de dentro.

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4.10.06

Abominável Mundo Novo

Abominável Mundo Novo

Por Paulo Heuser

Os prêmios Nobel de Medicina e Química de 2006 me fazem suspeitar que cada vez mais ingressamos no Abominável Mundo Novo. Ambos se referem à pesquisa genética. Ótimo não? Talvez. O mapeamento genético do ser humano permitiu a descoberta antecipada de mal-formações e da probabilidade de que um embrião vá produzir um ser humano com determinadas características, inclusive doenças. Há o lado disto que pode ser bom, como a eventual erradicação de doenças como diabetes e algumas formas de câncer, se os laboratórios de medicamentos não forem muito prejudicados. Todo bem tem contrapartida em algo não tão bom. Ou seja, para cada Yin existe um Yang, ou o contrário.

Algum técnico sentado frente a um monitor de computador examina o que aparece na tela e emite o parecer, tradução em mediquês da expressão “este vai vingar”, ou “este não vai vingar”. Controle de qualidade do produto semi-acabado. O que farão com os “defeituosos”? Não será útil fabricar alguns tipos de defeituosos, como no Admirável Mundo Novo (1931) de Aldous Huxley? Já estratificamos pela capacidade econômica, a genética é apenas mais um passo.

Quem deve estar morrendo de medo é o cirurgião plástico. Sua clientela para procedimentos estéticos é exatamente aquela que poderá eventualmente pagar pela manipulação genética com vistas à melhoria da aparência. As orelhas de abano do vovô não serão mais propagadas às gerações futuras daqueles que se dispuserem a pagar pelo procedimento de manipulação genética. Nada de SUS, com certeza.

Mais abominável poderá ser a seleção de pessoas baseada no seu mapa genético. Nada mais de entrevistas complicadas com psicólogos e especialistas em gestão de pessoas. Qualquer pedacinho de tecido poderá dar todas as pistas a respeito do candidato. O número sete não parece apto, pois há uma probabilidade de 79 por cento de desenvolver frieiras nos dedos do meio do pé esquerdo. O número três também não, apresenta tendência a arrancar asas de moscas vivas. O vinte e três não, pois há 87 por cento de probabilidade de que irá grudar tatu sob as mesas.

Quem puder pagar pelo serviço, poderá escolher sua prole. Sentará ao lado da técnica que conversará com o casal para uma obter um croqui básico do produto. Após uma análise do gineceu e do androceu..., Ops, estes são de plantas? Bem, seja lá que nome leva, fará um protótipo que passará pelo crivo de todos para os ajustes finais. Estes incluem as aptidões opcionais, cobradas à parte, como cítara, escultura em goma arábica, oratória de canal de vendas, e um sem número de outras selecionáveis, conforme o tamanho do bolso dos futuros pais do freguês. Como serviço adicional poderá ser realizada revisão periódica do DNA dos procriáveis da família.

Lindo, não é? É, mas e se, apenas por hipótese, o Nobel de Medicina de 2036 descobrir que ao alterar os genes da orelha de abano e os de grudar tatu sob a mesa, sem manipular aquele que leva a roer unhas do pé, há 98 por cento de probabilidade de que os meninos gostem de pintura, cultivem bigodinhos ridículos e invadam a Polônia?

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Cidade em Preto e Branco

Cidade em Preto e Branco

Por Paulo Heuser

Tentei fotografar minha cidade. Algo sempre saiu errado, não conseguia fotos que fizessem jus à cidade. Ultimamente utilizei uma câmera digital. Nada do que obtinha se parecia com o que via.

Tentei retirar minha velha câmera do armário, uma daquelas que utilizam filmes. O filme de 36 poses instalado no interior da câmera estava batido apenas pela metade. Vencido faz dois anos. De experiências passadas, sabia que filmes vencidos sabem dar fotos incomuns.

Tentei ver a cidade através de uma lente 50mm, um espelho do obturador e um filme vencido. Algo saiu melhor. A cidade vista através daquela câmera reflex, queimando um filme vencido, começou a se parecer com aquilo que eu via. Seria a granulação excessiva e um desvio exagerado para o azul, conferindo tons extremamente frios às fotos? Frios como a cidade. Mas não o suficiente.

