29.5.08

405 - A Convenção


Foto: Wikipedia
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A convenção

Por Paulo Heuser


As vinte e oito unidades do Condomínio firmariam uma convenção. Tudo conforme a lei. Alguém trouxe uma minuta, com base na legislação, que foi adaptada à realidade do Condomínio, em apenas 87 assembléias. O Síndico foi muito democrático, em todo o processo, convocando condôminos de todas as etnias, religiões, raças, condições sociais e profissões. O advogado Justo, do 302, juntou-se à dançarina temática Shirley da Tromba, do 104, ao médico Hérnio, do 201, e assim por diante. A Dona Fecunda, do 103, foi incansável na defesa dos direitos da sua prole de sete filhos. O Síndico Augusto fez questão de não interferir na condução dos trabalhos. Para garantir a isenção, ofereceu pequenos mimos, como viagens a Serra, aos condôminos que se manifestaram contra a constituição de uma assembléia convencional tão diversificada, em troca da sua participação ativa nos debates. O decano dos condôminos, Seu Raposo, foi eleito Presidente da Assembléia Convencional.

Logo no início dos trabalhos, Seu Raposo apontou a existência de despesas extraordinárias que os condôminos participantes da Assembléia estariam suportando, em função dos trabalhos. Shirley da Tromba queixou-se do lucro cessante, por deixar o ponto vago. Dona Fecunda mencionou a despesa extraordinária gerada pela contratação de uma babá, para cuidar da sua prole, enquanto ela participava das reuniões. Debatido o assunto, foi proposta isenção de pagamento das taxas condominiais, para fazerem frente às despesas dos condôminos convencionais. Foi aprovada também a adesão da Assembléia Convencional ao plano de saúde SindMed, proposta pela convencional Shirley Tromba, que enfrentava problemas com sua próstata. Seu Raposo informou da possibilidade de os convencionais participarem do XVI Congresso Internacional de Convencionais Condominiais, em Miami, para obterem subsídios à confecção da carta magna. O convite foi estendido aos familiares, inclusive à prole da Dona Fecunda. Deliberado o assunto, a participação no XVI CICC foi aprovada por unanimidade aclamada, com máxima láurea.

O presidente do Conselho Fiscal – Seu Probo - estranhou as rubricas onde foram lançadas as despesas com a missão técnica a Miami: material de limpeza. O Síndico prestou os devidos esclarecimentos, informando que Dona Fecunda trouxe uma caixa com uma dúzia de tubos de detergente, comprados no Free Shop, a preço promocional. Seu Probo foi osso duro de se roer, até que lhe comunicaram que participaria, junto com sua mulher, Dona Correta, da missão técnica aos Emirados Árabes, com escala em Paris, para o III Colóquio Mundial de Conselheiros Fiscais, com direito ao certificado emoldurado e chaveiro da Torre Eiffel.

Seu Justo reclamou, justamente, que não havia como pesquisar toda literatura jurídica pertinente nas assembléias. Propôs a contratação de uma consultoria jurídica especializada, para dar o apoio necessário. Questionado sobre a existência de alguma empresa do ramo, Seu Justo lembrou-se apenas, e casualmente, do escritório Justo & Justo, cuja contratação foi aprovada. Nada mais justo.

Dona Shirley da Tromba solicitou licença remunerada e pagamento de despesas de viagem para participar do XXIV Encontro Internacional de Convencionais Condominiais da Outra Via, em São Francisco, Califórnia. Solicitação atendida. Ninguém mais aceitou o convite.

O Dr. Hérnio propôs a contratação de um serviço de bufê para servir o jantar durante as assembléias convencionais. A proposta foi aprovada, com emenda da Dona Fecunda, que estendeu o fornecimento das refeições aos familiares dos convencionais, através de quentinhas servidas diretamente nas unidades. Aprovada também a indicação do bufê da mãe do Dr. Hérnio para fornecer as refeições.

Durante a assembléia-jantar inaugural do Bufê Condomínio, Seu Raposo discursou, defendendo a necessidade de decorarem o ex-salão de festas, agora plenário da convenção, com alguns símbolos religiosos. Mencionou, de passagem, que sua cunhada tinha uma loja que vendia produtos sacros. O Síndico Augusto pediu à parte para acrescentar que, casualmente, a empresa prestadora da manutenção do elevador informara da oferta de decoração do salão, com símbolos sacros, caso o Condomínio trocasse o elevador pelo novo modelo avançado. Dona Laica protestou, das galerias, contra a tentativa inquisitória de forçarem crenças religiosas no Condomínio. Seu Augusto apresentou uma solução, sugerindo a contratação da Sincrética Litúrgica, empresa da sua nora que atuava na decoração religiosa politemplária. Da sinagoga à mesquita, havia produto para qualquer crença. Proposta aprovada, inclusive a troca do elevador, para não perderem a oferta da decoração.

O Dr. Hérnio propôs a instituição de uma taxa extra mensal, para manutenção do plano de saúde. Essa taxa seria cobrada durante os quatro anos seguintes. Aprovada.

Dona Fecunda propôs a compra de uma brinquedoteca para uso de sua prole. Houve resistência, pois não havia provisão de receita para tal fim. O Síndico Augusto propôs retirarem parte da verba para o plano de saúde, que estaria superestimada, para fazer frente às despesas com a brinquedoteca. Aprovado.

Doutor Justo propôs extinguirem a taxa para manutenção do plano de saúde, já que a maior parte da verba estava destinada à brinquedoteca. Houve protesto veemente da Dona Fecunda. O Síndico Augusto propôs extinguirem a taxa e criarem uma nova taxa para manutenção do plano de saúde, passando a cobrir o custo da brinquedoteca com um aumento da taxa de consumo do gás. Aprovado, desde que a taxa para manutenção do plano de saúde se tornasse permanente.

O Síndico Augusto propôs trocarem o Opala 71 do Condomínio pelo novo modelo ofertado pela concessionária do irmão do cunhado do Dr. Hérnio. Aprovado, com emenda da Dona Fecunda, para extensão do uso do veículo aos convencionais em missão técnica ao clube, à escola dos filhos ou ao shopping.

O Síndico Augusto propôs darem nome ao Condomínio. Realizaram consulta pública entre os condôminos, através da consultoria mercadológica da empresa do sócio do filho do Síndico Augusto, tendo vencido a proposta do nome Brasil. Aprovado. O Síndico Augusto aproveitou para propor a contratação da ONG Hiena do Morro Ensolarado para fornecimento de facões para o manejo da reserva florestal dos fundos do Condomínio Brasil. Aprovado, com cortes.

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27.5.08

404 - "p/0,31 imp."


Lago Baikal. Foto: wikipedia
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“p/0,31 imp.”


Por Paulo Heuser



O característico som de duas marteladas anunciava a chegada de um torpedo - frase que teria significado bastante diverso, há 20 anos. Todos se poriam a correr, provavelmente. O torpedo do celular abriu um novo meio de comunicação entre os provedores de serviços e as suas vítimas, como eu. Eu sequer sabia da existência de algo chamado Yavox. De repente, descobri ser um cliente involuntário dele, também conhecido como vítima.

A mensagem avisava que, como eu havia solicitado novidades, participaria de uma promoção “p/0,31 imp.”. Coisa auto-explicativa. O que seria “p/0,31 imp.”? Seria impressão? Ou então, impulso de esganar quem me enviou aquilo? Antevendo prejuízo - pela presença do “p/0,31” - liguei para o telefone informado na mensagem, para cancelamento daquilo que não solicitei. Prontamente a Embratel me avisou que o número 4005-1122 não existia. Havia um número para o qual poderia enviar um torpedo, informando CANC, para cancelamento do serviço que não solicitei. No desespero, enviei, para imediatamente receber outro torpedo, esclarecendo que eu deveria informar o serviço que eu queria cancelar. Boa pergunta! O que mesmo eu não contratara? Desisti da comunicação inteligente, com a tal de Yavox, e apelei para a operadora do celular.

