16.5.09

521 - Uma perda de tempo


Foto: Wikipedia
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Uma Perda de tempo

Paulo Heuser


Aconteceu novamente. Idélio perdeu outra hora da sua vida. E perdeu um grande negócio, pois deixou de atender um cliente com hora marcada. Na primeira vez, ele caminhava para o escritório e levou uma hora para dar um passo. O pé direito levantou às 7h32 e desceu às 08h32. Do que fez naquela hora, nada sabe. Sabe apenas do que perdeu. Na semana seguinte, faltou ao jantar de comemoração da promoção da Bruna. Ela ficou possessa, quando ele entrou uma hora atrasado no restaurante, pontualmente. Depois veio a terceira vez, a quarta e ele já não as contava mais. Eram sempre lapsos de uma hora, precisamente uma hora. Os lapsos do Idélio não passaram despercebidos. Bruna o mandou ao médico. Foi ao clínico, ao neurologista, ao psiquiatra e ao curandeiro. Ninguém descobriu o que estava acontecendo com ele. Receitaram-lhe ansiolíticos, monolíticos e eletrolíticos. Porém, Idélio continuou a apresentar episódios de perda de uma hora.

MXV-78 tomou coragem e foi falar com o chefe. Preparou-se para o pior, pois o humor do Diretor Temporal estava terrível. O estagiário ZHT-93 deu outra mancada.

- Fizeram ensaios de horário de verão sobre um indivíduo do Tempo Real, um tal de Idélio, que acabou perdendo diversas horas da sua vida, devido aos avanços no tempo. O pobre coitado chegou a consultar diversos médicos, pois acharam que ele enlouqueceu. Faz tempo que ninguém apronta uma dessas.

O Diretor levantou ameaçadoramente as enormes sobrancelhas descabeladas.

- Quem foi o imbecil?

- O estagiário, filho do JKU-56.

- Aquele que põe catchup no café?

- Esse mesmo. O pior é que não podemos nos livrar dele, pois o JKU-56 é cunhado do Presidente Temporal.

- E agora, alguma sugestão de como consertaremos esse estrago?

- Pensei em devolver as horas ao sujeito. Assim, ficam elas por elas e ninguém perde nada. Creio que podemos devolvê-las todas de uma vez, assim colocamos uma pedra dobre esse assunto.

- É, acho que sim. Faça!

Idélio odiava discursos de homenageados. Bruna arrastara-o para a formatura de um amigo do primo de uma colega de trabalho. O homem que tomou a palavra iniciou seu discurso da melhor maneira possível:

- Vou lhes dizer apenas algumas breves palavras.

Essas algumas breves palavras já se estendiam por quase uma hora. Idélio estava louco para ir ao toalete. Finalmente, para o alívio geral, o homenageado tomou fôlego para falar:

- Vou lhes dizer apenas algumas breves palavras.

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18.6.08

414 - Atrasado!



Foto: Paulo Heuser
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Atrasado!

Por Paulo Heuser


Eu adorava sardinhas, quando criança. Não pelas sardinhas, pela lata. O atum relegou as sardinhas ao esquecimento. As pizzas de sardinha foram prato de todas as festas de aniversário da década de 70. Os rapazes levavam a bebida, as moças a comida. As mamães das moças preparavam pizzas de sardinha, invariavelmente, e os papais se livravam das bebidas que haviam recebido de brinde, seja quais fossem.

As latas de sardinhas vinham com aquela chave que pretendia facilitar a abertura. Era uma chave metálica que se encaixava numa aba, e permitia, em tese, que a tampa da lata fosse enrolada na direção de uma das extremidades. Já as pobres latas de atum, além de caras, apresentavam superfície lisa, quase desprovida de encaixes para o abridor. Para dificultar mais a abertura, sempre foram cilíndricas, exigindo que o abridor de latas ande em curva. Os abridores geralmente descarrilam. Algumas já contam com abertura através de um anel que, quando puxado, traz a tampa consigo.

