O Voto do Rengo
Por Paulo Heuser
Quis o destino que eu ganhasse uma tala de gesso na perna, às vésperas do segundo turno das Eleições 2006. Gesso só tem graça em busto de deusa grega, rodapé de teto e na perna dos outros. Recebi ordens médicas para não pisar de maneira nenhuma com o pé direito. Votaria com o pé esquerdo então? Seria uma mensagem do destino, mancomunado com o médico?
Seria minha primeira abstenção nas não sei quantas eleições. Coisa cômoda, não é? Passar um domingo tranqüilo, sem tapete de santinhos nem velhinhas indutoras nas esquinas. Tantas coisas a fazer. Dar um passeio de cadeira de rodas na Redenção, servindo de poste de pipi para todos lulus presentes. Poderia furar a fila da galeteria da moda, às 13 horas e assistir ao filme na primeira fila do cinema. São privilégios dos temporariamente (espero eu) inabilitados fisicamente. Há também o outro lado da moeda. Começando pelo banheiro. E terminando nele também. O banho num pé só é um espetáculo a ser filmado. Aquele filme plástico que se utiliza na cozinha foi inventado para o banho do entalado, que não deve ser confundido com o empalado. Enrola-se toda a perna com aquilo e cobre-se tudo com um saco de lixo de 100 litros, vedando com fita de fraldas, preferencialmente aquelas com desenhos de bichinhos. Fica mais bonitinho.
Não me dei por vencido no domingo. Esqueci todos os maravilhosos programas e decidi votar. Não seria uma mísera perna o que limitaria de forma tão truculenta o pleno exercício da cidadania. Além do que, esse pessoal está habilitado a lidar com esses problemas, não são marinheiros de primeira viagem. Mas eu era, pelo menos com uma perna.
O carro me deixou em frente à porta do colégio onde está minha seção eleitoral. Enquanto descia consegui ouvir a buzinaria dos que estavam atrás, certamente imaginando o que aquele sujeito queria ali, de muletas. Atrapalhar o trânsito, com certeza. Tudo pela democracia. Vamos em frente. Surpresa! Havia rampas de acesso para cadeirantes, que podiam ser utilizadas pelos muletantes como eu. Plec, plec, fui subindo a rampa em direção à democracia. A dor crescia à medida que avançava, mas não há democracia sem sacrifício. Dei uma parada para gemer melhor, escorado na parede. Pessoas passavam olhando curiosas. Mais duas caminhadas e duas paradas e enxergo a placa da minha seção. Nessas alturas a dor era tanta que eu já estava achando o voto indireto mais simpático.
Dei sorte, apenas duas pessoas na fila, uma senhora que fez questão de dar o lugar, ao me ver, e um sujeito com cara de coronel das SS que me olhou de cima a baixo enquanto pensava consigo mesmo: “o que esse defeito ambulante quer aqui?”. Lá dentro foi tudo mais simples, utilizando a terceira mão para entregar o título, assinar e apertar os botões da democracia. Feito o trim-trim e recolhidos os documentos, restou voltar. Dos eventos da volta, uma repetição de paradas e gemidos, apenas um merece destaque. Eu posso jurar que aquela mulher que subia a rampa caminhando alegremente, e me pediu para lhe dar lugar, pensava: “Sai da frente, rengo!” Foi nesse momento que eu gritei: viva a ditadura!
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