Maravilha! Não esperei nem um minuto, enquanto ouvia as explicações de praxe. Teclei nove, fui atendido, e uma operadora (humana!) muito gentil ouviu minha história triste, pesquisou a solução e me orientou sobre o cancelamento do serviço. Recebi um protocolo de atendimento 2008cobraselagartos e agradeci, desligando e partindo para efetuar um CANC do “p/0,31 imp.”, antes que o prejuízo se mostrasse maior. De nada serviu o argumento de que eu não contratara o “p/0,31 imp.”. Uma vez ativado, era como beiço de quem comeu mocotó – grudava! Tentei enviar CANCs para o número 49094, conforme instruído, de todos os jeitos, mas o “p/0,31 imp.” permanecia lá, inabalável. Liguei novamente para a operadora.

Só faltou a atendente chorar comigo. Ela também não fazia a mínima idéia de como remover o grude do “p/0,31 imp.”. Recebi novo protocolo 2008cobraselagartos e fui instruído a aguardar a ligação de um engenheiro que deveria desgrudar o “p/0,31 imp.”. O engenheiro não ligou. Sabendo que eu não conseguiria dormir, pensando no “p/0,31 imp.”, apelei para o palavrão. Funcionou! Recebi um torpedo informando sobre a minha condição de ex-assinante daquilo que nunca assinei. Aliviado, me recompus. Chegou a hora de correr atrás do prejuízo causado pelos 17 torpedos enviados para cancelar o “p/0,31 imp.”. Fui buscar auxílio no sítio da tal de Yavox. O navegador do micro ficou pensando, durante algum tempo, para me informar que estava sem conexão com a Internet. Tentei novamente. Nada. Tentei o sítio da operadora de celular. Nada. Liguei uma coisa à outra, e veio o medo. Um medo denso, profundo, mudo e ardente. Eu nem sabia que um medo podia ser tudo isso, ao mesmo tempo. Ao cancelar o “p/0,31 imp.”, eu provavelmente cancelara algo mais, como minha conexão ao abominável mundo novo.

Fiquei sentado, pensando no que fazer. Da cozinha vinha um grito: “- Paiêêê!!! A geladeira não abre!!!”. Céus, a coisa era pior do que parecia inicialmente. Bom, pelo menos a televisão ainda funcionava. Tanto funcionava, que ainda consegui ouvir aquele infernal comercial que dizia, repetitivamente, que na Sibéria não tem nada disso. Ouvi-lo, me deu novo ânimo. Se não havia nada disso lá, tampouco havia “p/0,31 imp.”! Peguei o telefone, para ligar para a Aeroflot e comprar meu bilhete para a Sibéria. Estava mudo.

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23.5.08

403 - O vazio de Roswell

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Foto: Wikipedia
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O vazio de Roswell

Por Paulo Heuser


A cidade de Roswell, no estado norte-americano do Novo México, é uma espécie de Meca daqueles que adoram os OVNIs – objetos voadores não identificados. Lá teria ocorrido a queda de uma espaçonave alienígena, em 07 de julho de 1947, acidente supostamente encoberto pelas autoridades daquele país. Seja como for, Roswell encontrou vocação no turismo, negócio infinitamente melhor do que o garimpo ou a criação de cactus. Até hoje, mais de 60 anos após o evento Roswell, ainda há muita gente revirando seixos em meio ao deserto, à procura de evidências que comprovem a ocorrência do evento. O comércio local fatura vendendo lembranças do evento de 1947. O cinema tem voltado suas atenções a Roswell, periodicamente, rodando filmes do gênero teoria da conspiração. Esta ficou para trás, aqui, faz muito tempo. Hoje somos peritos na prática da conspiração.

Adoro os antigos filmes B de ficção científica, porém não creio muito em discos voadores nos visitando. Para não dizer que não creio mesmo. Contudo, respeito que neles crê. Existindo ou não, o fato é que nesta última quinta-feira, feriado, eu descobri o que provavelmente aconteceu em Roswell. Tudo começou quando resolvi assar um churrasco. Carnes de churrasco, para mim, são a costela e o vazio. A costela andou sumida, desossada e transformada em produto das elites. Renegaram a lagosta, em favor da costela.

Eu comprei uma peça de vazio embalada a vácuo. Olhando por fora, tinha boa aparência. Ao abrir o invólucro, logo percebi por que chamam aquela peça de fralda, ou fraldinha. O que havia lá dentro era surpresa, como ocorre com as fraldas literais, cujos recheios podem assustar. Determinado a transformar aquilo em um pedaço de carne espetável, pus mãos a obra. Escolhi uma faca boa, afiei-a e comecei a cortar, esticar, arrancar e desdobrar. Foi então que me lembrei do Seu José, que mantinha o açougue mais asséptico do mundo, nos altos da Barão do Cotegipe. A primeira impressão era a de que ele não vendia carne. Não havia carne exposta, nem no balcão frigorífico. Tudo ficava armazenado dentro da câmara frigorífica. Tampouco o Seu José mostrava o pedaço ao freguês, antes de fechar negócio. Ele ouvia o pedido, entrava na câmara frigorífica e saía de lá com a peça de carne solicitada, no peso correto, + ou - 0,1%. A diferença entre o Seu José e um cirurgião era a precisão no corte. Muitos tentaram alcançar aquela do Seu José e não conseguiram. Acabaram como cirurgiões plásticos ou coisa que o valha.

Eu nunca tive a pretensão de dar cortes com a precisão do Seu José. Contudo, o que sobrou de útil depois da despelanquisação que procedi naquele vazio, mal dava para preencher um pastel de carne, já considerado o espaço para o meio ovo e a azeitona. Restou uma pilha enorme de sebo, membranas e outras coisas que careciam de um estudo histológico mais profundo, para classificá-las. O churrasco não foi um fracasso total. Havia pão, salada e cebolas assadas no espeto.

Olhando para a pilha de coisas que derivaram do tal do vazio, me lembrei do filme que mostrava a suposta dissecação de um ET em Roswell. Aquilo não era ET coisa nenhuma! Era o cozinheiro limpando um vazio embalado a vácuo, para o churrasco de aniversário do comandante do 509º Grupo de Bombardeiros, sediado em Roswell.

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22.5.08

402 - O telefone secreto

Foto: Wikipedia
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O telefone secreto

Por Paulo Heuser


Eu adquiri o hábito de não receber ligações telefônicas cuja origem não seja identificável. Boa coisa não pode ser. Provavelmente será um golpe do falso seqüestro, ou alguém querendo me vender algo que eu não quero comprar. Números originados em São Paulo, ou arredores, ou os terminados com dois zeros, também são altamente suspeitos.

Na semana passada, o pessoal da tele-tortura esteve especialmente ativo. Recebi ofertas de terrenos no Condomínio Alto Xingu, no próprio. Ligou também alguém que venderia um plano funerário Pague & Morra, e todo aquele pessoal que vende cartões de crédito e TV a cabo que já tenho. Nunca entendi por que querem me vender algo que já comprei. É uma pena que o aparelho telefônico só consegue armazenar mil números de telefone. Eu costumava associar os números com o nome da bomba que queriam me vender. Assim, quando o telefone tocava, já aparecia uma indicação do tipo serial caller #1, e assim por diante. Porém, o telefone só armazena 100 números na agenda. Por isso, alguns me pegam desprevenido. Aparece aquele número inocente, no visor do telefone, como se fosse da manicura do cachorro. Durante toda a semana, recebi recados de que a Elvira havia me ligado, três ou quatro vezes por dia. Quem diabos seria a Elvira? A vendedora dos jazigos climatizados? O enigma perdurou até o sábado.