As latas de sardinhas me causaram tamanho fascínio, que passei anos projetando um sistema de abertura instantânea, sem riscos à saúde. Descartei o canhão laser, pelos custos envolvidos. Deixei também de lado o rolo compressor, pois saía apenas purê de sardinhas. O modelo que chegou mais próximo da realidade foi um cortador, no formato da lata, que guilhotinava a tampa, de um só golpe. Naturalmente, tamanho e formato da lata deveriam se manter padronizados. Estava dando tudo certo. O equipamento era barato, de fácil operação, e de tamanho relativamente compacto, podendo ser afixado à parede. Então, veio o Collor. A segunda abertura dos portos, promovida por elle (sic), trouxe as latas de sardinhas portuguesas. Nada contra a nacionalidade delas. O problema foi o formato das latas, completamente diferentes das nossas. Depois, os pobres passaram a comer atum, graças à distribuição de renda do Lula. Atacado por direitistas, socialistas e portugueses, joguei a toalha. Desisti, pois cheguei atrasado. Meu invento foi natimorto. Não como mais sardinhas, e passei a odiar as latas.

As grandes corporações também chegam atrasadas. A France Telecom montou uma rede para acesso pago, sem fio, a Internet, cobrindo toda Paris, enquanto a prefeitura da cidade montava uma rede semelhante, com acesso gratuito.

Descobri que cheguei novamente atrasado. Investi nas eleições, tarde demais. Projetei postes telescópicos, que poderiam ser encolhidos até a altura de apenas dois metros, para facilitar a colocação e a retirada de propaganda eleitoral. Nos hiatos entre eleições, que não são tão longos assim, o sistema poderia abrigar a propaganda não-eleitoral. Todos ficariam felizes. Os candidatos poderiam colar sua propaganda sobre a dos outros, todas as noites. As gráficas operariam a plana capacidade. Alguém fabricaria e venderia os postes. As empresas de publicidade venderiam novos espaços. As prefeituras poderiam alugar os postes. Eu ficaria rico com a patente. Proibiram a propaganda eleitoral nos postes. Novamente, cheguei atrasado!

Não desisti, no entanto, de continuar inventando. A motivação veio de um grupo de sete miseráveis que aguardavam a morte, sentados sob uma marquise, nesta noite de frio glacial. Morrerão de frio, mas mantêm algum humor. O primeiro deu boa noite. O segundo pediu desculpas por darem boa noite, enquanto o último comentava que, de qualquer forma, eles não existiam. Como todo CSM – cidadão sem marquise -, passei olhando para o chão. Não é bom encarar a realidade. Percebi, então, por que as lojas passaram a colar propaganda sobre o passeio público. Todo mundo passa olhando para o chão, com se usassem um cabresto vertical. Foi então que nasceu meu novo projeto. São os OVU – Óculos de Visão Ufanista. Eles convertem a realidade local à realidade dos discursos. Esses óculos transformarão a passagem pelo Centro num passeio agradável, como se estivéssemos naquele lugar que os discursos políticos projetam. Através deles, veremos apenas marquises desabitadas. Não haverá caixas de papelão e cobertores sujos. Na Padre Chagas, os flanelinhas sumirão. Infelizmente, ainda não achei uma forma de sumir com os parquímetros. Os OVU eliminam apenas a imagem. O me-dá-me-dá-me-dá, permanecerá. Nada que um MP3 não resolva.

Sei que o produto tem tudo para se tornar um sucesso. Só temo chegar atrasado, novamente. Se o Brasil se tornar, finalmente, aquilo que nos vendem nos discursos, os OVU serão inócuos, inservíveis. Mostrarão a mesma agradável realidade que a visão a olho nu nos proporcionará. Assim, torço pelo atraso. Adoraria jogar os OVU fora. Porém, meu medo maior é da visão das ruas vazias, completamente desabitadas, através dos OVU, ao meio-dia, em pleno Centro, num dia comum da semana, apesar do ruído intenso.

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