17.12.07

Das portas e janelas


Foto: Paulo Heuser
Das portas e janelas

Por Paulo Heuser


Quando fotografei a centésima primeira porta, percebi finalmente que algo estava errado. Não com as portas, comigo. Meu vício em fotografar portas e janelas passara do limite, se é que existe algum. Ainda mais quando se trata de portas e janelas dos outros, muitas quebradas, emparedadas ou coisas do gênero. Alguém da família já vinha alertando para o estranho hábito. Só me caiu a ficha quando vi aquele número 101 ao lado da última foto publicada no sitio de compartilhamento.

Há algum tempo, descobri que havia outros como eu, padecendo do mesmo mal. Passei a receber mensagens de outros adictos, de diversas partes do mundo, elogiando minhas portas e janelas. Caso interessante é o do vienense chamado Robert. Ele é realmente louco por portas, e já estava comprando passagem para o Brasil, acreditando que todas portas daqui apresentariam a aparência daquelas que publiquei no sítio de fotos. Tive de alertá-lo para o fato de que a maioria das portas daqui faz inveja às do Fort Knox. Quando não estão pichadas, estão escondidas atrás de grades. Confessei-lhe que sou especialista em portas de casas açorianas e portas de casas noturnas fotografadas durante o dia. A 101 foi a porta de uma casa na Rota dos Antiquários, na Cidade Baixa. Uma estranha porta amarela com almofadas cor de rosa. Se isso não bastasse, havia um relógio de parede, antigo, do lado de fora da porta. O coitado do austríaco imaginou que todas as portas daqui seriam assim.

Joguei a toalha e fui procurar ajuda médica. Considero difícil confessá-lo, mas vá lá, procurei uma psiquiatra. Uma, porque não me sinto bem confessando essas manias inconfessáveis a um homem. Imagine a cena, o sujeito sentado, com ar de Sigmund, quando o outro personagem da história confessa que fotografa portas e janelas da casa dos outros. Um homem desataria a rir, mesmo que disfarçadamente. Há quem consiga disfarçar a gargalhada através de um ataque simulado de tosse. Usei essa técnica quando assisti à palestra proferida por um engenheiro gago e fanho. Retirei-me após o segundo ataque. Assim, acabei consultando a lista de médicos do convênio e optando pela Dra. Kremonna Türenfenster. Algo me dizia que aquela seria a pessoa indicada para tratar do meu problema.

Entrei na ante-sala do consultório e sentei-me na única poltrona vaga. Era também a única poltrona na sala. Depois lembrei que a privacidade é importante nesse tipo de especialista. Havia uma pilha de revistas, estas já sem aquele aviso para não as retirarem da aeronave. Faz tempo que não oferecem revistas a bordo. Refuguei algumas e optei por uma que se parecia com um manual do escoteiro húngaro. Deveria ser húngaro, pois a palavra Budapest aparecia diversas vezes no texto. Ou então, eu marcara uma consulta com uma proctologista, por engano. Somente consegui olhar meia-dúzia de figuras de pessoas vestindo calças curtas, quando a porta que levava ao consultório se abriu. E lá estava eu, sentado em frente a Dra. Kremonna Türenfenster, uma mulher na flor dos cinco oitavos da idade.

A doutora pareceu muito interessada no assunto, disfarçando completamente o riso, se é que houve algum. Ela apenas franziu levemente a testa, quando confessei o vício. No encerramento da consulta de 17 minutos (por convênio são mais curtas), ela pediu-me o atalho para minhas fotos das portas e janelas de outrem, pois poderia formar um quadro melhor ao vê-las.

A secretário marcou a consulta seguinte para daí a três meses (é por convênio), na primeira vaga disponível. Estranhamente, recebi um telefonema, na semana seguinte, informando que a Dra. Türenfenster havia pedido que adiantássemos a data da consulta. Quando entrei novamente no consultório, a doutora apontou para a tela do computador barroco, que combinava com o resto da decoração, onde uma das minhas fotos de portas enchia a tela.

- O senhor fotografa muito bem. Porém, apresenta os sintomas clássicos de um distúrbio chamado Síndrome de Portefinestre. Um médico veneziano foi o primeiro a identificar este distúrbio, no início do século XX.

- Certo, mas isso tem cura?

- Bem, cura propriamente, não há. Mas os pacientes podem ser orientados a focar sua atenção em outra coisa. A propósito, aquela foto da porta amarela com almofadas cor de rosa está fantástica.

- Obrigado, o Robert também achou. E quanto ao tratamento?

- É bem simples. Vá ao parque, ou qualquer outro lugar onde não há portas, e passe a fotografar a natureza, pessoas ou monumentos. Basta ficar longe das portas. A propósito, o senhor me alcançaria uma cópia daquela foto, em tamanho, 30X70, para eu colocar sobre a lareira, no lugar das guampas do meu marido? Digo, da galhada do alce dele. Podemos abater o custo da foto do custo da consulta.

Fiz o que a Dra. Türenfenster recomendou. Fui ao Parque da Redenção e fotografei árvores, cachorros e pedalinhos, o que mais há por lá. Voltei para casa realizado, sentindo-me curado. Isso foi no sábado. Na segunda-feira, antes das nove horas, a secretária da doutora perguntou-me sobre a foto da porta amarela. A doutora pedira a copia da foto. Com urgência, pois não agüentava mais a galhada do marido sobre a lareira. Na quarta-feira, fui intimado para nova consulta. Levei a cópia da foto comigo. A Dra. Türenfenster parecia extasiada.

- Tenho uma surpresa para você!

Eu confesso que levei medo. O que ela queria dizer com isso? Antes que eu pudesse sair correndo do consultório, ela mostrou-me uma câmera fotográfica completamente profissional, daquelas que nem mesmo um deles consegue utilizar. É tudo manual, menos o próprio, que está digitalizado no interior da câmera. Aliviado, comentei:

- Que ótimo, a doutora vai começar a fotografar?

- Vou! – disse ela, com a boca estranhamente vincada, verticalmente. – Só preciso que você me diga, por misericórdia, onde fica o diabo daquela porta amarela com almofadas cor de rosa!

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3 Comments:

At terça-feira, 18 dezembro, 2007, Blogger José Elesbán said...

He, he, he, ... De fato, um monte de portas e janelas!

 
At terça-feira, 18 dezembro, 2007, Blogger José Elesbán said...

:)

 
At terça-feira, 18 dezembro, 2007, Blogger Paulo Roberto Heuser said...

Já sei, Zé. Gostou demais da porta amarela com almofadas cor de rosa...:)

 

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