Passava muito pouco das oito, quando o telefone fixo tocou. Era a Elvira. Ela falava em nome do cartão Card, que me levaria à festa do peão boiadeiro. Eu ganharia um ingresso para o rodeio, caso aceitasse a oferta. E mais, poderia pagar o ingresso grátis em 10 vezes sem acréscimo. Fui curto e grosso, agradecendo, mas recusando. Afinal, de rodeio, já havia o palhaço que acordara cedo para receber a ligação. Quando eu peguei novamente no sono, eis que o telefone soou novamente. Não aquele telefone fixo. Era o outro, o telefone secreto cujo número nem eu mesmo sei. Sobressaltado, atendi de pronto, pois deveria se tratar de uma emergência. Era a Elvira, novamente. Fiquei tão assustado, que nem pensei em lhe perguntar sobre quem lhe fornecera meu número ultra-secreto. No acesso de raiva, que se seguiu, coloquei o telefone defronte à TV, para que a Elvira ficasse ouvindo a propaganda da academia de ginástica portátil que faz as vezes de tábua de passar roupa, ralador de queijo e andaime para troca de lâmpadas de teto.

Satisfeito com meu sadismo, fui à cozinha. Quando abri a geladeira, percebi que a voz do vendedor da academia 4Fit havia mudado. Ele parecia conversar com alguém. Foi então que eu percebi que a Elvira lhe vendera um cartão.


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21.5.08

401 - Monarquistas, pelo amor de Deus!


Foto: Wikipedia
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Monarquistas, pelo amor de Deus!

Por Paulo Heuser


Lembro-me do referendo que escolheu o regime do governo deste Brasil moderno. As opções não contemplaram o regime em vigor, a república federativa cpista, que surgiu espontaneamente. Este regime não foi inventado aqui. O cpismo democrático é uma evolução moderna do macartismo norte-americano do pós-guerra. Se lá cassavam comunistas, aqui se cassam todos, uns aos outros, como cachorros correndo atrás do rabo, nos intermináveis espetáculos teatrais televisionados ao vivo, desde que não interrompam a transmissão do futebol ou das novelas. Estas passaram a incorporar doses de cpismo, levando realidade à ficção. As novelas modernas não são novelas, são representações adaptativas da realidade cotidiana que não se furtam a tentar alterá-la. O que hoje está nas manchetes, amanhã estará nas novelas das oito, porque as das seis são de época, de outras épocas, nunca desta. O cpismo invadiu as novelas. Quem zapeia entre os canais, não sabe mais o que é ficção e o que é realidade. Os autômatos telespectadores apenas internalizam o conceito e são levados por horas a fio, a navegar pela conversa mole perene, com eventuais brigas, daqui ou dali. Tentei assistir a um capítulo desses, não sei mais se da realidade ou da ficção, onde um pivô de escândalo falou durante horas, sobre nada, enquanto os seus inquisidores gaguejavam frases aleatórias sem sentido. O título deste texto é uma corruptela do título da peça de teatro Anarquistas Graças a Deus, baseada no livro homônimo de Zélia Gattai. Assisti à paça lá pelo início dos 80. Coincidentemente, o ator principal era o Antônio Fagundes, o mesmo da atual novela das oito. Lá pelas tantas, o ator conclamava o público a gritar um refrão que dizia que o governo era aquilo (algo não publicável). A sensação de gritá-lo, sem ser preso, era ótima. A maioria começava com murmúrios tímidos, que logo davam lugar aos gritos, em uníssono. O ator brincava com a platéia dizendo que poderiam voltar nos dias seguintes, para desopilar novamente. O finado Teatro Presidente, depois transformado em templo, quase vinha abaixo. E ainda não havíamos degustado completamente a liberdade que nos trouxe esta maravilhosa república federativa cpista. Curiosamente, o País vive um dos melhores momentos econômicos, e por que não dizer sociais, pelos quais já passou. Temo exercer algum exercício de lógica sobre esta questão. Concluiria, talvez, que o cpismo retira, do dia a dia, os responsáveis pelo atravancamento do País. Entretidos nos seus jogos políticos, não conseguem puxar o freio de mão do País. Noutro dia assisti a uma comédia, estilo abobrinha, sobre um candidato ao governo norte-americano que sugeria que os postulantes aos cargos eletivos vestissem trajes com os logotipos dos seus patrocinadores, como fazem os atletas profissionais, notadamente os do automobilismo. O filme não é grande coisa, mas a idéia é excelente. É óbvio que nem todos os atores das CPIs são ruins, apenas por estarem lá. Seria o mesmo que dizer que todos os austríacos que têm porão em casa são monstros. Porém, todos os austríacos estão sendo julgados pela mídia. Criaram Hitler e o Fritzl. Os bons pagam pelos ruins, frase óbvia. A coisa explode quando não há porões, tudo é feito à luz do dia.

Este texto tem apenas dois parágrafos. Propositadamente, para que sua leitura seja pesada, como é o assunto. Sonho com um novo referendo, onde conste como opção a monarquia, além da república federativa cpista. A corte seria menor do que a de hoje, com certeza. Poderíamos gritar refrões contra o monarca. Hoje não sabemos mais contra quem gritamos, pois todos parecem iguais. Longa vida ao rei, desde que ele não crie CRIs – Comissões Reais de Inquérito!



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19.5.08

400 - O caviar do Onofre

Foto: Wikipedia
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O caviar do Onofre

Por Paulo Heuser


Poucos têm dúvida de que houve aumento de consumo por parte das classes menos favorecidas da população. A corrida às lojas faz a alegria de todos, fornecedores, intermediários e consumidores. Um bom exemplo é o Seu Onofre, artífice de manutenção do condomínio do Zé. Ele estava feliz da vida, por realizar metade do sonho de vida da Dona Maria, na comemoração das Bodas de Ouro. Dona Maria sonhava com o Clark Gable lhe servindo caviar. Sem Clark, mas com Onofre, Dona Maria comeria o tão sonhado caviar, graças à queda do dólar, do aumento do mínimo e da safra de milho.

O Seu Onofre sempre foi um minimalista. Causa espanto a quantidade ínfima de material que o homem utiliza nas suas manutenções. Um exemplo marcante foi a instalação do relógio-ponto dos funcionários do condomínio. Ele conseguiu afixar, em tese, um relógio-ponto de 10kg à parede revestida com grossa camada de massa corrida, utilizando quatro míseras buchas plásticas de 4mm. O homem odiava o desperdício de material. Menos minimalista foi o inchaço dos pés do João, um dos porteiros, ao inaugurar o relógio-ponto. Bastou que ele enfiasse o cartão-ponto no relógio para que este viesse abaixo. O culpado pelo acidente foi do síndico, que se esqueceu de avisar ao Seu Onofre da possibilidade de que alguém tocasse no equipamento. Se soubesse disso, Seu Onofre teria usado buchas de 5mm.

O minimalismo do Seu Onofre revelou-se também na compra do tão sonhado caviar. Mais afeito ao feijão, ele desconhecia a procedência do acepipe. Por isso, foi se informar com quem entende do assunto, quando este se trata de importados: o camelô da praça. O camelô ouviu, pensou um tanto, e falou, em tom de intimidade:

- O senhor me conhece há muito tempo, Seu Onofre. Eu não tentaria enganá-lo, vendendo-lhe o caviar fajuto que o pessoal anda distribuindo por aí. Hoje estamos em falta do bom, mas devemos recebê-lo amanhã.

- Amanhã, com certeza? – perguntou Seu Onofre.

- Com certeza! – respondeu-lhe o confiável e tradicional fornecedor das pilhas das conceituadas marcas Durável e Raio-de-Vácuo.

Na manhã seguinte, Seu Onofre comprou 12 pilhas Durável, suficientes para ouvir o jogo de domingo, e o tão sonhado caviar. Um caviar raro e incomum.

- Caviar é branco, assim?

