18.6.08

414 - Atrasado!



Foto: Paulo Heuser
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Atrasado!

Por Paulo Heuser


Eu adorava sardinhas, quando criança. Não pelas sardinhas, pela lata. O atum relegou as sardinhas ao esquecimento. As pizzas de sardinha foram prato de todas as festas de aniversário da década de 70. Os rapazes levavam a bebida, as moças a comida. As mamães das moças preparavam pizzas de sardinha, invariavelmente, e os papais se livravam das bebidas que haviam recebido de brinde, seja quais fossem.

As latas de sardinhas vinham com aquela chave que pretendia facilitar a abertura. Era uma chave metálica que se encaixava numa aba, e permitia, em tese, que a tampa da lata fosse enrolada na direção de uma das extremidades. Já as pobres latas de atum, além de caras, apresentavam superfície lisa, quase desprovida de encaixes para o abridor. Para dificultar mais a abertura, sempre foram cilíndricas, exigindo que o abridor de latas ande em curva. Os abridores geralmente descarrilam. Algumas já contam com abertura através de um anel que, quando puxado, traz a tampa consigo.

As latas de sardinhas me causaram tamanho fascínio, que passei anos projetando um sistema de abertura instantânea, sem riscos à saúde. Descartei o canhão laser, pelos custos envolvidos. Deixei também de lado o rolo compressor, pois saía apenas purê de sardinhas. O modelo que chegou mais próximo da realidade foi um cortador, no formato da lata, que guilhotinava a tampa, de um só golpe. Naturalmente, tamanho e formato da lata deveriam se manter padronizados. Estava dando tudo certo. O equipamento era barato, de fácil operação, e de tamanho relativamente compacto, podendo ser afixado à parede. Então, veio o Collor. A segunda abertura dos portos, promovida por elle (sic), trouxe as latas de sardinhas portuguesas. Nada contra a nacionalidade delas. O problema foi o formato das latas, completamente diferentes das nossas. Depois, os pobres passaram a comer atum, graças à distribuição de renda do Lula. Atacado por direitistas, socialistas e portugueses, joguei a toalha. Desisti, pois cheguei atrasado. Meu invento foi natimorto. Não como mais sardinhas, e passei a odiar as latas.

As grandes corporações também chegam atrasadas. A France Telecom montou uma rede para acesso pago, sem fio, a Internet, cobrindo toda Paris, enquanto a prefeitura da cidade montava uma rede semelhante, com acesso gratuito.

Descobri que cheguei novamente atrasado. Investi nas eleições, tarde demais. Projetei postes telescópicos, que poderiam ser encolhidos até a altura de apenas dois metros, para facilitar a colocação e a retirada de propaganda eleitoral. Nos hiatos entre eleições, que não são tão longos assim, o sistema poderia abrigar a propaganda não-eleitoral. Todos ficariam felizes. Os candidatos poderiam colar sua propaganda sobre a dos outros, todas as noites. As gráficas operariam a plana capacidade. Alguém fabricaria e venderia os postes. As empresas de publicidade venderiam novos espaços. As prefeituras poderiam alugar os postes. Eu ficaria rico com a patente. Proibiram a propaganda eleitoral nos postes. Novamente, cheguei atrasado!

Não desisti, no entanto, de continuar inventando. A motivação veio de um grupo de sete miseráveis que aguardavam a morte, sentados sob uma marquise, nesta noite de frio glacial. Morrerão de frio, mas mantêm algum humor. O primeiro deu boa noite. O segundo pediu desculpas por darem boa noite, enquanto o último comentava que, de qualquer forma, eles não existiam. Como todo CSM – cidadão sem marquise -, passei olhando para o chão. Não é bom encarar a realidade. Percebi, então, por que as lojas passaram a colar propaganda sobre o passeio público. Todo mundo passa olhando para o chão, com se usassem um cabresto vertical. Foi então que nasceu meu novo projeto. São os OVU – Óculos de Visão Ufanista. Eles convertem a realidade local à realidade dos discursos. Esses óculos transformarão a passagem pelo Centro num passeio agradável, como se estivéssemos naquele lugar que os discursos políticos projetam. Através deles, veremos apenas marquises desabitadas. Não haverá caixas de papelão e cobertores sujos. Na Padre Chagas, os flanelinhas sumirão. Infelizmente, ainda não achei uma forma de sumir com os parquímetros. Os OVU eliminam apenas a imagem. O me-dá-me-dá-me-dá, permanecerá. Nada que um MP3 não resolva.

