25.6.10

578 - Lound teibel

Ninho do Ovo
Foto: Paulo Heuser
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Laund teibel

Paulo Heuser



Todos os fatos da vida estão conectados de alguma forma. Este é um fato, mesmo que não percebamos imediatamente essas conexões. Em alguns casos, elas são bastante sutis. Vejamos o caso do assassino serial de Poughkeepsie. A relação dele com as virilhas poderia parecer óbvia, mas não é.
Em outubro de 1996, Wendy Meyers, 30, desapareceu na cidade de Lloyd, Condado de Ulster, poucos quilômetros ao leste de onde sumiu, em dezembro do mesmo ano, Gina Barone, 29, na pequena Poughkeepsie, no Condado de Dutchess, margem direita do Rio Hudson. Não foram as últimas a se desvanecerem naquela região. Mais seis desapareceram, até que uma prostituta, que seria a nona vítima de Kendall Francois, conseguiu fugir da casa dele, em Poughkeepsie. Ele foi preso. Em 11 de agosto de 2000, Francois foi sentenciado à prisão perpétua, que cumpre na prisão de Attica. A arte imitou a vida, e John Erick Dowdle produziu e dirigiu, em 2007, o filme The Poughkeepsie Tapes, no qual a polícia daquela cidade teria encontrado 800 fitas mostrando a ação de um assassino serial. As oito viraram oitocentas, mas o cinema é assim.
Cheguei a Poughkeepsie numa chuvosa tarde de domingo, após 27 horas de viagem e de pacotes e mais pacotes de bolachas de bordo. O destino ainda me faria sentir saudades delas. Constatei, de estalo, que os nativos do norte do Rio Bravo são super-humanos, pelo menos no que diz respeito ao estômago. Lá conheci Robert, um alemão, que insistia para comermos no restaurante chinês, onde poderíamos, nas palavras dele, comer tanto quanto pudéssemos. Ou seja, havia um bufê, coisa desconhecida em paragens tudescas. Já na primeira noite, jantei no Bugabú Cric, restaurante onde se encontrava um enorme búfalo empalhado dependurado na parede. Lá pelas tantas, sem aviso prévio, o ex-vivente começava a se mexer e dava um discurso empolgado. Robert parecia preocupado, como que alguém poderia comer num lugar com aquele nome? A comida até que passava, desde que se implorasse para que não colocassem o molho especial, lá sempre há um. - No dressing, please, in the name of God! Simples assim. O tal de dressing estragava qualquer coisa que se parecesse com algo comestível, especialmente quando o restaurante se especializava na cozinha qualquer-nacionalidade-americana. Cozinha austro-americana significava schnitzel com dressing de algo fabricado nas profundezas do Golfo do México. Os frutos do mar de lá já vinham de fábrica com esse molho. Por outro lado, a cozinha ítalo-americana era feita à base de massa com dressing de american cheese, cuja composição química nem a British Petroleum conseguiu descobrir.
Cedo descobri que o Robert estava coberto de razão. Os alemães não fabricam Mercedes e Audis à toa. Há ciência por trás daquilo. O chinês era a salvação, pois não havia comida sino-americana. A especialidade chinesa era a galinha indiana. Spicy eram as outras, aquilo era vulcânico. Mas, pelo menos, não levava molho de polímeros. O Robert indicava também a alface, único prato americano que não é empanado nem frito. Por enquanto. Curiosa mesmo era a recepcionista do restaurante chinês, uma chinesa, casualmente. Ela nos mandava à laund teibel, apesar de todas as mesas parecerem retangulares. Isso me intriga, mesmo agora. Mais intrigante foi o almoço do Dia das Mães. Estava eu sem mãe e sem lugar para almoçar. O chinês estaria lotado com famílias que deixariam a máquina de lavar louças descansar. Optei por passear pelo interior do condado de Ulster, no outro lado do rio. Numa encruzilhada da rodovia 213, em High Falls, encontrei um pequeno restaurante que me atraiu a atenção, pela decoração, como direi, extremamente eclética. O colorido e a panaceia de objetos estranhos me distraíram, e não percebi tratar-se de um lugar especializado na effrayante novelle cuisine américane. O lugar estava vazio, o que, naquele dia em especial, deveria ter soado como um alarme. O nome da casa, Ninho do Ovo, até que não assustava. Uma mulher da terceira idade, com cara de mamushka, veio me atender. Sorria, quando me disse que eu não poderia sair de lá sem comer o Reuben. Comamos o Reuben, pois, pensei. Em High Falls faria como os highfallianos. Eu olhava distraído ao redor, quando o Reuben chegou. É difícil descrevê-lo. Mais difícil ainda, foi digeri-lo. Uma espécie de sanduíche de carne recheado com chucrute e molho russo, pasta feita de ketchup, maionese e vários tipos de pimentas. Ah, guarnecido de algo que chamavam batatas inglesas, mas eram daquelas de pacote de salgadinhos.
Após passar muitos dias comendo alface, e com alguns quilos a menos, constato que as coisas por aqui também estão mudando. Paro na frente de um restaurante que oferece virilhas por R$ 20,00. O que não inventam? Ubre, tripa grossa, miolos, bagalhões e, agora, virilhas? Bem, percebo que, afinal, não é um restaurante, é uma casa de depilação. Que seja, é estranho, assim anunciado.
Voltamos às conexões entre os fatos, até agora desconexos. O Reuben me levou a pensar que a prisão perpétua pode ser bem pior que a pena de morte. Fico a imaginar o Kendall Francois comendo da effrayante novelle cuisine américane, todos os dias, pelo resto da sua miserável existência, sem chinês, sem laund teibel.



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