- Este é, meu amigo. Porque este é do bom. Tem gente por aí que tenta empurrar um caviar preto, ou pior, vermelho. São caviares velhos, maduros demais. Este não, Este é o albino, o melhor.

- É grande, né? Pensei que fosse pequenino...

- Pequenino é o outro, o fajuto. Aquele pequenino fede a peixe, coisa muito nojenta. O senhor daria caviar cheirando a peixe para a sua mulher?

- Credo, nunca! De peixe, só lambari frito, na Sexta-feira Santa.

O Seu Onofre cheirou o caviar, sorrindo em aprovação. Aquele não cheirava a peixe. Ainda bem que ele apelou a quem entendia da coisa.

- Bem, quanto custa?

- Veja, Seu Onofre. – o camelô olhou para os lados, desconfiado. – Só não deixe que os outros por aí descubram que estou lhe fazendo por trinta reais o quilo!

- Trinta reais? Isso é mais caro que picanha de açougue de madame!

- Mas ainda é muito mais barato do que aquela coisa preta, mirradinha, fedendo a peixe, que os outros vendem. Aquilo lá vem do Irã, e não agüenta a viagem. Murcha e fede. Este aqui é nacional, coisa garantida.

- Tá bom, levarei um quilo. Deve chegar para dois, não é?

- Chega, Seu Onofre, chega. E depois, isto é uma iguaria, não dá para se embuchar de uma só vez!

- Ah, tem de comer de pouquinho? E para beber? Ouvi falar que a bebida tem de combinar...

- O pessoal que come aquele fajuto, toma vodka. Mas este pede uma pinga, da boa. A gente tem, se for o caso...

O pessoal que come aquele caviar mirradinho, preto ou vermelho, fedendo a peixe, nunca recomendaria que fosse acompanhado pelo vinho tinto de mesa. Porém, nada é melhor para acompanhar o verdadeiro, albino e graúdo sagu que o Seu Onofre levou.



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17.5.08

399 - Esmolcard

Foto: Paulo Heuser
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Esmolcard

Por Paulo Heuser


O Nestor pode ser mendigo, louco, incômodo e piolhento, porém não é burro. Como ele mora ao relento na Wall Street dos pampas, sabe dar seus pitacos, quando o assunto é dinheiro. Ele observou o pessoal pagando o engraxate de cadeira da praça, usando o cartão de débito. O engraxate tem uma daquelas máquinas paga pagamento com cartão, sem fio. Coisa de primeiro mundo. No Primeiro Mundo já conseguiram mandar todos os empregos ao Quarto Mundo, através da automação de todos os pequenos serviços. Dos assentos de vasos sanitários autolimpantes da Alemanha, aos hotéis de auto-serviço da França, tudo é automático. O Nestor viajou muito, antes de enlouquecer e optar pela vida franciscana na praça, com suas duas novas mulheres.

As esmolas vêm caindo, dia a dia. Caem em outro lugar, não na mão do Nestor. Ele percebeu o fenômeno, ainda mais depois que assumiu a segunda esposa. E ele conhece os culpados: os governos municipal e federal. O primeiro colocou os parquímetros, exigindo que o pessoal tenha moedas no bolso, o segundo substituiu as cédulas de baixo valor pelas moedas, colocando estas em circulação. Assim, quem tem moedas no bolso pensa duas vezes, antes de dá-las a um mendigo. Foram duros golpes na mendicância. As revoluções tecnológicas extinguem profissões, como as de digitador, caixa e mendigo. Nestor já andava pensando em alguma coisa, há algum tempo. Considerou até um investimento num parquímetro falso, de uso próprio. Colocaria o equipamento junto ao meio-fio, pela manhã, e contaria a féria após o expediente, ao retirá-lo.

Foi o pagamento do engraxate que lhe deu a luz à idéia do Nestor. Ora, um esmoleiro de talento, como ele, fatura mais do que o engraxate, além de não suportar custos fixos. Não compra graxa, jornal, nem qualquer outro insumo para exercer sua milenar profissão. Basta-lhe a cara de louco miserável que o destino lhe deu de graça. Quanto pior estiver vestido, melhor. O resto a comiseração faz. Se o engraxate pode ter uma máquina daquelas, por que não ele? O problema tem sido a aparência rústica, digamos, do Nestor. Conhecido como Senhor dos Piolhos, ele não conseguiu acesso a quem vende o serviço dessas maravilhosas caixas ambulantes sem fio. É uma pena, pois poderia lançar o produto Esmolcard, cartão múltiplo, de débito e descrédito. O cartão de débito é aquela coisa que todo mundo conhece. O cartão de descrédito, no entanto, é algo revolucionário. O portador do Esmolcard pode dar esmola parcelada, em até doze vezes, deixando de ser abordado pelo mendigo durante um ano. O mendigo receberá a esmola em parcelas mensais, o que lhe dará mais tranqüilidade quanto ao futuro.

Boas idéias não ficam escondidas. O flanelinha da esquina – aquele que faz rodízio de carros na área tarifada – gostou da idéia. Está cansado do pessoal que diz não ter troco na sexta-feira, prometendo dar algum no dia seguinte. Com o sábado e o domingo vem a amnésia. Na segunda, de nada se lembram. O Flanelcard está caindo de maduro. Nestor já está sendo cotado para a presidência do Sindesmola, agremiação de classe dos mendigos.

Nesta nossa sociedade tão marcada pela flexibilidade institucional, o governo copiou a idéia do Nestor. Porém, não deu muito certo. Criaram um cartão, mas pensam em substituí-lo, dando um salário mínimo ao portador. Por dia. Quanta miséria, dirão.


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16.5.08

398 - Estertor de sexta-feira

Foto: Wikipedia
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Estertor de sexta-feira

Por Paulo Heuser


Essas coisas sempre acontecem nas sextas-feiras. Hoje tive que entrar num prédio público, logo cedo. Cheguei ao guichê, para identificação, quando reparei que havia algo errado por lá. Havia grande burburinho, com gente andando em todas as direções, alguns dando palpites para si mesmos. Um anão gritava “ó de baixo!”, desesperado. Rebobinando um pouco, reparei que, no lado de fora do prédio, três sujeitos em ternos pretos, estilo MIB, tentavam desesperadamente catar um táxi. Seguranças do prédio, provavelmente.

Fui atendido por uma moça que sequer olhou para a minha identidade. Ela me alcançou um crachá, de pronto, sem sequer questionar o motivo da minha visita. A moça tremia, e olhava para os sofás no canto do saguão. Lá estava o foco do burburinho, escondido pela protomultidão que adensava.

- Coitado! – gritou a moça trêmula.

A essas alturas eu já pude constatar que se tratava de alguém doente. Assalto não seria, pois nessas situações o pessoal costuma debandar, apesar da curiosidade tentar atraí-los feito magneto. Os mais curiosos tentariam entabular uma conversa com o ladrão, perguntando-lhe sobre a arma, se está nervoso, se a mãe dele sabe o que ele faz, etc. Mas, assalto não poderia ser, pois o que haveria para se roubar num prédio público? Formulários, guias de fila e carimbos?

O estertor veio forte, profundo, como qualquer estertor deveria vir. Veio do meio do burburinho, esclarecedor, pois denunciou se tratar realmente de alguém doente, muito doente. Estertores falam por si próprios. Quem os emite, inicia a viagem para o outro lado.

- Será que não dá para se chamar algum parente? – gritava uma senhora de cabelos azulados e óculos de gatinha.

- Nós já chamamos um táxi! – respondeu-lhe um dos três homens de preto.

O estrebuchante cessou os estertores, por um momento, para gritar, em voz profunda e rouca:

- Não, deixe-me morrer em paz! – e voltou a estertorar, para satisfação da protomultidão, que só fazia crescer.