Sei que o produto tem tudo para se tornar um sucesso. Só temo chegar atrasado, novamente. Se o Brasil se tornar, finalmente, aquilo que nos vendem nos discursos, os OVU serão inócuos, inservíveis. Mostrarão a mesma agradável realidade que a visão a olho nu nos proporcionará. Assim, torço pelo atraso. Adoraria jogar os OVU fora. Porém, meu medo maior é da visão das ruas vazias, completamente desabitadas, através dos OVU, ao meio-dia, em pleno Centro, num dia comum da semana, apesar do ruído intenso.

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20.9.07

Universos paralelos


Foto: Paulo Heuser
Universos paralelos

Por Paulo Heuser


Faz 50 anos, Hugh Everett, estudante da Universidade de Princeton, sugeriu, à luz da Mecânica Quântica, que haveria universos paralelos. David Deutsch, da Universidade de Oxford, e Andy Albrecht, da Universidade da Califórnia, seguem caminhos semelhantes, hoje, nas suas pesquisas. É assunto de destaque na edição eletrônica da NewScientist de 19 de setembro.

Alheios à Mecânica Quântica e à Matemática complexa que a rege, José e Renan vivem seus universos paralelos, sem estabelecer contato um com o outro, sem interfaces compatíveis, sem sequer saberem da existência um do outro. Seus universos simulam um choque entre galáxias com imensos vazios, onde a matéria não se choca. Nem a luz que irradiam é percebida, pois emitem radiações em freqüências tão diferentes que não se detectam mutuamente. Um é matéria escura para o outro. Podem até saber da existência do outro, através da Estatística, mas não se comunicam.

Renan anda no balanço do poder, descendo por vezes, mas sempre acabando por atingir o topo. Ele vê o mundo de cima, e sempre há quem lhe empurre. Quando tudo indica que lhe faltará impulso, alguém empurra seu balanço. Acaba embalado por aqueles que não o confessam. Passam por ali, com quem não quer nada, e dão um bom empurrão. Querem vê-lo no alto, hoje, para se verem no alto, amanhã. Aparentemente, ninguém nota que já passou faz muito da fase de andar de balanço. Ou não nota, ou finge que não vê.

José anda no balanço da praça, como se fosse criança. Seu estado de demência lhe dá esse direito. Ninguém reclamará que, aos trinta, anda de balanço. José nunca atinge o topo, pois lhe falta impulso. Não há quem lhe dê um empurrão. Cleide, aos quinze, não pode. Dança um funk imaginário, sacudindo a barriga de oito meses. Eles nunca ouviram falar do Renan, nem ele, deles. Seus balanços se cruzam nos vazios dos átomos que os compõem. Suas matérias não obedecem às Leis de Newton e suas energias não obedecem às Equações de Maxwell. São massas que não geram campos gravitacionais e são partículas em movimento que não geram campos. Renan é não-matéria para José, que não apresenta carga para Renan.

Renan ri pela soberba. José ri da desgraça. Perdeu qualquer resquício de contato com a realidade do país do Renan. Para José, país é um conceito abstrato. Sabe da existência de uma bandeira, que nada significa, na sua praça. Sua pátria é a sua praça, onde vive e dorme. José não lê, não ouve e não vê. Para quê? Trabalha e se alimenta com o lixo. Diverte-se do balanço real da praça. Renan se alimenta dos restos morais da sociedade. Dos que empurram seu balanço virtual, em direção ao topo, ao céu que o balanço do José nunca atingirá.

Renan sorri de soberba. José sorri, pois será pai, mesmo que não faça a mínima idéia de como sustentar um filho, já que não sustentou os outros oito. Isso é problema para daqui a um mês. Renan sorri porque sabe que a probabilidade de que cruze pelo balanço de José é estatisticamente mínima. E José sorri infantilmente, enquanto observa a dança de Cleide.
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