11.12.07

A classe média V - O presente de Natal



Fonte: Wikipedia


A classe média V – O presente de Natal

Por Paulo Heuser


Linoberto recebeu a notícia da chegada do Estranho enquanto tentava desatolar o já crescido terneiro que mugia desesperadamente. Ele já nem considerava mais o Estranho tão antipático. Chegava a ter um pouco de pena dele. Afinal, ele não tivera culpa por aceitar aquele emprego na tal da ONG Vaca Feliz, contratada pelo governo. Com a crise que nunca terminava, do lado de lá do cinamomo, qualquer emprego era emprego.

Encontraram-se no Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. O copo da “boa” já esperava Linoberto. Cumprimentaram-se, trocaram amenidades sobre o já crescido terneiro, o estado da estrada e a proximidade do Natal. Linoberto encerrou a fase da firula quando perguntou ao estranho sobre a razão da nova visita.

- Seu Linoberto, venho como representante da ONG Vaca...

- Sei, sei, Vaca Feliz, contratada pelo governo para...O que é, desta vez?

- Bem, Seu Linoberto, desta vez venho falar com o Secretário Municipal da Educação e Cultura, cargo que o senhor também acumula, pelo que me disse o Prefeito.

- Sou todo ouvidos. – disse Linoberto, enquanto o já crescido terneiro mugia.

O Estranho tomou fôlego e continuou:

- Tenho a satisfação de lhe comunicar que o Governo está liberando verba para a introdução do ensino do idioma uzbeque, no Ensino Fundamental!

- Céus, onde se fala isso? – perguntou o intrigado e espantado Linoberto.

- Ora, no Uzbequistão! – o Estranho parecia não entender a ignorância do Secretário da Educação e Cultura do lado de cá do cinamomo.

- Certo, mas por que alguém aqui deveria aprender esse uzbe... Como é mesmo?

- Uzbeque!

- Nós já ensinamos inglês e espanhol aos alunos. Ficaria pesado, mais um idioma.

- Bem, Seu Linoberto, não se trata de uma nova língua. Deverão substituir uma das línguas estrangeiras já administradas. A lei não prevê a inclusão de nova disciplina.

- Já sei, a lei é besta, mas é a lei!

- Exatamente, tirou as palavras da minha boca. – disse o Estranho, enquanto o já crescido terneiro mugia de felicidade, livre do atoleiro.

- Só não entendi o porquê dessa língua em especial. Não podemos optar pelo ensino do idioma francês, ou do alemão?

- Bem, err... É porque os manuais dos kits estão escritos em uzbeque, na verdade...

- Kits? Quais kits?

- Os kits dos jogos para presente de Natal das crianças.

- Continuo a não entender, por que comprariam brinquedos com manuais escritos numa língua dessas?

- Não foram comprados, foram dados em pagamento...

- Pagamento do quê?

- Da dívida externa do Uzbequistão.

- Não sabia que havíamos emprestado alguma coisa para eles.

- Não emprestamos, na verdade. Foi a Bolivária quem emprestou.

- E o que nós tempos a ver com isso?

- Ora, o Uzbequistão pagou em kits a divida externa da Bolivária.

- Continuo não vendo o que nós temos a ver com isso!

- Bem, os bolivarianos nos indenizaram por algumas desapropriações, pagando em kits. Como era pegar ou largar, pegamos. Melhor alguns kits uzbeques na mão do que dólares voando. Como havia uma certa dificuldade para utilizá-los, pelo desconhecimento da língua, elaboramos uma lei para introduzir o ensino do idioma uzbeque.

- Hum, entendi. Para carnearem o porco vocês derrubaram o matadouro.

- (?) – o Estranho pareceu não entender a analogia.

- São muitos kits?

- Não muitos. Não passam de 18 milhões.

- Não podemos recusar os kits e deixar de substituir os idiomas já ministrados?

- Não, besta lex, sed lex. A única condição, prevista em lei, que dispensa as aulas de uzbeque é a de as crianças já dominarem essa língua, a ponto de conseguirem utilizar os kits. Nós escolhemos aleatoriamente duas crianças matriculadas na escola e lhes entregamos um kit. Se conseguirem ler as instruções e utilizá-los, a condição legal está satisfeita.

Quando o Estranho partiu, contrariado, o já crescido terneiro mugiu. Linoberto pagou pirulitos xaropentos, em forma de apitos, daquele tipo que só se via ainda do lado de cá do cinamomo, para as duas crianças que saíram correndo ladeira abaixo, felizes com seus kits.

Linoberto chegou em casa cansado, mas satisfeito. Contou o ocorrido a Maria.

- E aí, Lino, as crianças terão que aprender essa língua estranha?

- Não, Maria. Encontrei um modo de contornar a situação e ainda por cima dar um presente de Natal para as crianças. Pedi para ver um dos tais kits. Quando botei o olho nele, me caiu a solução. Pedi ao padre que mandasse duas crianças da oitava série até o 12 Irmãos.

- E aí, Lino? Elas conseguiram ler as instruções?

- Não foi preciso. O tal kit era um jogo pega-varetas.


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