Estranho. O sujeito queria morrer, ou teria construído mal a frase? A vírgula estaria mal colocada? As vírgulas dos moribundos por vezes se deslocam. Nisso os homens de preto vieram buscá-lo, pois o táxi chegou. Por que não chamaram uma ambulância? Call nine-one-one, recomendavam os cinéfilos americanófilos. Quando a protomultidão abriu um corredor, para a passagem dos homens de preto, pude finalmente ver a fonte dos estertores. Um homem jazia, quase que literalmente, sobre uma fileira de cadeiras. Aparentava 70 anos, e vestia-se de forma simples. Quando os homens de preto tentaram levantá-lo, o homem se agarrou às cadeiras, com unhas e dentes. A protomultidão gritava para que ele aceitasse ajuda. Estaria ele com medo das vestimentas pretas? Normalmente, quem vem salvar, está de branco. Eles acabaram arrastando o homem, com cadeiras e tudo, porta afora, seguidos pela protomultidão, ávida pelo último estertor. Quando chegaram ao táxi, o moribundo pôs-se de pé, furioso, repelindo os seus salvadores com violentos empurrões.

- Nós só queremos ajudá-lo! - disse-lhe um dos homens de preto.

- Que nada! – gritou o então ex-moribundo.

- Nós vamos levá-lo ao pronto-socorro...

- Sim, e eu perderei a única oportunidade de ganhar algum dinheiro!

- Como? – perguntou-lhe um dos homens de preto.

- Eu nunca ganhei dinheiro na vida! Eu quero meu auxílio-funeral!



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13.5.08

397 - Qual é a cor dos meus olhos?



Herbert James Draper

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Qual é a cor dos meus olhos?


Por Paulo Heuser



O Zé andava numa fase atlética da vida, próximo da virada dos 40. Entre outras atividades, nadava milhares de metros por dia. Fizesse chuva ou sol, lá estava ele, junto à piscina. Após um minucioso alongamento, metia-se a dar braçadas e pernadas, intercalando quatro estilos e exercícios específicos para pernas e braços. Com o tempo, conhecia cada azulejo do fundo da piscina, quase os chamando pelo nome. Poderia sair da piscina e avisar ao responsável pela manutenção que “o Aurélio 72B está trincado!”. Zé já passara há muito daquela fase em que os novos nadadores contam chegadas (50m) usando as bóias da raia como ábaco. Ele já contava inconscientemente as chegadas, pelo menos 60 por dia.

As águas das piscinas ficam turvas, à medida que são utilizadas. Quanto mais gente houver, mais cara de xixi a água terá, até por contê-lo, às vezes. O Zé adorava as piscinas na primeira hora da manhã, especialmente aos domingos. Quem acordaria às sete da manhã de um domingo para ver azulejos passar? Apenas o Zé. Ele adorava sentar na borda da piscina e observar aquele mundo de água transparente, sem marola, lisa como um espelho. Ao deixar o corpo escorregar para dentro d’água, provocava aquelas primeiras ondas mecânicas, que batiam suavemente nas raias.

Era uma manhã de domingo, no inverno. Zé cumpriu o ritual de alongamento na piscina límpida e espelhada. Pôs-se a nadar crawl, estudando cuidadosamente cada movimento. Não havia nadado mais do que quatro chegadas, quando observou algo diferente na raia ao lado, enquanto fazia a virada. Parecia haver um pé n’água. Cinqüenta metros depois – era uma piscina de 25 -, pode observar que havia dois pés balançando n’água. Pés femininos, pelo tamanho e formato. A curiosidade não matou o gato, ou o Zé, no caso. Ele continuou firme, nadando na direção de uma meta abstrata, situada 2750 metros à frente. Na virada para os 300m, aqueles pés haviam ganhado um par de pernas torneadas. Deixando os 350m para trás, Zé observou que nada mais havia na raia ao lado. A surpresa fê-lo parar intempestivamente. Onde fora parar a sereia matinal dominical? A resposta veio em forma de uma figura esguia que executou uma perfeita largada, a partir da borda da piscina. Zé ainda pode observar o alinhamento correto dos braços e pernas. Ao invés de continuar nadando em frente, a sereia retornou à borda, emergindo ao lado do Zé. Ela ainda não havia vestido a touca, deixando à mostra os longos cabelos pretos, ajeitados rapidamente em forma de coque, enquanto cumprimentava o Zé com um sorridente “Oiiiii!!!”.

O Zé engasgou, frente àquela linda jovem que escancarava um sorriso de dentes perfeitos. O máximo que conseguiu externar foi um “Ãhm”. Os olhos da sereia hipnotizavam. Brilhavam intensamente, em tons verde-azulados. Ele mal notou o maiô colante que mal cobria o corpo da sereia. Os olhos dela fizeram-no sentir-se o Homero da Odisséia, encantado pelas terríveis sereias. Se houvesse mais alguém, além deles, naquela piscina, imploraria para que lhe amarrassem às raias, para não enlouquecer.

- Qual é a cor dos meus olhos? – perguntou-lhe a jovem.

- Ãhm... Bem, são lindos... – foi o máximo que ele conseguiu balbuciar.

- Sim, mas de que cor? – insistiu ela, encarando-o firmemente. Faria parte do feitiço? Ao responder à pergunta, ficaria eternamente preso na piscina? Nunca mais poderia ir ao vestiário?

- Er... Verde-azulados, creio eu... Lindos, para dizer a verdade...

- Oh, que bom! – ela exclamou, ampliando o sorriso divino. E continuou, após piscar os olhos encantadores:

- Significa que não perdi as lentes de contato. Esqueci de tirá-las antes de entrar na piscina. Valeu, tio!

A ex-sereia, agora sobrinha, deixou a piscina, cuja água pareceu subitamente gelada, com um impulso, em direção à escada do vestiário, de onde retornou após alguns minutos. O Zé nem se interessou mais pela cor dos olhos da nova sobrinha. Azuis, verdes, pretos, castanhos, que diferença isso faria, então? Aquela foi a última vez que ele entrou numa piscina, para nadar. Hoje se limita a molhar o corpo, agarrado à bóia em formato de cavalo marinho, rezando para que nenhuma jovem o chame de vovô. Pensa em jogar xadrez.



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12.5.08

396 - A libertação


Desenho: Wikipedia
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A libertação

Por Paulo Heuser


Há poucos lugares no mundo que se transformam tanto quanto a Voluntários da Pátria. Nos domingos pela manhã, aquela loucura do comércio-formiga dos dias da semana dá lugar a uma calmaria quase interiorana. Onde há vendedores de vale-vale-vale-..., de segunda à sexta, nos domingos vê-se apenas famílias em trânsito, entre os terminais de ônibus. Os gritos de “fááááábca de calciiiiinhas”, ou corto cabelo e compro ouro, dão lugar ao silêncio. No lugar dos vendedores de Windows Vista tropicalizado, aparecem vendedores de algodão doce que migram para os parques.

Quem gosta de fotografar a arquitetura antiga do Centro, não pode perder a Volunta nos domingos pela manhã, quando a luz é boa e a calmaria permite fotografar e sair vivo, inclusive com a câmera, se tiver sorte e uma certa dose de juízo. Em frente à loja fechada, com a cortina cerrada, estava o Moisés. Não havia como não notá-lo. Ele destoava da multidão de esquecidos maltrapilhos. Um mendigo sentado na soleira da porta de uma loja fechada, não constitui cena rara. Moisés ocupava um dos cantos da porta, o que ajudaria muito na composição da foto, que poderia intitular-se “Cartões de crédito são bem-vindos”, pois a cortina metálica estava repleta de adesivos de propaganda de cartões de crédito. O que destacava o Moisés, era o coquetel de frutas. Ninguém espera ver um sujeito daqueles tomando um coquetel de frutas cor de rosa, na Volunta, em pleno domingo de manhã. Ele mexia freneticamente o coquetel com o canudo, enquanto lia um livro preto colocado entre as suas pernas. Os poucos passantes, muitos acompanhados de crianças, desviavam da figura estranha, passando rente à rua. Subitamente, Moisés gritou algo que pareceu “Corinthians!”. Isso explicava muito. Era um daqueles fanáticos por futebol que descera a ladeira da vida, após uma perda de campeonato.