Uma película em preto e branco, quem sabe? Para uma granulação grande, um filme ultra-rápido. Agora sim, esta se parece com a minha cidade. Não há branco. Tudo varia do cinza ao preto. Nem as sombras são completamente negras, só cinza, do claro ao escuro.

Carros cor de prata, que não deixa de ser um tom de cinza, andam pelas ruas de asfalto e basalto, cheias de prédios acinzentados, desviando das carroças carregadas de tralhas em sacos negros, tripuladas por crianças sombrias.

Pessoas de pele pálida ou escura empurram carros de tração humana em meio aos caminhões fumarentos que enchem o ar de gases que escondem o antes azul do céu. Não há mais cores, apenas os tons obtidos do grafite de um lápis. Calcando mais forte ou mais fraco, surgem as sombras e os claros.

Sujeitos esquálidos escondem os rostos por detrás de capuzes que aumentam as sombras, transformados em sombras ambulantes. Ali não há alma, apenas sombras. Sombras que resmungam e se movem lentamente, confundindo-se com as sombras dos prédios cinzentos.

Uma prostituta em roupas sem cor murmura propostas de prazeres indecentes demais para alguém de olhos tão granulados. Atrás dela um homem jaz sobre a calçada, sabe-se lá morto ou vivo, não tem cor, de qualquer forma. Os pombos retiram o resto de cor que poderia haver ali.

Sob o viaduto cor de concreto, seres escurecidos pela sujeira aquecem-se ao lado de latas que soltam rolos de negro fumo.

Agora sim, esta se parece com a minha cidade!

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3.10.06

O Võo Solo do Alfredo

O Vôo Solo do Alfredo

Por Paulo Heuser

Cada vez que acontece uma tragédia envolvendo aviões, lembro-me do Alfredo. Foi um colega de brevê no Aeroclube Santa Cruz, em 1973. Voávamos, naquela época, nos Neiva 56-C – Paulistinha –, fantásticos amontoados de canos e lonas com um motor na frente. Havia também um Fairchild PT-19, fabricado em 1936, asas de compensado, o PP-HQN, de cabine aberta. Neste se usava capacete de couro e óculos de aviador.

Dotados apenas de instrumentos básicos para vôo, sem rádio, contávamos com a lentidão dos aviões e a cumplicidade do Dono dos Céus para a nossa segurança. Na verdade, havia também o Helio, presidente do aeroclube e maníaco por segurança, sempre correndo atrás de um mecânico cujo nome não me recordo, apelidado “Vicsa”, graças ao macacão de trabalho ostentando uma propaganda de anéis para motores. Vicsa me deu recomendações muito úteis quanto aos instrumentos de bordo (interior do monte de canos):

- Guri, se a pressão do óleo cair, fica de olho na temperatura. Se ela não subir, dá uma pancada com o dedo no vidro do manômetro para ver se não é pane de instrumento.

Esta recomendação, apesar de tecnicamente compreensível, não aumentava muito a confiança nos instrumentos. Até hoje dou pancadas nos instrumentos analógicos, seja do que for. Vá lá, nos digitais também.

O primeiro vôo solo era um evento muito emocionante. E curto. O aluno decolava, fazia o tráfego, contornando o aeroclube, e pousava novamente. O segundo vôo solo, em outro dia, com o aluno refeito da emoção do primeiro, era um passeio de tempo determinado pela duração do tanque de gasolina inferior, pouco menos de duas horas. A sensação de olhar para trás e ver o assento do instrutor vazio era indescritível. O Alfredo nunca se esquecerá.

Alfredo decolou com o PP-GTN, um Paulistinha, e bandeou-se para algum lugar em direção a Rio Pardo, onde não havia muitos pontos de referência, pela paisagem monótona. À medida que o vôo transcorria, ele perdeu completamente a referência de localização, contando apenas com a bússola e o Sol, o que não ajudou muito, principalmente quando este começou baixar em direção ao horizonte. Alfredo viu-se na situação de saber exatamente onde estava o Norte, mas não sabia onde as cidades se localizavam. Foi um precursor do Comandante Garcez.

