A classe média III - Besta lex, sed lex!
Foto: Wikipedia
A classe média III – Besta lex, sed lex!
Por Paulo Heuser
Foi na terça-feira. Já crescido, o terneiro mugia alegremente. Linoberto não percebeu a chegada do novo estranho, o terceiro em onze anos, pois estava ocupado com as lides campeiras, não necessariamente campesinas. Aquele não era um estranho qualquer. Era um estranho oficial, enviado pelo Governo. Um Estranho (maiúsculo), portanto. Esse não bebia, pois estava em missão oficial. Aguardava a chegada do Linoberto, sentado na sombra sob a parreira. O sol já nem incomodava mais, pois já se punha, prevendo a volta do Linoberto. Ele passara, como de hábito, pelo Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos.
O Estranho estivera na prefeitura. O prefeito, sétimo irmão dos 12, ouviu todo o palavrório oficial, não entendeu nada, e mandou o Estranho falar com o Secretário de Administração e Outros Assuntos Extraordinários em Geral: Linoberto. A presença de alguém do governo era um assunto definitivamente extraordinário. Fazia 11 anos desde a última vez em que tentaram trazer alguém do Governo, por ocasião do nascimento do terneiro. Mandaram convite oficial para a festa. Não veio nem resposta. E agora surgia alguém, espontaneamente.
- Boa tarde, Seu Linoberto! Sou representante da ONG Vaca Feliz e fui enviado pelo órgão que trata da saúde da população. – disse o Estranho, apresentando um vistoso crachá.
Linoberto chegou a acreditar, por um femtossegundo, que finalmente conseguiriam verba para contratar um veterinário. Porém, a esperança desvaneceu-se logo, mesmo antes do homem continuar a falar. Lembrou-se de que não acreditava mais em Papai Noel. Seus pensamentos voltaram da Lapônia, quando o Estranho voltou a falar.
- O senhor deve ter acompanhado o noticiário sobre a fraude do leite, pois vejo que tem antena parabólica.
- Sim. – respondeu-lhe enquanto começava a pensar onde o Estranho queria chegar.
- Pois então, Seu Linoberto, descobrimos que vocês bebem do próprio leite que produzem aqui. Soubemos através do rapaz que leva o leite de vocês para a indústria.
- Claro, o leite fresco é outra coisa! Dá para bebê-lo ainda morno. Melhor que isso, só se for com pão com banha!
- O Governo está preocupado com a saúde de vocês, Seu Linoberto. Por isso estou aqui. Nossa ONG foi contatada para elaborar, aprovar e fazer cumprir a Lei de Responsabilidade Láctea. – o Estranho manteve tom de seriedade.
- Que lei é essa? – perguntou Linoberto, intrigado?
- É a lei que regula o consumo de leite. Para garantir a saúde da população, só é permitido o consumo de leite de caixinha.
Como que percebendo a gravidade da situação, o terneiro, já crescido, mugiu.
- Mas essa lei é muito besta! – Linoberto não se conteve.
- Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – disse o Estranho, deixando transparecer a desaprovação da conduta de Linoberto.
- Ora, o leite foi adulterado depois que saiu dos produtores. A maracutaia foi feita para lá do cinamomo. Aqui nós só tomamos leite da vaca que conhecemos, olho no olho.
- Olhares enganam! A vaca pode estar enganando vocês...
- É, e ela vai misturar soda cáustica e água oxigenada no leite? – Linoberto estava realmente indignado.
- Nunca se sabe, nunca se sabe. Pode haver um complô conta vocês... sussurrou o estranho, em tom de conspiração. E continuou:
- De qualquer forma, lei é lei. Terão de cumpri-la. O governo está disponibilizando uma verba para auxiliá-los na compra do leite de caixinha para os carentes. A única forma que o Governo encontrou para garantir a qualidade do leite foi essa. Todos deverão beber do leite padronizado e aprovado pela fiscalização na fábrica.
- Mas, aqui não há carentes, todo mundo é da classe média. O carente mais próximo está do outro lado do cinamomo.
Já crescido, o terneiro mugiu novamente.
- O senhor parece não entender, numa típica atitude de classe média. Se a lei diz que há carentes, é porque há carentes. Ponto. Se o município não cadastrar pelo menos um carente no programa, estarão descumprindo a lei. E há severas penalidades para os refratários. Besta lex, sed lex!
Linoberto precisava de tempo para pensar. Pediu a Maria que trouxesse uma garrafa da “boa”, para oferecerem ao Estranho.
- O que é isso? Estou em serviço, portanto não bebo! – o Estranho parecia indignado.
- Ora, é apenas um licorzinho digestivo, de losna e carqueja, coisa local, boa para as vísceras. Além do quê, o sol já se pôs, portanto o senhor já deve ter saído do serviço.
- Bem, pensando assim, que mal faz? – o Estranho pareceu aliviado.
O alívio desfez-se no primeiro gole. – a expressão mudou do alívio ao desespero. Enquanto o Estranho tentava se recompor, Linoberto pensou numa saída para aquele problema importado do lado de lá do cinamomo.
Alívio é o que transpareceu no rosto de Linoberto, quando o Estranho partiu, aparentemente satisfeito, apesar da boca torta, ao som do mugido do já crescido terneiro. Maria, que perdera o final da conversa, pois fora tratar os animais, perguntou ao marido sobre o estrebuchar do problema.
- E aí, Lino, como é que vamos nos livrar dessa? – ela parecia preocupada, apesar da expressão tranqüilizadora do marido.
- Foi meio complicado, mas logo vi que precisávamos resolver o problema de trás para diante. Primeiro, cadastrei o estranho (minúsculo), o do sindicato, como carente. Com aquele discurso contra as elites, colchão imperialista da classe media, etc, o Estranho acreditou na condição de carente do estranho. Atendida a lei, nesse aspecto, concordei em receber a verba para o leite de caixinha.
- Mas, teremos de tomar aquela droga? – Maria parecia perplexa.
- Não necessariamente. Com a verba para o leite de caixinha, compraremos o produto direto da fábrica. Aí abriremos as caixinhas e derramaremos tudo nos tarros onde levamos o leite para a fábrica, vendendo-lhes de volta, in natura, como se fosse leite das nossas vacas.
- Maria parecia meio confusa:
- Mas, quem abrirá as caixinhas?
- Contratei o estranho (minúsculo), o do sindicato. Ele andava rondando o sacristão, tentando convencê-lo a fundar o sindicato dos sacristãos. Foi bom para todo mundo. O sacristão está badalando sossegado, o padre ficou aliviado e o estranho conseguiu um emprego. Além disso, a lei será cumprida, o João Louco ganhará um bom dinheiro, o Estranho não voltará e o Governo terá cumprido sua missão. Sem falar da ONG, que receberá pelo serviço.
- O que faremos com o leite das vacas? – perguntou Maria.
- Ora, vamos bebê-lo!
Já crescido, o terneiro mugiu. Besta lex, sed lex!
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