Havia algo mais que chamava a atenção no Moisés: o livro preto. Era a Bíblia. Associando com o grito, concluí que o este seria “Coríntios” – o livro -, e não Corinthians. Uma senhora roliça que vendia frutas gritou: “Cala a boca, Moisés! Todo mundo tá cheio dessa história!”. Eu deixaria por isso mesmo, e seguiria meu caminho. Mas, não o Zé. Como ele adora uma encrenca, meteu-se a falar com a mulher da fruteira, pedindo detalhes sobre o Moisés. Lá veio outra lenda urbana. A mulher contou que o Moisés foi atropelado pelo ônibus de uma excursão de beatos, na antiga Rodoviária da Conceição, na década de 60. Moisés teve uma revelação, enquanto convalescia na Beneficência Portuguesa. Quando teve alta, com alguns parafusos a menos, outros tortos, ele passou a perambular pela Volunta, arrebanhando um contingente de maltrapilhos que seria libertado da cidade grande. Moisés fracassou, ao contrário do seu antecessor bíblico, o Moises (sem acento, para diferenciá-los).

Moisés até que tentou. Porém, quando se pôs em marcha, seguido pelos treze que compunham seu povo, em direção a Terra Prometida, além das ilhas do Guaíba, teve sua marcha confundida com uma passeata subversiva. Apanharam a rodo, acabando no xilindró. De nada adiantou Moisés ameaçar as autoridades com as Pragas do Guaíba. Foram fichados por vadiagem. As pragas acabaram vindo. Primeiro veio a de pernilongos, depois a da Borregaard, que encheu o ar da cidade com o cheiro de flatos, para não dizer que falei de algo pior. Os anos 70 trouxeram nova esperança, com os ventos da democracia. Moisés e sua trupe enquadraram-se na classificação de movimento social, e receberam autorização para empreenderem a longa marcha, não tão longa como a de Mao, desde que não obstruíssem completamente a rua. No caminho foram interceptados pelo fiscal do sindicato das empresas de turismo. Moisés foi autuado por não contar com o auxílio de um guia turístico credenciado, problema solucionado apenas no início dos anos 80. Uma das novas igrejas emprestou um guia. Lá foram os onze. Não eram mais treze, pois dois haviam morrido e um fora tentar a sorte no Nordeste. Restaram dez, mais o guia. Algo falhou, na tentativa de abrir as águas do Guaíba. Moisés nem chegou a tentar, pois o fiscal do meio ambiente o impediu. Preencheu papelada, daqui e dali, apresentou projeto de impacto ambiental, ISO 14001 e todas aquelas coisas, e nada. Não autorizaram Moisés a abrir as águas do Guaíba. Os sete restantes seguiram de ônibus, através das pontes. Dos onze, dois haviam se aposentado, um alistara-se na Legião Estrangeira e outro virara despachante aduaneiro, com toda experiência de preenchimento de formulários.

Passados 40 anos, finalmente chegaram a Terra Prometida, em Eldorado do Sul, para descobrirem que ela havia sido invadida pelo MST. Voltaram a pé, espalhando-se em todas as direções. Moisés ficou na Volunta, lendo repetitivamente as Cartas aos Coríntios. Durante a semana, perde-se em meio ao burburinho. Vez por outra, uma comiserada moça faceira, que sai de uma casa noturna, lhe dá um coquetel de frutas. Com canudinho.

Falei para o Zé que essa história era muito absurda. Ele ponderou, no entanto, que os detalhes a respeito da burocracia parecem bastante críveis. Tem razão.

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11.5.08

395 - Sazonalidade democrática


Kim Jong-iI - Foto: Wikipedia
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Sazonalidade democrática

Por Paulo Heuser


O processo democrático não é perfeitamente contínuo. Apresenta descontinuidades periódicas. Há quem defenda a monarquia, por apresentar exatamente essa continuidade que falta à democracia. Como naquele regime de governo não há troca dos personagens, a cada quatro ou cinco anos, os projetos de longo prazo não sofrem interrupções ou atrasos. Outros, menos radicais, defendem as reeleições sem limites, que garantiriam a continuidade dos projetos. É o caso dos cubanos, por exemplo. Reconduziram o mesmo sujeito ao poder, durante décadas, garantindo a continuidade dos processos democráticos. Outro que ficou muito tempo no poder, de 1939 a 1973, foi o Chico, carinhosa alcunha do Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco y Bahamonde Salgado Pardo de Andrade, o Generalíssimo Franco, da Espanha. A Iugoslávia teve o longo governo de Josip Broz Tito, entre 1945 e 1980. O português António de Oliveira Salazar esteve à frente do governo entre 1932 e 1968.

Todos esses governantes puderam mostrar a que vieram, pois não tiveram seus mandatos interrompidos a cada pouco. Kim Jong-iI, da Coréia do Norte, dá continuidade aos projetos sociais do seu pai e predecessor no poder, enquanto cultiva uma cabeleira peculiar. Esses exemplos de governos contínuos eram assunto na conversa do happy hour no Prantelha, restaurante dos poderosos de Brasília, numa quarta-feira, véspera de final de semana. Os interlocutores nem precisaram pedir. O garçom trouxe o de sempre: doses duplas de Johnnie Walker Violet Label. Como tira-gosto, caviar Almas beluga iraniano. O Jacuzeira comentava:

- O pior é que o País gasta uma fortuna a cada quatro anos. Desestabiliza tudo. Após as eleições, vêm as intermináveis choradeiras dos aliados, atrás de cargos. É o jardineiro da casa do coveiro do irmão do secretário do tesoureiro da campanha do aliado do vereador, e aí por diante. Leva-se três anos e meio para tentar acomodar esse pessoal todo, e mesmo assim sobram muitos. Os que sobram ameaçam contar aquela história da festa da sogra do candidato que gostava de vestir a roupa da nora, etc. Aí exoneramos um dos primeiros, que pisaram na bola, e começamos a acomodar os últimos, e assim vamos celeremente na direção da nova eleição, quando todos perderão seus cargos, começando tudo novamente, conforme as alianças do segundo turno.

O Butiazeira bebeu um gole do Johnnie Violet, deixou o uísque escorregar entre os dentes, e concordou:

- Nem me fale. Com essas alianças esquisitas que aparecem por aí, temos de engolir sapos de todos os matizes, credos, ideologias e gosto musical. Eu às vezes acho que deveríamos fazer um novo referendo para emplacar a monarquia. Elegeríamos um novo rei, que ficaria no poder até morrer, ou abdicar em nome de algum correligionário. Os projetos sociais tornar-se-iam perenes. E o puxa-saquismo eleitoral iria para a banha. Já pensou, que maravilha? Poderíamos fechar o Congresso e criar uma corte ao nosso gosto...

- Fechar o Congresso?!!! Você enlouqueceu, Butiazeira? – Jacuzeira chegou a tremer de susto.

- Ora, para que precisaríamos de um congresso, em meio à monarquia?

Jacuzeira fez sinal ao garçom, para servir outra dose dupla. Bebeu-a de um trago, para dizer:

- Para fazermos a única coisa importante do regime democrático: a CPI! Como faríamos CPIs sem congressistas? Aliás, o que mais há para se fazer?

Butiazeira pensou, por um momento, enquanto passava o dedo pela carta de vinhos, parando no Romanée-Conti Petrus 1982.

- Pensando bem, você tem razão. Esta droga de democracia interrompe as CPIs, a cada quatro anos, logo quando vão decolar! Assim não dá para se mostrar serviço...