Quando Alfredo sentiu que o vôo solo não terminaria bem, devido à falta de gasolina, se deu ao luxo que um comandante de Paulistinha pode se dar, mas um comandante de Boeing não pode. Procurou uma lavoura plana e pousou, próximo a uma casa de agricultores. Tomando o cuidado de deixar o motor – cujo arranque era manual – ligado, correu até a casa e indagou à apavorada agricultora sobre as direções de Santa Cruz e Rio Pardo. Com as coordenadas informadas pelo pré-GPS agrícola (a mulher), decolou novamente, deixando para trás uma lavoura destruída. Encontrando Rio Pardo, bastou seguir a estrada até Santa Cruz.

Eu estava sentado em frente ao bar do aeroclube, conversando com o instrutor – o Beck –, quando o Alfredo pousou, no entardecer de um domingo. Beck não era de muitas palavras. Quando o Alfredo desceu do Paulistinha e veio na nossa direção, com um ar de triunfo borrado, Beck lhe perguntou sobre o vôo, sem tirar os olhos do heróico PP-GTN:

- Andou visitando uma roça?

Alfredo fora pego com a boca na botija, ou melhor, com a mandioca na bequilha.

N.A. – Bequilha é a roda menor do avião, localizada atrás, no caso do Paulistinha.

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2.10.06

Acarajé de Chuchu

Acarajé de Chuchu
Publicada na Gazeta do Sul de 04/10/2006

O picolé de chuchu acabou virando acarajé de chuchu, com certa dose de pimenta. O que tinha tudo para ser uma eleição tão emocionante como uma corrida de F1, com o Schumacher ganhando todas, acabou virando uma batalha que durou horas de fortes emoções, com pequenos avanços e recuos. Não sobraram unhas, nem dos pés, nos comitês eleitorais. Roeram tudo.

Quem levou a maior surra nesta eleição foram os institutos de pesquisa de intenção de voto. Nada deu certo. Provaram novamente ser autores de pesquisas indutoras, não induzidas.

Para muitos eleitores a urna eletrônica é uma espécie de jogo eletrônico enigmático. Como não sabem como converter sua intenção de voto na digitação dos números dos candidatos, eles acabam fazendo um jogo “no escuro”. Querem apenas livrar-se do dever do voto. De que adianta obrigar pessoas completamente alienadas politicamente a votar? Algumas catam santinhos no chão, próximo às zonas eleitorais, procurando em quem votar, no último minuto. Na barafunda de números de quatro, cinco, três e dois dígitos, perdem-se e não sabem como proceder.

No Rio de Janeiro furtaram 12 urnas eletrônicas, que hoje devem estar funcionando como máquinas de vídeo-pôquer. Um full hand pode ser feito com três Alkmis e dois Lulas ou com três Lulas e dois Alkmins. Qual valerá mais? Saberemos somente em 29 de outubro.

São Paulo mostrou ser um estado de tradições. Paulo Salim Maluf arrasou novamente, com mais de 700 mil votos, o primeiro colocado na disputa para deputado federal naquele estado. Estando bem para ambas as partes, sabe lá quais, Celso Russomanno chegou em segundo lugar, seguido de perto pelo Clodovil. Eleito, este declarou não saber que tipo de projetos levará à Câmara. Certeza, apenas de entrar chiquérrimo. Em quarto lugar aparece o Enéas Carneiro, que não conseguiu repetir o milhão e meio de votos de outro pleito. A perda concomitante da barba e dos eleitores pode indicar a existência de uma versão caprina de Sansão, sem bomba atômica até o momento. Perdeu a barba, perdeu a força. O denunciado mensaleiro João Paulo Cunha, absolvido pelos pares e pelos eleitores, acabou como candidato a deputado federal mais votado do seu partido.

Lá também foi eleito Frank Aguiar, famoso forrozeiro. Segundo alguns potiguares, o termo forró é uma redução de forrobodó, palavra que pode assumir múltiplos significados como arrasta-pé, farra, confusão e desordem. Isto explica algo.

Lá de cima vêm notícias sobre as derrotas de Severino e Suassangue, não, Sanguessua, não, sei lá! Em compensação, o homem que levava George Washington nas cuecas conseguiu reeleger-se, bem como seu genuíno irmão. E entrou areia no bobó do Toninho. Fernando Collor de Mello volta triunfalmente, agora ao Senado.

É a democracia!

E-mail: prheuser@gmail.com