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7.5.08

394 - Quarenta e duas



Motorola
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Quarenta e duas

Por Paulo Heuser


Armagedônio cantarolava Knocking’ on Heaven’s Door, de Bob Dylan, quando bateram à porta. O knock e o toc foram mera coincidência, pois ele cantarolava a mesma música desde 1973, quando a vitrola deixou de funcionar. Tampouco bateram à porta, desde lá. Por isso, não foi sem surpresa que viu aquele sujeito sorridente, parado na entrada do espartano apartamento de quarto e sala.

- Bom dia, Senhor...? – O estranho sorria, com olhar de interrogação.

- Armagedônio, às suas ordens.

- Eu poderia conversar consigo, por alguns instantes? – Perguntou o sujeito sorridente.

- Sim, entre...

- Obrigado! Sou o gerente de vendas da Global Market Outlet, Inlet, Middlelet & Anylet. Estou aqui porque não conseguimos entrar em contato com o senhor através do telefone.

- É que eu não tenho telefone.

- Pois então, o senhor aparece como uma anomalia, no nosso relatório gerencial. O conselho de acionistas certamente trocará o presidente da empresa, meu chefe, indicando um outro, que demitirá o principal executivo de vendas: eu, caso não consigamos inseri-lo na nossa promoção do mês. Como todas os nossos canais de vendas utilizam o telefone, vim pessoalmente.

- O que o senhor vende?

- Vendemos qualquer coisa, mas nossa campanha atual é para a venda dos televisores 42’’, de plasma. Estamos com a promoção Pequim 2008. O senhor compra nosso aparelho, assiste aos jogos e começa a pagar somente após as Olimpíadas de Londres, em 2012. Há opção para troca automática do aparelho, a cada ano, chegando em 2012 com o modelo de 168’’.

- Mas, eu não assisto à televisão. Além disso, um modelo de 168” não caberia dentro do meu apartamento.

- Não seja por isso! Nossa divisão imobiliária já comercializa os apartamentos com TV Wall 168, prontos para nossos aparelhos de plasma da campanha Londres 2012. Os imóveis podem ser completamente financiados, com opção de pagamento a partir das Olimpíadas de Madri ou Rio, em 2016, sem local ainda definido.

- Bem, o tamanho não é o problema. É que eu realmente não assisto à TV.

- Hoje, hoje. Quando chegarem as olimpíadas, o senhor não desgrudará os olhos da tela da nossa Pequim 2008 - 42’’ Olympic Turbo Blower!

- Não assisto às olimpíadas, tampouco. Deixei de acompanhá-las faz muito tempo. Os jogos tornaram-se competições entre patrocinadores.

- Nós respeitamos seus escrúpulos, porém me cabe lembrá-lo que no próximo domingo comemoraremos o Dia das Mães. O senhor já imaginou sua mãe assistindo ao Juvenal em 42’’, puro plasma?

- Eu não tenho mais mãe...

- Então a promoção “Todo Mundo de Mãe, no Dia das Mães”, serve como uma luva! Nós estamos com uma promoção de mães adotivas, fornecidas pela nossa ONG Mães Sem Fronteiras. A promoção Pequim 2008 oferece mães chinesas em pronta entrega. O senhor assina o contrato agora, recebe o aparelho e a mãe em 24 horas, e passa a assistir aos capítulos do Juvenal, em companhia da nova mamãe.

- Não me interessa, pois realmente não assisto à TV e não sei quem é esse Juvenal.

- Nossa, desde quando o senhor não sai daqui?

- Desde 1970. Eu era vendedor, na época. Bati à mesma porta, para tentar vender um televisor em cores para o então morador. Havia a campanha da Copa do Mundo.

- Alugou o apartamento dele?

- Para dizer a verdade, não. Ele simplesmente sumiu, após me oferecer café. Entrou na cozinha, e não voltou. Foi quando observei que as portas não têm maçanetas, por dentro. Creio que abrem quando alguém bate. Como você, no caso. Notei também que as janelas são falsas. São quadros pintados, na verdade. A propósito, aceita um café?


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5.5.08

393 - Pomba! Pomba! Pomba!



Imagem: Desciclo.pedia.ws
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Pomba! Pomba! Pomba!

Por Paulo Heuser


O Desgraça não é mulher, é um homem, como denuncia apropriadamente o artigo definido masculino que precede seu codinome. O apelido mais apropriado seria Teskrassa, pois o Desgraça é um teuto-brasileiro que caprichou na gramática para perder-se na fonética – Fonêtika. Como todo homem afeito às letras, Desgraça fez carreira entre elas, tornando-se jornaleiro. Era apenas um menino, quando seus gritos foram ouvidos pela primeira vez, lá pela escadaria da Durante Caneleira:

- Pomba! Pomba! Pomba! – Em português: Bomba! Bomba! Bomba!

O pessoal do comércio da ladeira fazia troça. Diziam que o Desgraça caçava pombas. Contudo, todos reconheciam o esforço do menino para vender os jornais. Ele conseguia transformar fatos corriqueiros em manchetes bombásticas. O furto de uma galinha, ocorrido nos baixios da Várzea Funda, foi anunciado mais ou menos assim:

- Pomba! Pomba! Pomba! Krante enicma abaforra akrikultorres do berriferria! – Traduzindo: Bomba! Bomba! Bomba! Grande enigma apavora agricultores da periferia!

O Desgraça dava cor às manchetes. Antes das oito da matina já não havia mais o que vender. Atraídos pelo berreiro apocalíptico do Desgraça, os passantes e locais terminavam rapidamente com o estoque de jornais. O Seu Pedro, do açougue, comprava o jornal apenas para tentar encontrar o vínculo entre a manchete gritada e a escrita. Uma espécie de jogo de charadas. O distribuidor dos jornais começou a aumentar semanalmente a quantidade de jornais entregues ao Desgraça. Nunca houve devolução de exemplares não vendidos. Desgraça seria capaz de vender jornais do ano anterior, pois ninguém conseguiria resistir aos seus apelos bombásticos, extraordinários e sanguinolentos. A notícia do casamento da infanta Elena, filha do rei da Espanha, foi assim anunciada:

- Pomba! Pomba! Pomba! Filha te Dirrano da Tera do Inkississôm da Dorkemata, setussita por Tessembrekato! – Traduzindo: Bomba! Bomba! Bomba! Filha do tirano da terra da inquisição de Torquemada seduzida por desempregado.

Talvez a manchete mais famosa, interpretada pelo Desgraça, tenha sido o anúncio de um supositório que curaria hemorróidas:

- Pomba! Pomba! Pomba! Máfia das Remétios bratika Sotomia nos Drasseirros enssanquendados. – Traduzindo: Máfia dos remédios pratica sodomia nos traseiros ensangüentados!

Desgraça nunca aceitou os convites para assumir uma banca. Preferiu ficar parado na esquina, ao relento, enquanto berrava seus anúncios catastróficos. Berrou durante 60 anos, até que a voz o traiu. O Seu Pedro lhe comprou um megafone, na esperança de que os inícios das manhãs continuassem recheados com berros do Desgraça. O açougueiro tornou-se adicto da desgraça matinal berrada. O ruidoso jornaleiro deu lugar a outro, já que não conseguia mais berrar, nem com o auxílio do megafone. A queda nas vendas do jornal fez-se sentir de imediato.

Conta a lenda urbana que levaram o Desgraça para o centro do poder. Ele não grita mais. Apenas sussurra manchetes inimagináveis, nos ouvidos dos assessores de imprensa que têm a missão de abafar desgraças, com desgraças ainda maiores. Se há alguém que sabe fazer isso, esse alguém é o Desgraça.

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3.5.08

392 - A torneira II



Yosemite Falls - Wikipedia
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A torneira II

Por Paulo Heuser


Esta é a segunda vez que escrevo sobre torneiras. Não nutro nenhum tipo de fixação doentia por torneiras de plástico de 3,70 reais – ou 10 X 0,37 -, mas elas causam tamanha lambança quando se quebram, que são dignas de nota. Não me recordo bem da torneira anterior, pois das dores do parto e das torneiras de plástico esquece-se logo.

A torneira objeto desta narrativa está instalada em um bebedouro que serve um pessoal de alta tecnologia, completamente diferenciado da média da população. São engenheiros, matemáticos, químicos e promotores de jazigos. O ambiente de alta tecnologia implica a manutenção de ambiente com umidade do ar controlada, um tanto abaixo daquela ideal para os seres humanos. Esses ambientes costumam ser tão hostis que nem mesmo as baratas os agüentam, fugindo pela primeira fresta disponível. Porém, esse pessoal altamente técnico perde-se em elucubrações mentais, de neurônios estratificados, e esquecem-se das condições de contorno. Não sabem bem o que é calor, frio, etc. Sabem de cor a equação do calor, porém não são capazes de senti-lo. O alarme vem quando o corpo sente a falta de água, e consegue interromper o cérebro, causando a sensação de sede. Quando dois ou mais gênios sentem sede, dirigem-se ao bebedouro, trocando soluções de problemas complexos. Talvez aqueles dois não tenham percebido logo que a torneira de plástico do lado direito havia apresentado defeito, emperrada na posição aberta. O gênio No. 1 olhou para os sapatos do gênio No. 2, e observou:

- Veja só, seus sapatos estão molhados!

- Ora, veja só, os seus também!

Passaram-se 12 minutos, e 12 litros d’água, até que constatassem algo formidável, que revolucionaria todo problema da torneira inoperante. Ambos gritaram, quase em uníssono:

- Parou! Não chove mais nos meus sapatos!

O gênio No. 3, que observava tudo em silêncio, matou a charada. Quem vê o problema de fora, enxerga primeiro a solução:

- Parou, porque a água da bombona terminou.

Os gênios de números 1 e 2 efetuaram alguns cálculos mentais - problemas de taxas relacionadas. Chegaram à conclusão de que, se trocassem a bombona, esta se esvaziaria em apenas 20 minutos. Necessitariam de 80 pessoas, que bebessem 250 ml cada uma, ou molhariam novamente os pés, caso voltassem a beber água. Que problema físico formidável! Os gênios de pés molhados convocaram uma reunião com outros gênios, de pés secos. As idéias floresceram por toda parte. Um deles sugeriu que virassem o bebedouro de ponta-cabeça. Os pés não se molhavam mais, porém, por alguma razão qualquer, a água não fluía para cima. O gênio 4, até então quieto, demonstrou alguns teoremas sobre microcapilaridade que poderiam ajudar. Descartaram também um sistema de cisterna. O uso de galochas foi igualmente desconsiderado.

A batida leve na porta interrompeu a reunião, exatamente no momento em que testavam um dispositivo que transferia o fluxo excedente, que deixava a torneira defeituosa, para outra bombona, colocada na altura do chão. Como a operação do sistema exigia que trocassem as bombonas de posição, a cada 20 minutos, convocaram um estagiário para operá-lo. Os gênios não têm forças para erguer 20 kg.

Alex entrou na sala, olhou para a engenhoca, ouviu as instruções para operação, e pediu um lápis. A seguir, quebrou um pedaço deste e enfiou-o no orifício da torneira defeituosa. O silêncio que se abateu sobre a platéia de gênios, quando a água deixou de escorrer, foi constrangedor. Alex quebrou o silêncio:

- Assim dá mais tempo para ir correndo até a loja de ferragens para comprar outra torneira.

Ele demonstrou que a simples pena pode ser mais eficiente do que milhões de idéias geniais. Sei, a moral desta história é uma porcaria, porém fez-se necessária alguma, mesmo que tão ridícula.

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1.5.08

391 - Primeiro de Maio



Foto: Paulo Heuser
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Primeiro de maio

Paulo Heuser


Não me pergunte onde fica o Alegrete, nem o que eu fazia no Largo Glenio Peres, na manhã do Dia do Trabalho. Dia curioso. Deveria chamar-se Dia do Ócio, já que muito poucos trabalham neste dia. Alguns protestam contra alguma coisa. Como aquele grupo reunido defronte o Mercado Público. Empunhando bandeiras vermelhas, protestavam contra... contra... Bem, protestavam.

Além de protestarem, me atrapalhavam, pois eu tentava obter uma foto da Prefeitura Velha, sob determinado ângulo. E eles estavam na frente. Tentei chegar para cá, para lá, e sempre havia uma bandeira vermelha na frente da lente. Por que ninguém protesta com bandeiras verdes e amarelas? Acabei no meio daquela micro-revolução do Primeiro de Maio. Nada tão imponente como os desfiles do Primeiro de Maio da Praça Vermelha, em Moscou, mas estavam lá, agitando suas bandeiras de esquerda, enquanto uma manifestante esganiçava-se ao microfone. Não usava um quepe enorme, de aba enorme, como aqueles dos oficiais soviéticos. Era apenas uma jovem, como sua filha, usando tênis, jeans e um blusão de lã colorido. Os cachorros combinam com os donos, assim como os militantes combinam com suas bandeiras que, em última instância, fazem o papel do dono. Por isso, eu nunca esperaria que aquele sujeito de meia-idade, parcialmente calvo fizesse parte daquele comício. Não pela calva, já que Lênin ostentava uma reluzente. Era o conjunto todo, que destoava. Ele estava vestido de forma incompatível com a moda local. Roupas claras, porém formais, camisa para dentro da calça e um sapato de matar barata em canto de sala. Lembrava fisicamente o Richard Dreyfuss. Ele não protestava carregando um estandarte vermelho, como os demais.

O Improvável carregava uma garrafa de água mineral, dessas de meio litro, como se fosse um telefone móvel celular. A base da garrafa fazia as vezes de bocal, enquanto o gargalo servia de alto-falante. Sempre há alguém meio esquisito, para não dizer todos, em meio a essas manifestações. Porém, quando falam com uma garrafa, espera-se um maltrapilho que já deixou a razão para trás, faz muito. Aquele destoava duplamente, do comício e do estereotipo do doido de comício. O homem se parecia com um professor de Direito Tributário!

Eu tentava enquadrar o topo do prédio da Prefeitura no visor da câmera, enquanto o Improvável andava de um lado para outro. Minha mãe me ensinou que é feio encarar os outros, principalmente quando caminham de um lado para o outro falando com uma garrafa de água mineral sem gás. Tentei evitar, mas não foi possível. Nem para mim, nem para um jovem escondido sob uma boina de lã estilo Bob Marley. O jovem abordou o Improvável e lhe perguntou:

- Protestando contra o monopólio da telefonia?

O Improvável pareceu meio constrangido, respondendo-lhe:

- Humpf!

- Sei como é! Privatizaram a telefonia para aumentar a concorrência, forçando a expansão dos serviços e a baixa dos preços. Depois uns venderam para os outros até sobrarem apenas duas operadoras. Contra qual delas você está protestando?
O Improvável pareceu mais contrariado, e limitou-se ao:

- Humpff! – este com dois éfes.

- Essa eu não conheço – falou o jovem manifestante -, mas em breve teremos apenas uma, talvez essa tal de Humpff.

Como o Improvável não saía do meu ângulo de tiro, resolvi lhe pedir licença. Ele prontamente deu lugar, enquanto falava, com alguma dificuldade:

- Oh, e eculpe! Ou o ono quele ar ali, e ou om ma errível or e ente. Isseram-e ara olocar algo elado ontra a oca, omo essa arrafa e água elada.


N.T.: – Oh, me desculpe! Sou o dono daquele bar ali, e estou com uma terrível dor de dente. Disseram-me para colocar algo gelado contra a boca, como esta garrafa de água gelada.

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